PEDRO E O LOBO: RELATÓRIO DE OBSERVAÇÃO DE UM ESPETÁCULO INFANTIL

 Introdução

Este relatório apresenta uma análise crítica da peça “Pedro e o Lobo”, que está em cartaz no Teatro Folha do Shopping Higienópolis – São Paulo, desde 4 de janeiro e permanecerá até o dia 21 dezembro de 2014. Criada por Fernando Anhê e Jamil Maluf em 1999, onde sua principal forma de expressão é o teatro negro. Sua classificação indicativa é livre, com preferência às crianças a partir de 3 anos, tem duração aproximada de 55 minutos.

Tal análise foi fundamentada através de alguns textos discutidos em aula e observações feitas durante o espetáculo. Frisa a relação das crianças com seus acompanhantes que estão na plateia e a performance dos artistas que estão em cena, mostrando que muitas companhias ainda estão sujeitas a criação simplória e não diversificada que compromete a dramaturgia infantil.

 Sinopse do espetáculo

“Adaptação premiada da fábula musical russa, o espetáculo usa manipulação de bonecos e técnica de teatro negro, sob a direção de Fernando Anhê.

Um dos méritos da montagem é apresentar para a garotada os sons de uma orquestra e os principais instrumentos musicais. Com base em um antigo conto russo - sobre o menino valente que tenta capturar um lobo para salvar os bichos, seus amigos, na floresta. O compositor Sergei Prokofiev designou uma personalidade sonora para cada personagem ao criar a obra, em 1936.

O passarinho é representado pelo flautim; o gato, pelo clarinete; a pata, pelo oboé; o lobo, pelas trompas; os caçadores, pela percussão (marimba); o avô pelo fagote; e Pedro, pelas cordas. A base orquestral é pré-gravada; e o maestro Jamil Maluf narra em off a entrada de cada instrumento revelando aquilo que os liga aos personagens.”

Fonte: Site do Teatro Folha: Conteúdo teatral.

Observações, análise e fundamentação teórica

 Enredo e tema

Cores em meio a escuridão, ansiedade, curiosidade e inquietação foram percebidas a partir do momento que as luzes se apagaram, tudo começou a brilhar. Neste momento o narrador da estória entrou em cena, despertando a inquietude das crianças, apresentando os personagens e seus respectivos “sons”, representados por instrumentos, dando menção ao bem e ao mal, colocando Pedro como o menino herói e o Lobo como o vilão da estória. Dando ao avô de Pedro uma voz autoritária, ao pato e ao passarinho uma voz infantilizada, ao gato um jeito soberbo, a Pedro uma entonação encorajadora, e ao Lobo um tom sombrio.

A peça traz um enredo muito simples, e o narrador explica muito bem, até demais, toda a estória, tornando-a um espetáculo breve, com a intenção de manter a criança atenta e encorajada até o final da mesma, assim como, também, pincela Nora Lins Sormani (2004), em “Rumo a caracterização de teatro para crianças” (Item “b” – O conceito de simplicidade), tirando algumas possibilidades de imaginação e criação das crianças, que, também, é dado como importante por Ana Lúcia G. de Faria e Sandra R. S. Richter (2009), em “Apontamentos pedagógicos sobre o papel da arte na educação da pequena infância: como a proposta da Educação Infantil encontra-se com a arte?” (p. 104) quando dizem que,

“O destaque aqui dado à imaginação poética, à alegria e à complexidade de aprender, ao direito à beleza, à comunicação não-verbal, enfim, à arte como experiência de um corpo em suas primeiras aprendizagens, evoca uma pedagogia que não separa experiência e saber, corpo e mente, pensamento e ação no mundo.” (FARIA e RICHETER, 2009)

A narrativa se passa numa floresta, onde Pedro adora brincar com seus amigos: o passarinho, o gato e a pata. O menino é proibido, por seu avô, de ir até lá, pois há um Lobo a solta, que come tudo o que vê pela frente. Entretanto, Pedro é conhecido por sua coragem e teimosia, vai à Floresta, sem a permissão do avô, e passa o dia brincando com seus amigos, porém o “pior” estava por vir, mal sabia ele que o Lobo apareceria e comeria a sua amiga pata. Muitas crianças aguardavam ansiosamente a chegada do lobo, e não se assustaram, como era o “esperado”, quando ele apareceu, uma delas até o chamou: “Vem aqui lobinho”, mas sua mãe logo a repreendeu com um “shhhh, fica quieto”. Tal atitude lembra o “adestramento” do corpo e da mente, citado por Deborah Thomé Sayão (2008), “Cabeças e corpos, adultos e crianças: Cadê o movimento e quem separou tudo isso?” (p. 101), que fala:

“Os fatos continuam se desenvolvendo através da autora e, mais uma vez, o corpo e a mente de Maria parecem estar nas mãos de D. Eunice. Essa tenta dominar completamente os olhares, os movimentos, as posturas, os gestos, as percepções e até os pensamentos da menina quando repete: Preste atenção, Maria.” (SAYÃO, 2008)

A narrativa continua, e quando a pata foi engolida Pedro buscou uma corda, e com a ajuda do passarinho prendeu o Lobo, chamou os caçadores e estes levaram o temido animal para o zoológico.

Sendo este relatório baseado, principalmente, no texto “Um círculo vicioso. Os dez pecados” de Dib Carneiro Neto, alguns pontos negativos foram percebidos no decorrer do espetáculo, como: Uso de humor fácil e grosseiro, obsessão pela lição de moral, participação forçada da plateia, síndrome do nariz de palhaço e um “quase o lobo mau ficou bonzinho”. Tais pecados serão melhor explicados, não respectivamente, abaixo.

A plateia foi chamada a participar “n” vezes durante a peça, citarei as duas vezes que mais chamaram a atenção das crianças e acarretou a participação das mesmas, tendo uma dessas situações a “síndrome do nariz de palhaço”.

Quando os caçadores entraram em cena, para buscar o Lobo que Pedro capturou, chegaram de maneira atrapalhada, trombando um no outro, permitindo que suas calças caíssem “sem querer”, deixando suas cuecas de bolinhas florescentes à vista, recebendo assim uma risada unanime da plateia. Batiam palmas e pediam o acompanhamento de todos, e em questão de segundos todos estavam ali, batendo as mãos, no mesmo ritmo, exceto um menino, de mais ou menos 4 anos, que não parava de perguntar o que era aquilo, mas sua mãe estava tão atenta as palmas que nem o respondeu.

Um outro momento de participação da plateia, a mais preocupante para mim, foi quando os dois caçadores carregavam o Lobo em seus braços, amarrado pela corda de Pedro, fazendo o percurso floresta-zoológico que começava numa ponta do palco, passava por toda a plateia e chegava na outra ponta. Neste momento as crianças podiam passar a mão no Lobo, pois aquele “animal feroz” estava amarrado e a partir daquele momento não faria mal a mais ninguém, até porque ele estava indo para o zoológico e ali permaneceria preso.

Por que ninguém explicou para àquelas crianças que um lobo comer uma pata faz parte da cadeia alimentar? Onde já se viu colocar um lobo no zoológico, lugar tão massacrante, só porque ele comeu outro animal? Ele não é o predador? O pior é escutar pais dizendo algo como: “Tá vendo filhinho? O Lobo fez maldade agora vai ficar de castigo.”

O conflito da narrativa se dá quando o Lobo engole a Pata, mas o desenrolar da estória e o seu desfecho deixou a desejar, e trouxe, para algumas crianças, a sensação de peça simplória.

 Estrutura, cenário e formas performáticas dos artistas

O espetáculo aconteceu num teatro “tradicional” de palco italiano, onde os espectadores assistem a peça frontalmente, haviam cortinas vermelhas que ficaram abertas durante toda a apresentação, pois não teve troca de cenários, e foram fechadas no final do espetáculo. O espaço entre a plateia e o palco era, relativamente, pequeno.

Luzes e muitas cores fosforescentes, sem dúvida alguma faziam parte daquele ambiente. Um cenário escuro com luz negra, diversidade de cores e jogos de sombras fez a diferença neste espetáculo. Uma grande árvore ficava no centro, representando a floresta, onde o passarinho e o gato moravam, e um pequeno portão, a esquerda, fazia referência a casa de Pedro e seu avô. Os bonecos eram bem manipulados, e não dava para ver nenhum artista por trás deles, vez ou outra até esquecia-me que eram bonecos.

As crianças mostraram bastante satisfação quando os personagens apareceram pela primeira vez, sendo apresentados pelo narrador ao som do seu respectivo instrumento. A maioria delas dava gargalhada toda vez que o gato abria seus grandes olhos e os fazia brilhar em meio àquela escuridão, mostrando que “a experiência provém da interação entre indivíduo e ambiente” (GRAZIOLI, Fernando Tadeu, 2007, item 3: Viola Spolin), e foi essa interação que fez com que as crianças se sentissem como pertencentes aquele espaço, e que permitiu que uma delas quisesse brincar com o gatinho, dizendo: “vem fazer carinho, gato.”

Percebiam a mudança de tempo quando todos os personagens saiam de cena deixando somente a árvore, iluminada e colorida. Perguntavam aos seus pais: “Cadê eles, papai?”, “Cadê os bichinhos?”. Algumas crianças gritavam quando eles apareciam novamente.

O único “personagem” que não era um boneco de pano, era o narrador da estória, ele dizia ser um músico, não passava confiança ou tranquilidade para as crianças, causava até medo, em algumas. Usava um batom florescente, laranja, que despertou um questionamento de um menino: “Mãe, homem não pode usar batom, pode?”. A mãe, mais uma vez, usou o “grande instrumento” paliativo de todos os tempos, o seu sonoro “shhhh”. Ela acabará de perder a oportunidade de descontruir uma ideia imposta pela sociedade e que seu filho, de mais ou menos quatro anos, já trazia dentro de si. Lamentável. Tal episódio lembra um trecho presente no texto de Deborah Thomé Sayão (2008), “Cabeças e corpos, adultos e crianças: Cadê o movimento e quem separou tudo isso?” (p.93), que diz:

“A justificativa para essa opção reside em minha total descrença no suposto dualismo, todavia reconheço uma construção filosófica e, em muitos aspectos, ideológica, que, ao longo de vários séculos, vem tentando provas que corpo e mente são unidades distintas. Essa construção faz parte de uma forma de compreender o mundo, a ciência e o conhecimento que inventou dicotomias e dualismos de toda ordem, como o agravante de que intrínseco a eles se produzem juízos de valor, hierarquias em relação a todas as coisas. Incluo, neste rol, outras “supostas” oposições que estão na mesma esteira de corpo e mente, tais como: homem/mulher; natureza/cultura; oriente/ocidente; norte/sul; direita/esquerda; alto/baixo; frente/atrás; duro/mole; dentro/fora.” (SAYÃO, 2008).

Falando, ainda, do narrador, é importante dizer que tanto suas falas, quanto as dos outros personagens, eram gravadas e bem altas. Ele desapareceu, depois de apresentar cada um que faria parte daquela estória, mas sua voz permanecia, com algumas falas intercortadas.

 Relações com e entre as crianças e famílias/acompanhantes

Havia várias crianças, e estas falavam bastante durante a peça, e poucos pais repreendiam essa atitude, alguns respondiam pacientemente e cuidadosamente as perguntas feitas, eram elas algo como: “Cadê o patinho?”, “O lobinho morreu?”, “É o lobo mau?”, “Pode fazer xixi agora?”, “Já tá acabando?”.

As perguntas foram as mais variadas possíveis, e um pai não cessou em levar seu filho ao banheiro, quando o mesmo pediu, alguns tentavam explicar que o “lobinho” não estava morto, mas estava sendo levado ao zoológico, outros nem se importavam com as perguntas e mandavam seus filhos ficarem quietos, sem levar em consideração que é “muito importante o conhecimento das diferentes linguagens, em especial a do corpo, sendo assim é fundamental analisá-la” (BUFALO, Joseane, 1997, p. 71), e manter seu filho quieto, naquele momento, era castrar sua maneira de interpretação da cena. É importante ressaltar que as crianças não interagiram entre si, e só mantiveram comunicação com seus responsáveis.

 Considerações finais

Assim como na maioria das escolas, quando é levado em consideração o ensino de artes, foi possível perceber que ainda há muito despreparo e falta de informação na construção de peças infantis, e que assim como “as aulas de artes continuam sendo banalizadas pelas artes visuais” (STRAZZACAPPA, Márcia, 2008, p. 2), a dramaturgia infantil é banalizada pelos espetáculos simplórios, no pior sentido da palavra.

Foi uma peça que acabou decepcionando, não concordo com a ideia de um enredo tão raso, onde uma criança tida como “teimosa” caça um lobo e o entrega para os caçadores por eles ser mau. A dicotomia entre o bem e o mau foi colocada como conflito na peça, e teve um “debate” desnecessário. Lobos são predadores, comem outros animais e zoológico não é um lugar tão legal, como muitos pais acreditam que seja. Colocar um lobo de “castigo” só porque ele estava se alimentando?

Escutar pais dizendo para seus filhos que: “Se não for bonzinho fica de castigo”, foi confirmar a visão obtusa da sociedade, e dos adultos que acreditam que crianças não pensam e não entendem nada. As crianças sentiram compaixão pelo Lobo e se preocuparam com ele, “O lobinho morreu?”, elas sim se sensibilizaram com o animalzinho. O que pensam mesmo os adultos? Para algumas crianças, Pedro não foi um herói, diferente da visão de alguns pais. Márcia A. Gobbi é muito sucinta e objetiva ao citar Mario de Andrade em uma tese de doutorado da Faculdade de Educação da UNICAMP (2004) “Desenhos de outrora, desenhos de agora: Mario de Andrade e seu acervo de desenhos de crianças pequenas” no trecho que diz:

“A criança é essencialmente um ser sensível a procura de expressão (...) ela é muito mais expressivamente total que o adulto. Diante de uma dor: chora – o que é muito mais expressivo do que abstrair: “estou sofrendo”. A criança utiliza-se indiferentemente de todos os meios de expressão artística, emprega a palavra, as batidas do ritmo, cantarola, desenha. Dirão que as tendências dela ainda não se afirmaram. Sei. Mas é esta mesma vagueza de tendências que permite para ela ser mais total. E aliás as tais “tendências” muitas vezes provêm da nossa inteligência exclusivamente” (ANDRADE, 1929)

A arte para e das crianças precisa ter essa sensibilidade, essa emoção, seja na peça de teatro, nos desenhos, na dança, na literatura e em tantas outras, ela deve ser sentida, segundo é dito por Nora Lia Sormani (2004), em “Rumo a caracterização de teatro para crianças” (Item: Para explicar), que fala que o teatro infantil deve envolver o espectador, a partir de um regime de experiência cultural que é especifico, pois cada criança é ímpar e vive a seu modo particular no mundo. É necessário deixar de acreditar nas mensagens moralistas. Vale encerrar com um trecho de Walter Benjamin (1984), em “Programa de um teatro infantil proletariado” (p. 114), onde é dito que,

“A coletividade das próprias crianças encarrega-se de executar os inevitáveis ajustes e correções morais. Esse é o motivo pelo qual as encenações do teatro infantil têm de atuar sobre os adultos como autêntica instância moral. Perante o teatro infantil não há posição para um público superior” (BENJAMIN, 1984)

Que leva a crer que dramaturgia infantil não precisa de um enredo simplório, desleixado, com bordões e risos fáceis, que traz uma lição de moral no final da estória, mas sim a possível contribuição na construção de uma pessoa sensível, reflexiva, emocionada, criativa e liberta.

Referências bibliográficas

 BENJAMIN, Walter. Programa de um teatro infantil proletariado. In: Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984, p. 83-88.

 BUFALO, Joseane. A linguagem pele-pele e sua importância na Educação Infantil. In: Creche: lugar de criança, lugar de infância. Dissertação de Mestrado, FE-UNICAMP, 1997, P. 69-81.

 CARNEIRO NETO, Dib. Um círculo vicioso. Os dez pecados. In: Pecinha é a vovozinha!. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2003, p. 6-19.

 FARIA, Ana Lúcia G. de. E RICHTER, Sandra R. S. Apontamentos pedagógicos sobre o papel da arte na educação da pequena infância: como a pedagogia da Educação Infantil encontra-se com a arte? Small Size Paper. Experiencing Art in Early Years: learning and development processes and artistic language, Bolonga/Italia: Pendragon, 2009, p. 103-113.

 GOBBI, Márcia A. Desenhos de outrora, desenhos de agora: Mario de Andrade e seu acervo de desenhos de crianças pequenas. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação da UNICAMP, 2004.

 GRAZIOLI, Fernando Tadeu. Apontamentos sobre o jogo a partir de Peter Slade e Viola Spolin. Revista Digital Art&, v.8, 2007.

 SAYÃO, Deborah. Cabeças e corpos, adultos e crianças: cadê o movimento e quem separou tudo isso? Revista Eletrônica de Educação. São Carlos/SP: UFSCar, v. 2, n. 2, p. 92-105, nov. 2008.

 SORMANI, Nora Lia. Em busca de uma caracterização do teatro para crianças. In: O teatro para crianças. Do texto ao palco. Rosário/Argentina: Homo Sapiens, 2004.

 STRAZZACAPPA, Márcia. Empilhando carteiras à procura de um espaço vazio. In: Congresso Abrace, 2008.

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camifls
Enviado por camifls em 25/10/2016
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