Rei Lear, de Shakespeare
Rei Lear, de Shakespeare. A ilusão do Poder
“... Farei cessar a arrogância dos atrevidos, e abaterei a soberba dos violentos.’ ( Is. 13: 11)
" É muita morte, muita tragédia!" Isso é o que os alunos sempre falam ao lerem ou assitirem ao filme. Sim, este é o mundo da política e do poder, retratado por Shakespeare em Rei Lear. O poder mata todos aqueles que o almejam , sem escrúpulos.O governante que não ama a verdade, torna-se cego às necessidades do seu povo. Não é isso o que presenciamos todos os dias, quando nos jornais vemos a injustiça triunfar sobre as lágrimas das mães que perdem seus filhos sem que a justiça seja feita? Não é a corrupção que nos deixa indignados, a morte da moral e da ética no cotidiano de muitos ‘respeitáveis ‘ políticos? Não seria a impunidade a tragédia brasileira?
A história do velho pai e suas três filhas é um conto popular dos mais antigos. Geoffrey of Monmouth que escreveu a Historia regum Britanniae, em mais ou menos 1137, chamava o velho rei de "Leir" . Durante a vida de Shakepeare, essa história foi contada por escrito e através de peças, no mínimo quatro vezes. (Harrison & Mc Donnell, Introduction.)
Rei Lear é uma das peças que segundo alguns estudiosos seria baseada em fatos reais acontecidos na Inglaterra, chega-se a dizer que Sir Brian Annesley teria sido declarado insano pela filha mais velha por motivos interesseiros, mas que a filha mais nova Cordell o teria defendido. Diz-se também que William Allen, prefeito de Londres teria sido tratado muito mal pelas filhas, depois de dividir seus bens entre elas. https://thebillshakespeareproject.com/2016/04/king-lear-sources-part-three/)
Escrita por volta de 1605, Rei Lear conta a tragédia do velho monarca que resolve abdicar do cargo e dividir seu reino entre as três filhas. O velho pai e rei propõe um teste para saber quem mais o amava, as filhas deveriam expressar por palavras o seu amor. Quem melhor se expressasse ficaria com a maior parte do reino. Goneril e Regan as mais velhas, com argúcia e eloqüência, fizeram belos discursos, Cordélia , a filha mais jovem e favorita do rei, a que realmente o amava, permaneceu calada e disse que não conseguiria trazer à boca o seu coração. O rei entendendo a sinceridade da filha como desprezo , a deserda. O Rei da França que amava Cordélia a leva consigo para a França, mesmo sem a bênção do pai.
Após dividir seus bens entre Goneril e Regan, Lear percebe o seu erro e o verdadeiro caráter das filhas se revela. Sem querer acreditar que as filhas o estão traindo,e pelos maus tratos para com o rei ancião, pouco a pouco Lear vai perdendo o Juízo.
Enquanto isso, um nobre chamado Gloucester também experimenta problemas familiares. Seu filho ilegítimo Edmundo trama contra o filho legítimo Edgar. Gloucester acreditando que o filho é realmente um traidor o deserda. Edgar então foge se disfarçando de mendigo louco, como Lear, que agora também vaga sem rumo, por não ter onde habitar . Quando Gloucester percebe a trama das filhas de Lear, resolve ajudá-lo arriscando a própria vida. Regan e seu marido Cornwall descobrem e o acusam de traição, furando-lhe os olhos, pelo que ele sai a vagar, e acaba sendo guiado pelo próprio filho Edgar, que o leva até Dover, para onde Lear, muito doente está sendo trazido.
Em Dover um exército Francês conduzido por Cordélia, a filha mais nova, tenta salvar o velho Lear.
Edmundo , o filho bastardo de Gloucester, se envolve com Goneril e Regan . Goneril e Edmundo planejam matar Albany, marido de Regan. Enquanto isso as tropas alcançam Dover e os Ingleses, comandados por Edgar derrotam Cordélia que é levada presa junto com Lear e por trama de Edgar é enforcada. Lear não suportando ver a filha morta, também morre.
Edgar mata Edmundo em um duelo. Gloucester também morre. Goneril envenena Regan por ciúmes de Edmundo e se mata, quando sua traição é revelada por Albany.
No fim, Albany e Edgar tomam conta do país sob uma nuvem de dor e pesar.
O velho rei acostumado a ser bajulado e tratado como um deus, amava sua filha, mas queria ouvir elogios. A derrota do governante começa quando ele, detém o poder como se fosse poderoso. O homem em sua essência é frágil e mortal. O poder mata o dirigente que não consegue discernir a verdade da mentira. A sinceridade da filha foi interpretada como desprezo.
A cena da tempestade é a mais importante da peça, quando o velho rei, nu , ao relento sofrendo debaixo de forte tempestade reconhece que é nada. Quando se despe da vaidade, considerado agora louco, é que consegue ver a verdade. Essa tempestade acontece dentro dele que até então vivia de ilusão, pensou ser o que não era e drasticamente a vida jogou-lhe na cara a sua condição. O grande rei enfrenta agora sua mortalidade, o encontro com sua própria natureza:“ Nem dos sábios nem dos tolos esta tempestade se apieda hoje.’ Diz o texto. O poderoso rei se iguala ao seu bobo, a máscara de imortal cai. O bobo e o rei na chuva mostram que todos os homens são iguais e sofrem, cada qual a seu modo da sua fragilidade.
O rei agora pobre e nu , ao relento descobre sua verdadeira identidade, mortal e frágil como qualquer de seus súditos: “ Quem pode vir me contar quem em verdade eu seja?”
Ambos Gloucester e Lear sofreram as consequências de não amarem a verdade das coisas, obsecados pela aparência da posição que ocupavam. Pensaram ser a embalagem mais importante que o presente.Trocaram a essência pela aparência.
O poder engana, o poder mata. A tragédia é o que detém o poder achar que é poderoso.
Quem triunfa ? Há justiça no mundo? Os poderosos é certo, destroem-se a si mesmos. O poder os engole. Como diz Edmundo no início, quando arquiteta o plano maligno para acusar o irmão : “ o bastardo vence o legítimo.” É claro na peça que o desejo de poder e a inveja são o próprio mal encarnados alimentando o homem sem caráter, o filho ilegítimo .
Infelizmente, vemos a natureza bastarda do homem, distante do pai, tomando lugar, da natureza divina. A bíblia descreve a natureza do homem como sendo filho da escrava quando dá lugar aos seus instintos maus e filho da livre quando busca a sua essência de filho legítimo do pai eterno.
Segundo Lear “ quando a doença maior penetra, as outras não se sentem..’ A maior doença do homem, é se enganar quanto a sua essência. Arrogância, diz a bíblia precede a queda. O homem só pode encontrar-se a si mesmo, a partir do momento que se humilha. Lear declara: “ Ai do que se arrepende tardiamente...” A arrogância e a ilusão são irmãs gêmeas, filhas da cegueira.
Quantos na história se colocaram como essenciais e caíram? O marxismo que declarou a morte de Deus durou menos de 80 anos na Rússia. Um estado todo poderoso dando lugar ao indivíduo foi o que Brecht proclamou em seus poemas. Onde está hoje esse estado que pode dar vida ao homem? Em que se tornaram os líderes comunistas ? Assassinos dos próprios amigos.
Segundo o Bobo ‘ louco é quem se fia na mansidão do lobo, na saúde do cavalo, no amor de um rapaz e no juramento de uma prostituta.’
O ser humano é essencialmente mau e frágil , mas “ O corpo removei ! Luto geral vai ser a nossa ocupação precípua. Amigos d´alma governai o Estado, que tão ferido se acha e malfadado.”
Em meio à tragédia humana, sempre haverá sobreviventes, os amigos d´alma... Aqueles que apesar dos golpes da vida, não se renderam ao filho bastardo, mas lutam confiantes na vitória do filho legítimo – o homem nascido segundo a imagem do seu criador. Que acredita na ética e na decência.
Há sempre vida que brota do sacrifício, Cordélia foi sacrificada pelos erros do pai. Ela que legitimamente amava o pai. A identidade do homem é sempre sacrificada pelos erros da alma. Há um luto geral , um rastro de sangue na história da humanidade. Mas a tarefa dos homens é governar o Estado ferido.
A alma ferida do homem só encontra alento na vida que brota da morte, é preciso morrer o filho bastardo dentro de nós e fazer viver o filho legítimo, à imagem e semelhança do pai.
Referências
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?
Rei Lear. Produção:David Plowright. Direção: Michael Elliot.1984.
http://www.sparknotes.com/shakespeare/lear
Bíblia Sagrada, Ed. revista e atualizada, trad. J. Ferreira de Almeida, Galátas: 4:29-31
Harrison, G.B. & McDonnell, Robert F. King Lear - Texts, sources, criticism. Harcourt, Brace & World, Inc. 1962.
https://thebillshakespeareproject.com/2016/04/king-lear-sources-part-three/