Sobre "Ricardo III" Shakespeare—A autoconsciência e o exercício da força
Ricardo III é um personagem extremamente controlador, e demonstra durante toda a peça também um autocontrole absoluto. No entanto, ao final da trama, que também é o seu fim, ele nos deixa uma mensagem: ninguém sai incólume depois de tanta maldade. E o que nos diz isso não é o simples fato do mocinho vencer o vilão, o que estaria nos moldes de uma mera obra moralista. O que mais chama a atenção no crepúsculo dele, é o seu enorme peso na consciência, a ponto de beirar a loucura. Ricardo III vê contra si todos os argumentos do mundo, e assim, não consegue aceitar-se ou até admirar-se consigo, o que em partes da peça havia acontecido. Ele olha aterrorizado para todas as maldades que praticou, todas as mortes pelas quais é responsável, e que cometeu para conquistar a coroa da Inglaterra. Mas, antes de morrer, tão desesperado quanto os fantasmas de suas vítimas rogaram que estivesse, chega a oferecer tudo aquilo pelo que lutou por uma coisa tão simples; um cavalo.
Na loucura de matar Richmond, ele profere a célebre frase, mas por que entregar tudo que conquistou em troca de uma chance de matar aquele homem? Talvez porque Richmond sintetize toda a antítese dos adversários de Ricardo III, colocados como prudentes e honrados. Talvez porque apresenta a Ricardo o que ele não é, e sabe que não é. Pois, no fim, diz a si mesmo: “Não há criatura que me ame, e se eu morrer, ninguém me lamentará... E porque o fariam, se eu próprio em mim próprio por mim próprio não encontro dó?”
Além disso, a coroa não parece ser exatamente seu grande objetivo, apenas um passatempo. Algo difícil de realizar e que iria requerer muitas perversidades. É como diz no início da peça: “neste ocioso e mole tempo de paz, não tenho outro deleite para passar o tempo afora a espiar a minha sombra ao sol e cantar a minha própria deformidade. E assim, já que não posso ser amante que goze estes dias de práticas suaves, estou decidido a ser ruim vilão e odiar os prazeres vazios destes dias.”
Assim, acostumado a tempos difíceis, a ser menosprezado e malvisto, ele assume que tem a natureza realmente perversa e dá início a sangrenta empreita pelo trono. Com sua autoconsciência, chega a se impressionar do que é capaz. Conquistar o Reino da Inglaterra, na verdade, nunca foi o motivo verdadeiro por trás das suas ações. O que ele queria mesmo era se fazer valer, mostrar que poderia fazer o que quisesse, ser temido e respeitado por suas conquistas: manipular, matar, trair, não importando os meios.
É por isso que no fim ao encarar adversários que, tidos como honrados e justos, pretende matar desesperadamente o símbolo principal daquilo que ele não é: Richmond. O homem cuja a própria existência funciona como uma acusação da índole de Ricardo III, uma figura representativa de toda objeção contra seus pecados. O protagonista chega ao ponto de praticamente se entregar à morte para tentar aliviar sua pesada consciência destruindo este símbolo.
Há ainda outra abordagem que pode agregada a essa, embora um pouco diversa. É que Ricardo, nunca antes amado; ensinado a viver em tempos de conflitos; acostumado a ser respeitado apenas através de batalhas; enfim, tido como um erro da natureza (“vergonha do ventre da tua mãe”.) consolidou para si uma personalidade agressiva.
Ele é uma pessoa que acaba se vendo em tempos de paz, bem diverso de tempos anteriores. Mas ele é como uma espada afiada que não serve para abraços e carinhos. É um homem bom para tempos turbulentos, isso é a única coisa que ele conhece. Maquinações, oratória capciosa, galanteios deslavados, dissimulações, frieza... possui todas as qualidades necessárias para tempos difíceis, sendo um exímio sobrevivente. Então, o que fazer depois que tudo é calmaria e a paz parece finalmente se acomoda no reino?
Ora, é exatamente por ser bom no que faz que ele se sente impelido a fazê-lo. Se uma espada foi feita para contar, então que corte, e corte com maestria! Ricardo III é apenas um homem se exercitando, testando seu poder e seus inegáveis talentos. Obtidos ambos ao longo de uma vida onde ele tinha que ser duro para viver e ser respeitado, ou ao menos temido. E qual melhor posição para se afirmar como forte a valente que o trono de um grande reino? É por isso que, até o fim, tenta fazer recair sua ira e poder em todos que tentam desafiá-lo. E se irrita com qualquer coisa que possa se lhe apresentar como uma ameaça. Principalmente Richmond, centralizador de todos seus adversários; os vivos e os mortos. E busca, assim, matá-lo com as próprias mãos.
Como disse, esta é uma perspectiva que não anula a primeira. Até porque esta obra, assim como os outros clássicos, nunca se esgota de interpretações e perspectivas de leituras. E até análises contraditórias por vezes parecem ser ambas plausíveis.