Trem & Trens II (teatro)
ATO II
CENA I
CENÁRIO – O mesmo do primeiro ato.
ANOS 60:
Ao abrir-se a cortina, pela metade, devagar, é noite e se vê a Estação fechada. Flávio, envelhecido, de barba, deitado num banco da plataforma, sendo acordado por um meganha com uma lanterna iluminando o seu rosto. Chuta-o, com o bico do coturno.
MEGANHA (Arbitrário) – Não tem casa não, matuto?
FLÁVIO (Transtornado, passa as mãos na barba, limpa os olhos com as costas da mão, com o rosto encandeado pela ilumiação da lanterna que o meganha lhe dirige)- Ahn?!
MEGANHA (Irritado) – Vamos, seu porra velho... (Chuta-o outra vez e pega Flávio pelo colarinho, erguendo-o e lhe alumiando novamente o rosto).
FLÁVIO – Ahn? (Abre a boca sem sono) Ah...Ah... diga, seu guarda.
MEGANHA (Fulo da vida, joga-o do banco abaixo) – Guarda uma porra...
FLÁVIO (Admirado, tranquilamente levanta-se) – Perdão, não sei o que dizer...(Pejorativo)... desculpe, seu polícia!
MEGANHA – Têje preso (Empurra Flávio, que cai na Plataforma, dando-lhes outros chutes e Flávio sai rebolando pelo chão. O guarda o pega pelos cós da calça, no cinturão). Vamos, “fila da puta”!
FLÁVIO (Espantado, noutro tom) – Eu sou ferroviário... me solte, pelo amor de Deus, pelo amor que o senhor tem à sua mãe.
MEGANHA (Tira as mãos do cinturão de Flávio, surpreso) – Como?
FLÁVIO (Tranquilamente, limpa a roupa e passa a mão na barba) – Sou telegrafista e quando amanhecer o dia estarei indo a uma reunião, lá no Sindicato...
MEGANHA (Baixo, a Flávio) – Olha, meu velho, vou soltá-lo, veja bem... (Temendo perder o bico) ... sou casado e novato na Companhia e não quero perder esta “boca” (Cria coragem). Se eu perder, ajustará contas comigo, está ouvindo, velho?
FLÁVIO (Benévolo) – O senhor não se preocupe. Eu sei o que é isso e que a culpa não é do senhor...(Parodiando João Cabral de Melo Neto) “Hoje, o grande doente é o Brasil, com mais fome, mais violência e mais doenças”. Até, amigo!
Saem pela plataforma abaixo. A cortina abre-se totalmente. O meganha gesticulando para Flávio pausadamente, pára e depois ambos seguem seus destinos, desaparecendo. Enquanto isto, na Rotunda, telegrafistas ferroviários vão se reunindo, conversam juntos com estudantes jovens em geral).
2º TELEGRAFISTA – Os ferroviários irão entrar em greve no dia 21 à zero hora.
3º TELEGRAFISTA – Vamos lutar. A gente só é telegrafista na licença do trem, mas no ordenado somos G-5, “golinha”, “rola-voou”, et cetera.
4º TELEGRAFISTA – Nós não somos considerados do quadro. Estão chamando a gente até de “amostra grátis”! É um verdadeiro trem de apelidos...
5º TELEGRAFISTA – A minha carteira do Ministério do Trabalho se encontra na Inspetoria há dois anos!!!
6º TELEGRAFISTA – A reunião tem é pouca gente, né?
7º TELEGRAFISTA – É medo de perder o emprego, e quem mora na casa da Companhia, aí já viu, aceita e concorda com tudo. Eles enganam direitinho.
2º TELEGRAFISTA – Será que vai dar “QRM”, na greve?
2º SINDICALISTA – Vamos reivindicar tudo isto: bom salário, etc...
3º SINDICALISTA – A reunião no Sindicato é contra o pessoal do “Trem do Chaleiras”, que querem furar a greve como na outra vez. A gente se encontra lá (Sai).
Flávio (À platéia, em voz alta) – Vamos ver se o Sindicato desta vez funciona. Vocês devem se unir e votar no nosso candidato...
Aplausos
Platéia
JOVEM CABELUDO (Entra com a bandeira do Brasil, revoltado) – Era bom uma greve geral moralizada, para dar uma lição no “Trem dos Corruptos”.
Vozearia
VOZES – Viva, viva!!!
PLATÉIA (Exalta-se novamente).
Obs: Quanto à provocação e participação da platéia, o critério deverá ser da direção , se julgar conveniente.
Ouve-se o silvo tradicional da “Maria Fumaça”
“O trem”
TREM DE CARGA – Café com não? Bolacha não
Café com não, café com não.
Bolacha não...
Trem de carga ao parar.
Fumaceira
FECHA A CORTINA
Cena II
CENÁRIO - O mesmo das cenas anteriores.
Ao abrir-se a cortina, Flávio aparece bem vestido e barbeado, com líderes sindicais sentados em uma mesa redonda, na sala do Sindicato. Alguns entram (A quantidade fica a critério da direção).
Pausa
FLÁVIO (Presidindo a mesa, no comando da greve) – Na primeira greve negociamos os 40%. Agora, vamos colocar piquetes em todas as oficinas, principalmente na de “Moscouzinho” (JÁ - Jaboatão) e Werneck ( EW- Edgar Werneck). Vamos reorganizar as nossas bases, companheiros.
LÍDER 2º (Levantando) – A nossa sorte depende do apoio da Igreja, que não tivemos na primeira... (Senta).
LÍDER 3º (Levantando) – É isto aí, na outra vez de igreja brasileira só teve o padre do 14RI, que apoiou a nossa greve (Vide “Moscouzinho), colocando a bandeira do Brasil na linha do trem...(Senta).
Pausa
LÍDERES – “Vamos distribuir panfletos...”
“ No jornal deve sair esta matéria...”
LÍDER 4º (Levanta) – Agora nós entendemos de lei trabalhista. Não será como naquele tempo, que as carteiras profissionais eram assinadas quando eles bem queriam (Senta).
LÍDER 5º (Levanta) – Temo que enfrentá a poliça com pau e pedra (Senta).
LÍDER 6º (Levanta) – Até mesmo com o sacrifício da própria vida (Senta).
LÍDER 7º (Levanta) – Eu não tinha direito a Instituto e a minha esposa deu à luz na indigência. Eles me pagam...(Senta).
FLÁVIO (Corta. Levanta acompanhado pelos demais) – Então companheiros, estamos combinados. Faremos tudo para o bem de nossa nação (Levanta o braço direito com o punho cerrado). Atenção: meia noite em ponto!
Retiram-se, conversando um por um, com vozes inaudíveis.
Pausa.
Silêncio.
FECHA A CORTINA
CENA III
CENÁRIO – O mesmo das cenas anteriores.
Ao abrir-se a cortina já é dia vinte e um de agosto. Militares (Uniforme: brim verde-oliva, capacetes, mosquetões...) e PMs (Fardamento : brim cáqui ruço, armados cassetetes tamanho família). Encontram-se na Rotunda, junto a patrões e empregados (Os empregados, em maioria, de macacão e alguns com bonés).
Vozearia dos grevistas.
CAPITÃO (Uniforme idem, capacete com três estrelas, idem sobre as platinas. Voz alta) – Silêncio! (Com a mão no revólver) Tenham calma... (Noutro tom) quero falar com o comandante de vocês.
FLÁVIO (Com ar espantado, se apresenta) – Pronto!
DOUTOR CORK (De chapéu, prepara o charuto, tira o selo do meio, lambendo-o bem e morde a ponta, pondo-o na boca, entre os dentes. Acendendo-o, benigno, para os grevistas) – Vamos negociar, minha gente (Coloca a mão em cima de Flávio e do Capitão).
Vaias
2º GREVISTA (Em voz alta, irritado) – Agora eles querem negociar. Antes, não quiseram nem ouvir a gente!
3º GREVISTA (Sujo de graxa, com uma bicicleta) – Nós aceitamos somente 35%...
Vozearia. Gritos e tumulto. É formado um cordão de isolamento, por militares.
4º GREVISTA (Agride um dos policiais militares) – Confia ma farda é, seu porra?
VOZES – “Quede a tua combléia?”
“Deixei em casa, pra que?, dois tiros e uma carreira.”
“Eu prefiro a minha faca.”
“Opa!”
“Cabeça de glória, cu de purgatório.”
Risos abafados.
DOUTOR CORCK (Alarmado, com voz abafada ao capitão) – Vou telefonar para o general...
O chefe do tráfego (CHT) sai correndo, com a mão no chapéu-do-chile, com o seu “Havana” pelo meio, apagado, e desaparece.
Vozearia dos grevistas.
5º GREVISTA (Com dois braços erguidos, em voz alta) – A Companhia é nossa.
2º GREVISTA (Gesto obsceno para os militares) – Fora os militares! (Em voz alta) Milicos assassinos!!!
3º GREVISTA (Agride o 2º GREVISTA com um soco, desmaiando-o) – Toma, pra saber respeitar...
6º GREVISTA (Enfurecido, quebra a bicicleta do 3º GREVISTA e joga-a em cima dos militares) – Agora, me matem.
Os militares apontam as armas, com as baionetas caladas para os grevistas. Em seguida, o Capitão ordena que atirem para o ar.
2º MILITAR (Uniforme idem, capacete com 3 divisas, idem nas mangas. Com horror, em voz alta) – Eles estão com “coquetéis molotov!”
5º GREVISTA – Eles estão atirando com cartuchos de festim!
CAPITÃO (Agitado, retira do cinto uma bomba de gás lacrimogêneo e joga em cima dos ferroviários-grevistas, produzindo fumaça) – Comunistas de um figa, agitadores, tomem o que merecem (Em voz alta) Vocês não são brabos?
Vozearia
Ouve-se o apito da “Maria Fumaça”. Música “O trem”. Os grevistas ficam atônitos ao ver o trem parar.
Fumaceira
2º GREVISTA – Furaram a greve! Olha um trem cheio de soldados...
VOZES – “Prenderam Flávio com a mauser”.
“A Polícia está revistando quem atravessa a linha.”
“Não adianta.”
“Não façam isso, eu tenho mulher e filhos.”
“Não tenho culpa.”
“Por que não ficou em casa?”
“Para, para.”
“Tomaram a peixeira de Zé Pedro”
“Eu confio é no meu simituesse (Smith & Wesson).”
Neste momento, a Rotunda é subitamente invadida por tanques de guerra, carros de choque da Polícia do Exército (PE). Vê-se parado um trem de tropa do Exército, som de corneta, soldados desembarcam com armas na mão pela plataforma da Estação, sob o comando de um Oficial Superior de gabardine verde-oliva, com megafone da mesma cor, idem para os grevistas. O capitão presta sua continência regulamentar ao receber as ordens de seu superior hierárquico. Incontinenti, retira uma pistola do cinto e aponta para os grevistas. Ao acioná-la, sai uma substância química de efeito moral, provocando disenteria. Os soldados, em posição de “cunha”, com as baionetas caladas, atiram fulminantemente em direção aos grevistas. Ouvem-se tiros. Homens, mulheres e crianças saem correndo para todos os lados, sem destino, seguidos por militares atirando a esmo.
Fumaceira.
Toque de corneta.
Silêncio. Ouve-se o hino da Independência.
POVO DO ARRAIAL
“Já podeis da pátria filhos/Ver contente a mãe gentil. Já raiou a liberdade/No horizonte do Brasil/Brava gente brasileira/Longe vá temor servil/Ou ficar a pátria livre,/ Ou morrer pelo Brasil...”
O Hino à Independência do Brasil (letra de Evaristo da Veiga e a música, do então Imperador D. Pedro I) continua durante toda a cena de violência. Fecha-se lentamente a cortina. Vê-se alguns grevistas mortos, outros moribundos estendidos, na casinha-de-fossa, em torcicolo, feridos, espancados, machucados... Alguns sendo fuzilados na jaqueira, grevistas cambaleando pelo matagal...
A cena, quase às escuras pela fumaça. Abre-se lentamente a cortina, e aparecem alguns líderes, escoltados por soldados, todos cagados e com os olhos lacrimejando, comicamente tristes olhando para a platéia (Fica a critério da direção a relação ator/espectador). Um dos soldados cai, com ataque epilético (Sugestão: comprimido efervescente na boca provoca espuma junto à saliva).
“O trem”
TREM – Café com não/Bolacha não
Café com não/Com não, com não,
Com não...
Fumaceira
FECHA A CORTINA
FIM DO SEGUNDO ATO
Nota – Extraído do teatro “Trem & Trens”, pp. 39-46 – ed. 1990