A Alma de Geni ou Um Mundo Mágico em Foz.

Resenha do espetáculo musical As Mulheres (baseado na obra de Chico Buarque), da Companhia Vida é Sonho,

apresentado, em Foz do Iguaçu, no dia 28/4/2013.

Marco Roberto de Souza Albuquerque,

3.º período de Letras – Artes e Mediação Cultural da Unila.

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Entre outras facetas da obra de Chico Buarque (compositor e intérprete), está a de escultor de perfis de mulher: são famosos os seus eus-líricos femininos, eternizados em canções como, entre outras, Atrás da Porta, Tatuagem, Teresinha. Outra faceta também célebre do carioca é a análise (lírica, carregada de símbolos) que ele fez do contexto político em que viveu, marcado, em grande parte, pelos Anos de Chumbo (os quais até valeram, ao artista, um autoexílio, na Itália, entre 1968 e 1970). Desse viés temático, saíram obras do naipe de Apesar de Você, Meu Caro Amigo e O que Será – À flor da Pele.

Ambos esses aspectos foram (bem) apresentados no musical As Mulheres, da Companhia Vida É Sonho, levado a cabo no último domingo (28/4). O eixo narrativo (argumento) da peça é a vida de Beatriz: como a Dorothy de O Maravilhoso Mágico de Oz, ela também se vê arrebatada por uma sorte de furacão (a morte da mãe); e, como o Dante da Divina Comédia, ela também se vê tutelada por mãos de artista, que a conduzirão por um inferno, cheio de realizações e perigos: a própria vida.

No diálogo inicial (antes da morte da mãe), Beatriz revela querer ser artista; a mãe (tomada pelos já proverbiais cuidados maternos) busca dissuadir a filha: melhor é uma vida convencional, com marido e filhos, porque os artistas (o foco, nesse caso, são os artistas cênicos: a trupe por excelência) têm uma vida acidentada e errante. Quando a mãe “parte”, Beatriz vê-se justamente amparada por uma companhia de arquétipos cênicos: a bailarina, o arlequim e outros que tais.

O primeiro choque entre esses dois universos é a dicotomia estabilidade-instabilidade: Beatriz está, cenicamente, num lar (quarto e cama); e a trupe, que perambula de um lado para outro, não conhece essas comodidades. Todas as personagens pertencem ao imaginário infantil (Beatriz, uma menina; e os artistas, personagens-símbolo de obras infanto-juvenis). Pessoa e personagens terão (para sobreviver) de amadurecer juntos. Assim, transformando a cama de Beatriz numa carroça (símbolo do conforto possível nas andanças pelo mundo), todos partem, não pelo mundo, mas pelo tempo.

Na sequência, Beatriz, que adormeceu menina, acordou mulher: uma moça. Agora, genericamente mais marcada, começará sua incursão pelo universo do amor (e do sexo) e da realidade (os homens, sua política). Nesse ponto, bifurcam-se (mas completam-se) o Chico dos perfis de mulher e o Chico das canções políticas. O tempo, em cena, são os Anos de Chumbo. Aquela trupe, que também cresceu, deixou os pierrôs e as bailarinas para atuar no teatro do tipo Arena, cujo cunho social levou, à prisão, alguns membros. Aparecem os “aparelhos” (casas ou apartamentos onde se reuniam os militantes de esquerda), o DOI-CODI, as manifestações e a repressão. Ao mesmo tempo, Beatriz vê-se às voltas com o amor e o desejo: conhece João (um dos artistas-militante daquela companhia), o ciúme, a disputa, os anseios e os temores que marcam a viagem pelos meandros da sexualidade e seus mistérios.

Ponto alto da interpretação coreográfico-musical é a encenação de Roda-Viva: muito feliz a resolução cênica em que a manifestação e a repressão bailam no espírito mesmo da roda-viva, a qual, na definição do Houaiss[1] é “movimento incessante; AZÁFAMA. Confusão, desordem”. No tumulto (que representou bem a violência da situação), prendem-se, batem-se, arrastam-se: toda a energia do “Roda mundo, roda gigante/Roda moinho, roda pião”, de que se nos reveste a vida em seu incessante (às vezes, violento) devir.

Quanto à interpretação teatral, o ponto alto é a interpretação de Geni. A trupe e Beatriz, dada a violência da repressão, acabam no submundo. E aí, mais uma vez, Chico. Ele soube muito bem representar o obscuro universo das “perdidas”: Folhetim e Bastidores são algumas das peças em que mulheres da boêmia (prostitutas ou cantores de cabaré) são retratadas em sua via-crúcis do desejo fácil ou do amor agônico. E é nesse ambiente onde Beatriz (deixada no altar por João, que foi preso pela repressão) conhece Geni.

O que encanta, em Geni, é que, com poucos trejeitos, desperta a empatia do público. Numa cena emblemática, em que Geni apresenta, a Beatriz, o prostíbulo, enquanto esta lhe apresenta seus sonhos (frustrados) de matrimônio, o travesti foi muito bem interpretado: em vez do caminho fácil (o exagero de trejeitos), o ator foi econômico, dando leveza ao travestismo da personagem. Com poucos movimentos femininos e entonação em baixo falsete, muitos foram os risos extraídos da assistência.

Aliás, as interpretações masculinas foram mais expressivas do que as femininas. Além de Geni, duas personagens masculinas (que representaram uma inserção clown na peça), representando dois irmãos pícaros na peça, foram muito muito bem interpretadas ao longo da apresentação. E as personagens antagonistas (que representam os artistas que “passaram para o outro lado”), também masculinas, foram igualmente bem apresentadas: são convincentes, porque não encarnam o expediente fácil do maniqueísmo; não são más: apenas encarnam, mais ostensivamente, o lado obscuro (e latente) de todos nós.

As personagens femininas (conquanto majoritárias no palco e patentes no título) não tiveram o devido destaque interpretativo. A razão pode ter sido a interpretação musical (forte, nas cenas com personagens femininas) ainda por aperfeiçoar. Um exemplo foi o dueto em O Meu Amor: duas personagens (aos olhos de Beatriz!) disputam a João. A densidade da cena não conseguiu a devida reverberação na voz das atrizes, e a cena ficou boa, mas sem a força expressiva requerida pelo duelo de mulheres (diante de uma terceira!) por um mesmo homem.

Todavia a obra merece nova temporada: o texto é bom; o tema, imortal; e a companhia, toda formada de jovens artistas, promete. Feitos uns ajustes, acrescidas algumas inovações, a peça ainda rende muitas (e boas) apresentações, especialmente se dirigidas a um público adolescente, que poderá espelhar-se na viagem de Beatriz pela complexa estrada de tijolos amarelos, que é a vida mesma.

A alma de Geni foi o ápice da peça na apresentação do último dia 28, mas nada impede que, com uma nova preparação de elenco, as mulheres desabrochem (com igual vigor e viço) na interpretação das jovens atrizes. No palco, essas Dorothys podem mostrar, no palco, um mundo mágico em Foz: o teatro, esse “espelho fiel dos abalos ideológicos”, nas palavras de Alfredo Bosi[2].

[1] Disponível em: http://aulete.uol.com.br/roda-viva#ixzz2S3PgoMre Acesso em: 1.º/5/2013, às 12h13min.

[2] História concisa sa literatura brasileira. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 105.