“Eu acuso o céu”

Análise da obra:

“Eu acuso o céu” de Dias Gomes

A seca não atinge toda região nordeste. Ela se concentra numa área conhecida como Polígono das Secas. Esta área envolve parte de oito estados nordestinos (Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe) e parte do norte de Minas Gerais.

Suas principais causas são naturais. A região está localizada numa área em que as chuvas ocorrem poucas vezes durante o ano. Esta área recebe pouca influência de massas de ar úmidas e frias vindas do sul. Logo, permanece durante muito tempo, no sertão nordestino, uma massa de ar quente e seca, não gerando precipitações pluviométricas (chuvas).

O desmatamento na região da Zona da Mata também contribui para o aumento da temperatura na região do sertão nordestino.

A seca, além de ser um problema climático, é uma situação que gera dificuldades sociais para as pessoas que habitam a região. Com a falta de água, torna-se difícil o desenvolvimento da agricultura e a criação de animais. Desta forma, ela provoca a falta de recursos econômicos, gerando fome e miséria no sertão nordestino. Com alimentação precária e consumo de água de péssima qualidade, os habitantes acabam vítimas de muitas doenças.

O desemprego nesta região também é muito elevado, provocando o êxodo rural (saída das pessoas do campo em direção as cidades). Muitas habitantes fogem da seca em busca de melhores condições de vida nas cidades.

Autores nordestinos da época aproximadamente anterior a “Eu acuso o céu” apropriaram-se da seca como tema recorrente em suas obras. Exemplos deles são Graciliano Ramos (1892-1953) e Raquel de Queiroz (1910-2003), com Vidas Secas (1933) e O quinze (1928); respectivamente. Embora o baiano Dias Gomes o tenha abordado nesta obra, não é, de fato aí, que se dá propriamente o foco.

Os personagens se caracterizam em duas famílias de distintos elementos inatos culturais. Embora ambas de cotidiano simples e difícil, na labuta atrelada à significância da vida e busca dos sustentos. De um lado o povo da lavoura; tendo a terra enraizada na fé, amor, fidelidade e inclusive como condutora principal de qualquer perspectiva mínima de futuro. De outro, pescadores que na mesma intensidade faz do mar a própria existência e sepultura. Ambas as famílias se encontram em momentos de fuga, tais quais fazem dos fenômenos naturais forças antagônicas que se digladiam. Este dualismo quiçá sirva como retrato fidedigno da natura humana. Elementos como medo e coragem oscilam entre amor e ódio numa expectativa exagerada de uma vida fundida com tais valores.

“...A mim elas não engana. Eu sei quando elas vem. A jandaia foge, esbaforida, a seriena corre, como se visse lobisome. A gente nunca acredita. E fica, e resiste. Acaba a paçoca, a gente come bró, bebe o sumo da folha do xiquexique. Sempre esperançoso, sempre não acreditando. Mas acabam os uricuris, morre tudo quanto é pé de xiquexique. Morre tudo em volta de nós. Morres o gado, a plantação, até a terra morre. E a gente persiste, querendo vivê. E se teimá morre também.”

Jerônimo- Dono da plantação de fumo.

O dia cruelmente ensolarado mostra que precede uma grande seca, Anselmo enfrenta as conseqüências de uma terra castigada; a sede, o calor e o cansaço parecem vir como vingança pela fuga do mar. Passa a viver na lavoura junto com a família que o acolheu. Um pescador não pode se adaptar à vida na terra. “Agora que eu vi como a terra é má é que eu sei dá valor ao mar”. A saudade confunde-se com o sofrimento e o conseqüente arrependimento de ter se distanciado do mar. “E como não odiá a terra? Se ela deixa a gente morrê assim, de sede e de fome! Parece que cobiça o nosso cadáver. E é só pra isso que ela serve: para sepultura”. A sensação agora é de ingratidão com sua provedora, que deu a dor da morte com a perda de sua mulher e filha e também lhe concedeu o peixe e a força que o mantinha com significância para viver.

Em contrapartida a família da lavoura vive um momento difícil de estiagem e a resposta de Liana pela defesa da terra é inevitável, já que sente como se fosse um ataque particular. “Ela (a terra) não tem culpa (...). Quando se enfeita toda para recebê de volta as seriemas e as jandaias (...). É tudo tão bonito! Tudo verde... é então que a gente vê como a terra é amiga da gente. E perdoa pela ingratidão da seca.” Constantemente os elementos naturais (terra e água) são personificados como prova de fé, permitindo que as ofensivas sejam paradoxalmente trocadas entre as famílias.

O valor é enfatizado o tempo todo como fidelidade a cada “habitat natural”. Quando Anselmo diz: “O mar é sempre amigo, não é egoísta, não rouba a liberdade da gente. No mar a gente é livre! (...) Há 10 anos que vivo preso à terra , fugindo do mar”. Ele ataca a terra por “escravizar” as pessoas, comparando à mulher “que ilude a gente pra nos prendê” e justificando assim, que se sentindo preso não tem como voltar ao seu mundo. “ Na terra, nunca se é livre, porque a terra sempre tem dono. E o mais forte engole o mais fraco. No mar, não. O mar não é de ninguém, é de todo mundo. No mar a gente é livre (...)A terra é escravidão , o mar é liberdade”. Os personagens colocam seus “lugares” comparados a uma disputa de casal comum, apontando defeitos e qualidades, defendendo-os como se poupassem a própria história. Essa alusão leva a crer que o autor usou uma metáfora poderosa para sublinhar a necessidade humana de criar culpa e apontar culpados, geralmente os sorteados são os próprios companheiros, fazendo o papel de descarga para obter sensação de extinguir da consciência os próprios e mesmos defeitos apontados.

A fragilidade da mulher é posta em cheque pelo autor, que coloca as personagens com a forte característica de fortaleza e bravura. Símbolo feminino do sertão, Maria Bonita se assemelha às atitudes de Liana quando afirma que na seca, todos são iguais e ela pode agüentar a falta de água como qualquer outro. Na volta para o sertão, ela impõe que o dinheiro do trem seja poupado, já que todos têm canela para fazer o caminho a pé. Rosa, por sua vez, mostra um discurso menos impositivo, porém aponta a fragilidade do homem frente à mulher: “Não é porque vocês são homens que podem gritar, não prestam pra nada. Só sabem mandá, reclamá. Pois eu sou mulhé, mas faço qualquer serviço de homem (...). Eu, que sou mulhé, bebo mais que qualqué um de vocês e nunca arreei a vela.”

O dia de São José, mais do que um feriado é dia de esperança para o homem do sertão. De expectativa, de espera pela chuva, de profissão de fé no santo. Quase um mito. Mas nem sempre o medo de uma anunciação iminente isenta o homem de sua intocável fé: “ Não posso tê fé em Deus, se Ele deixa a gente morrê assim. Deus não pode sê nosso amigo. Às vezes eu tenho a impressão que Deus é a terra. Esta terra seca, dura, que mata o nosso fumo, a mandioca, que não ouve o mugido do gado rojando nela o focinho, louco de sede! Essa terra infame (...) Esta terra miserável! Ingrata. Que eu tenho vontade de surrá! De Chicoteá! De matá!” . Neste momento Pedro demonstra revolta e a atribui a Deus , descaracterizando sua fé tão inquestionável! Liana logo retruca para não deixar seu irmão proceder tantos absurdos e injustiças, pois na falta de mãe há de ser a terra personificada que suprirá esta falta: “A terra também sofre como a gente. Ela também precisa de água, ela também tem sede, como a gente. Mas resiste. Resiste porque é forte e nossa amiga. Porque sabe que quando a magrém se fô e voltá o tempo do verde, a gente volta também pra ela arrependido. A terra é nossa mãe, Pedro”. Jerônimo afirma que eles são filho e por isso sentem amor pela terra. Até Anselmo “agarrou” ali uma possibilidade de proteção como alicerce para sua dor: “Como se eu tivesse criado raiz, e a vontade que eu tenho, não é de arrancar essa raiz. É de engrossá, multiplicá, vará com elas a terra toda, pra depois renascê numa porção de árvores”.

Há indícios que essa raiz que o prende seja Liana, mas o autor não deixa explicito se há algum sentimento mais profundo de desejo por ela, que se parece muito com sua filha falecida.

Agora a importância não se dá mais na terra. No mar eles têm novas leis de sobrevivência. Há uma força maior, que impera e reina a Senhora absoluta de todas as águas. Há sim, uma força que ordena e não pede, que manda e decide sobre a vida dos pescadores, de todos que se aventurarem a entrar em seu território e de todos aqueles que têm vistas para alcançar o verde de seu mar. Ninguém pode se atrever a dizer que não é vassalo servil do grande reino de Iemanjá. Porque de fato, Ela é a Rainha das águas. A tranqüilidade na superfície do mar, ou a tempestade rugindo, as ondas quebrando-se sobre as embarcações ou sobre as praias, tudo é conduzido pela sua mão suprema.

Liana tem oportunidade de sentir-se como Anselmo sentia na sua terra. Era hora de ofender o mar. Havendo assim troca nos papeis de “agressor” e “agredido”, isto se verifica quando ela tece tal comentário sobre o mar “É como uma suçuarana, traiçoeira, dormindo na tocaia, pronta para dá o bote. Não gosto dele (...). Mas a terra não é traiçoeira. A terra avisa. Só morre de sede quem qué. Muitos mês antes, a terra avisa. Da tempo da gente fugi. Só morre quem tem mais amor à terra que à vida. Mas o mar não.” Pedro também tem sua opinião: “ ...Até pra morrê a terra é melhó que o mar. A terra tem calô... É assim como uma mulhé, que a gente aperta nos braço e sente o calo do corpo, a batida do coração. O mar não, o mar é frio, sem alma”. A mesma terra que abriga-nos no descanso do seu leito, que dá vida, e faz brotar nosso alimento.

Embora Rosa seja mulher do mar, sendo como ondas tendo seu lado arredio por ciúmes e raiva, e outros de calmaria por respeito e saudade, ajuda a apontar no mar (mitificado na figura de Iemanjá) a culpa por quase tudo: “Toda mulhé odeia o mar. Odeia porque tem ciúme. Um pescadô pode abandonar a mulhé; o mar ele nunca abandona. E, quando abandono, volta de novo, como Anselmo. O mar governa eles. Faz o que quer. E um dia, Iemanjá deseja um deles, leva, nunca mais traz.” Ela se mostra tão envolvida com a “verdadeira identidade do mar” que tem ataques de cólera e devaneios pela perda abrupta do marido pela Rainha do mar: “ ...Tá ouvindo como geme? A safada! ... Isso é pra me fazê ciúme. Qué mostrá que o meu home ta cum ela”. Foi também provavelmente por vingança às zombarias de Pedro, que ele quase morre. A natureza revida pra mostrar quem tem mais força, como tentando assim exigir respeito, tal qual homem com a moral ofendida.

Mesmo sendo o homem mutável, ele tende a agregar-se aos valores da família, da cultura e do local, dificilmente abandonará suas raízes, independente dos obstáculos e “buracos” que envolvem tais processo de pensamento, por isso mesmo buscam apontar responsáveis pela miséria e descuido da terra, ou insensatez e falsidade do mar. Descobre-se que a culpa vem de cima. São a chuva e o vento que governam as vidas. Anselmo passa a ficar bem melhor depois dessa descoberta: “... Foi por causa da ventania que virou meu saveiro que eu perdi minha mulhé e filha e me embrenhei pelo sertão. Por falta de chuva no sertão que eu voltei e eles vieram comigo. E agora, porque ta chovendo lá, é que eles voltaram. A terra e o mar não têm culpa nenhuma! A culpa é do vento e da chuva! Vem de cima! (...) A culpa é do céu!” A satisfação de um assunto decodificado não tem tanta relevância para sua fé, já que dedica sua espera mortal para o fundo do mar.

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Shauara David
Enviado por Shauara David em 05/01/2010
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