Toda nudez será castigada
Prostituta e/ou santa? É a pergunta a ser feita em relação a personagem Geni da famosa peça "Toda Nudez Será Castigada", escrita por Nelson Rodrigues em 1965.
Já havia lido a peça e assistido ao filme homônimo feito por Arnaldo Jabor em 1973, mas confesso que a montagem da Cia. Arlecchino dirigida por Kalluh Araújo impressionou-me profundamente. As atuação brilhantes de Cléo Carmona (Geni) e Paulo Rezende (Patrício) dão um sabor especial ao espetáculo.
A peça mostra o drama de Herculano, um viúvo que, tendo prometido ao filho nunca mais se envolver com uma mulher após a morte da esposa, acaba se apaixonando pela prostituta Geni, graças as artimanhas de seu cínico irmão Patrício. O tom dramático da peça gira em torno do problema do sexo como força avassaladora capaz de destruir a ordem instaurada. Ao mesmo tempo, é também o que redime o ser humano. Geni, personagem que lembra muito a Sônia (prostituta de “Crime e Castigo” de Dostoiévski, livro que Nelson admirava muito), é aquela que arruína e redime o destino de todos os outros personagens: Herculano, As três tias (que, como Moiras, buscam tecer o destino dos sobrinhos) e o jovem Serginho. O único que passa aparentemente imune a qualquer transformação é o irmão de Herculano, Patrício, o niilista da peça, o personagem para o qual não existe salvação.
O cenário da peça merece uma atenção especial: três cilindros de metal que, quando girados, revelam cada um dos ambientes da peça. A trilha sonora vai da Ave Maria de Schubert a Waldick Soriano. Em um momento da peça as três tias cantam juntas “O Fortuna”, trecho de Carmina Burana de Carl Orff, o que fortalece a analogia com as mitológicas Moiras.
Em certo trecho de “Crime e Castigo”, Raskólnikov se ajoelha aos pés da prostituta Sônia e, ao ser indagado por ela acerca daquela ação, responde Raskólnikov: “Eu não me ajoelhei diante de ti, mas diante de toda a dor humana”. Impossível não recordar tal cena quando, ao fim da peça, Geni aparece crucificada, como um novo Cristo, “qui tollit peccata mundi”. A peça possui uma força rara de se ver no teatro brasileiro atual. Vale a pena assistir.