"UMA PULGA PRA DOIS RABUGENTOS" Texto teatral de: Flávio Cavalcante

“Uma pulga pra dois rabugentos”

Comédia

De

Flávio Cavalcante

ROLL DOS PERSONAGENS

Artur

Miguel

Catarine

SINÓPSE

Fazemos aqui uma lembrança em forma de comédia de várias obras e passagens nas mais variadas décadas, que marcaram a história do país. Lembramos alguns escritores que repercutiram na mídia, como Machado de Assis, Osvald de Andrade e outros. Falamos de Satre e sua filosofia, de To Lose e suas obras em óleo, interpretando através de telas, pinturas reais de mulheres francesas de cabaré.

Dá até pra notar que se trata de um assunto muito sério. Realmente, mas, pra quebrar essa seriedade, mostramos um espetáculo divertido, uma caixinha de surpresa, onde o espectador não vai parar de mostrar seus belos dentes em forma de sorriso.

Com uma conotação espírita, a peça induz a se passar na época de Hitler, e narra a história de dois velhos rabugentos, enclausurados num esconderijo, que se presume ser num campo de concentração. Trata-se de dois amigos desunidos, que brigam constantemente, pelo amor da mesma mulher (Catarine). A conquista pelo amor desta mulher é algo cheio de surpresas, tanto para o espectador, como para os próprios personagens. Vale a pena conferir.

O autor e todo elenco, diretor e técnica, desejam a todos um bom espetáculo.

Flávio Cavalcante.

A cena inicia com um sapateado, lembrando a década de 20. Os dois fazem a coreografia. O cenário é uma sala velha com alguns móveis desarrumados. Uma janela de vidro. E em algum ponto do cenário, alguma coisa refere-se ao nazismo.

MIGUEL

Não dá Artur... Não tenho mais resistência física para agüentar este tipo de exercício... Dar para entender o que eu estou tentando falar? Minhas pernas cambaleiam como uma varinha de bambu. É cansaço! Mas temos que brincar de alguma forma, até pra esquecer a realidade em que estamos vivendo! Meu caro Artur! Admito que estou um tanto velho e...

ARTUR

(Com ironia). É, eu sei, meu velho amigo Miguel... Falas pra mim, como se isso fosse alguma novidade...

MIGUEL

(Sério como quem não gostou). Eu sei o que? Que novidade, Artur? Por acaso está concordando com o que eu falei?

ARTUR

Claro! Acho que você está coberto de razão... Nem o cinturão tem mais lugar pra prender a fivela! Primeiro sinal de velhice...

MIGUEL

(Explosivo). Pois fique o senhor sabendo que velho é o papaizinho, tá bom, senhor Artur? Falei dessa forma pra ver a sua reação, mas não vi nenhuma delicadeza de sua parte! (Falando consigo mesmo). Rabugento... (Artur cai em gargalhada).

ARTUR

(Sem entender). Como?

MIGUEL

Nada não... Estou me referindo aos meus botões! Ou não posso mais falar com os meus botões?! (Fala consigo mesmo novamente). Porcaria de velho...

ARTUR

Fale alto pra que eu possa ouvir, Miguel! Que diabo de cochicho! E também você falou alguma coisa, sim... E não foi com seus botões! Eu ouvi perfeitamente você falar a palavra... “rabugento”... E se meu sexto sentido estiver funcionando perfeitamente, você se referiu a mim... Ou estou mentindo?

MIGUEL

(Se fazendo de desentendido). Eu, Artur?! Claro, que estás mentindo! Não diga uma barbaridade dessas... Que você me deixa acanhado, sabia?

ARTUR

Você também me chamou de porcaria, Miguel... Eu ouvi perfeitamente!

MIGUEL

Eu não lhe chamei de porcaria! Eu não ia de hipótese nenhuma dizer uma coisa dessas para um amigo! Principalmente lhe chamar de porcaria, que é sinônimo de coisa que não presta, não é, meu caro Artur!

ARTUR

Ah, bom!

MIGUEL

Pra você ver que eu sou seu amigo! Nós somos amigos, ou não somos? Unha e carne, não é?

ARTUR

Perfeitamente!

MIGUEL

Muito bem! Conheço bem a sua rataria, não é verdade?

ARTUR

(Escandalizado). Rataria, Miguel? E isso é modo de tratar a minha família?

MIGUEL

É só uma forma carinhosa! Você sabe que eu sempre lhe considerei! Eu sempre lhe achei um cara maneiro, que presta realmente... Coisa que na sua adorável prole ninguém presta... Tá vendo como eu gosto de você? Lhe tirei do rolo... E o que mais me intriga é que você vive achando que eu estou lhe xingando...

ARTUR

Mas isso é um fato!

MIGUEL

(Espantado). Eu, Artur?

ARTUR

Você, sim senhor! Como pode ser tão burro assim, Miguel... Isto não é um comportamento de quem tem uma linhagem definida?

MIGUEL

Artur! Meu caro Artur! Quem tem linhagem, é cachorro! Você já me chamou de Burro, já me chamou de Cachorro... Você está ficando esquizofrênico! Daqui a pouco eu vou sair daqui fantasiado de pavão, com tudo que tem direito! (Começar a viajar e a se caracterizar). Uma manta rosa choque pra cobrir o pescoçinho, plumas e paetês, lantejoulas, só pra dar um toque no brilho, Sem esquecer do rabão todo enfeitado com enormes fitas coloridas! Já estou sentindo a própria Carmem Miranda! Uau... (Entra uma música de Carmem Miranda e Miguel dança delicadamente, deixando o Artur boquiaberto. De repente Miguel cai na real). Desculpas...

ARTUR

Desse jeito você está mais pra... (É atrapalhado pelo Miguel).

MIGUEL

Olhe bem o que você vai falar ao meu respeito, Artur! Eu apenas te chamei de rabugento... Pode me chamar de burro, que eu até admito... Mas isto que você está pensando, não... (Pausa. Transição). O que está me olhando?

ARTUR

(Com ironia). Nada não, meu caro Miguel! Não sabia que você tinha tanta tendência pra quebrar a mão com tanta facilidade! (Miguel faz expressão de furioso. Transição). Ah! Meu sexto sentido está funcionando perfeitamente! Então o rabugento não é você, sou eu!? Quem tem rabujo é cachorro... Mas como você falou, e insiste em dizer que somos irmãos, sem problema nenhum... Somos dois rabugentos! É olho no olho, dente no dente e quem sabe, focinho no focinho(Rir contido). Acho que este título realça muito bem em você, sabia Miguel?

MIGUEL

Pois está errado! Acho que ele realça maravilhosamente em você...

ARTUR

Em você fica bem melhor... De vez em quando eu lhe pego coçando a cabeça...

MIGUEL

Fica bem em você, Artur... Você mesmo me falou que ronca como porco e toma banho quase nada pra não gastar a pele... Admita amigo... Que o grande rabugento é você mesmo...

ARTUR

Não seja tão modesto! Realça pra Caramba, em você mesmo... Afinal de contas não foi você quem me chamou de rabugento!? Ou não?

MIGUEL

Claro, que foi com você! Eu jamais poderia de hipótese alguma, me chamar de rabugento! Coisas de sua cabeça, não é, Artur?.

ARTUR

Mas é que eu pensei...

MIGUEL

Pensou errado, Artur! Pela sua idade seu cérebro está linfático. Aliás, você sempre foi um lunático, não é verdade?... A ponto de fazer porcarias nas calças... (Artur começa a procurar algo). Procuras alguma coisa?

ARTUR

É! Pensei errado mesmo! Estou vendo que por maior que seja o ambiente não está propício para nós dois. (Transição vê o Miguel de costas com uma mancha na bunda). Vejo intencionalmente, que no interior do seu suspensório, do lado central da região glútea, ou melhor, dizendo, no centro do orifício bufante, tem uma leve mancha de coloração amarelo-esverdeada...

MIGUEL

(De salto). O que é que você quer com a minha bunda, Artur?

ARTUR

Não quero nada com a sua bunda decaída!

MIGUEL

(De salto). Bunda decaída, Artur? (Com raiva). Ora! Por favor!

ARTUR

(Tenso). Miguel... Oh, Miguel! Não deveria, mas, eu estou brincando com você... Não sei o porquê você insiste em bater na mesma tecla! Meu ouvido não é miquitório, Miguel!

MIGUEL

Não sei porque falas dessa forma, Artur! Não se pode desprezar uma palavra, por mais singela que ela seja! Tens mania de achar que eu falo asneiras, coisas frias, sem valor algum! Mas, porém, você esquece, que os mais singelos sonhos, no futuro por certo, se tornarão os grandes inventos da humanidade!

ARTUR

Qual o invento, por exemplo?

MIGUEL

O avião é uma grande opção!

ARTUR

Mas o avião já se tornou uma grande invenção... Hoje em dia, estão cada vez melhorados...

MIGUEL

Desculpe! É que a minha mente parece que anda condicionada no passado...

ARTUR

Prova que o lunático não sou eu, não é, meu amigo Miguel?

MIGUEL

Lunático ou não, não me interessa o que você pense ou deixe de pensar! A minha opinião é uma só, Artur! Nem sei o porquê estou lhe dando trela! (Contido). Energúmeno...

ARTUR

Vou fazer de conta que não ouvi...

MIGUEL

Ouviu o que? Desse jeito não dá pra conversar! Porém é melhor você pegar a sua cadeira de balanço e ficar esperando a hora...

ARTUR

Hora de que, Miguel? Da morte? Estas passando dos limites... Tu deves se achar muito jovem, não é verdade?

MIGUEL

Um tanto mais jovem que você, claro! Se tem alguém aqui, que deveria estar esperando a morte de braços abertos, esse alguém és tu...

ARTUR

E você, fica onde nessa?

MIGUEL

Tá bom, Artur! Vou amenizar a sua expectativa! Tá certo que eu também não sou nenhum garotinho, mas se tem que escolher quem a tão temida morte irá levar, entre eu e você, certamente, não tenha a menor dúvida que eu vou lhe escolher! Desculpe-me, mas, neste caso, devemos esquecer a amizade de lado! É uma questão de sobrevivência! Vá com Deus, meu irmão! Se precisar de alguma ajuda para o seu velório não se faça de rogado... Amigo é pra estas coisas mesmo! Mais uma vez vá com Deus!

ARTUR

(Com raiva). Vou com ele sim... Mas não pra onde você está pensando, querido... (Transição. Contido). Demônio...

MIGUEL

Fale o que quiser! É o lugar de vocês todos mesmo... À não ser...

ARTUR

À não ser...

MIGUEL

Nada não...

ARTUR

Começou tem que concluir...

MIGUEL

Podemos fazer um acordo monetário...

ARTUR

Acordo monetário, Miguel? Enclausurado nesse buraco? A qualquer momento estaremos entre os tantos que já se foram, e você vem falar em acordo monetário? Muito patético pro meu gosto...

MIGUEL

(Com raiva). Patético é você, Artur...

ARTUR

É você... Isso não combina pra mim...

MIGUEL

Em mim é que não combina... Idiota...

ARTUR

(Pega no pescoço do Miguel). Você foi longe demais! Eu vou acabar com a sua laia, seu rabugento cheio de pulgas... (Começa uma briga mortal dos velhinhos já fraquejados pelo tempo. A sonoplastia libera um barulho característico de um barulho de caminhão. Transição). Olhe, Miguel! Silêncio! Veja só! Olhe adiante!

MIGUEL

Estou vendo! Eles não estão indo passear! Os tempos já não são os mesmos, Artur...

ARTUR

Tens razão, Miguel... O tempo passa, o mundo não pára de girar um só minuto! Diabo de mundo! Deveria dar uma trégua! As coisas parecem que retroagem diante de nossos olhos... Ainda bem que escapamos!

MIGUEL

Graças a Deus! E com vida, o que é mais importante! Ainda consegues lembrar daquele dia, Artur?

ARTUR

Claro! Não estou tão desmemoriado assim! Os meus neurônios ainda estão todos no lugar certo e em quantidade muito real, se o amigo quer saber...

MIGUEL

Então me fale o que aconteceu depois daquela viajem... Realmente eu não lembro... Deu um black-out na minha cabeça...

ARTUR

Coisa natural pra um ser da sua idade! Isso prova, não é, Miguel? Isso prova que o seu cérebro é reduzido a milionésima parte de um átomo... Resumindo! Invisível para a concepção humana...

MIGUEL

(Como quem não gostou). Muita gentileza de sua parte! Interessante! Parecemos tanto um com o outro! Quer dizer, só fisicamente! Pois em si tratando de cérebro... O meu pode-se dizer que é do tamanho... (Artur olha para ele como expressão de quem estar esperando uma bomba). Do seu... Mas funciona... Os meus neurônios são forçados a trabalhar... Eu sou um homem inteligente e muito culto...

ARTUR

Qualquer burro é inteligente ao seu nível, Miguel... Prove por A e mais B, que você mais inteligente que eu... Prove...

MIGUEL

Muito simples! Você por acaso sabe quem é Mac Luan?

ARTUR

Mac Luan? Não... Nunca ouvi falar...

MIGUEL

Também eu peguei pesado... Você conhece a peça de Osvaldo de Andrade “A morta?” Ou conhece alguma coisa sobre o autor? (Artur balança a cabeça negativamente). Então deve conhecer “Obras póstumas de Brás Cuba” De Machado de Assis, conhece, senhor Artur? Como também as belas pinturas do francês To Loose Lutreq! Expondo meretrizes em suas telas (Balança a cabeça negativamente). Já ouviu pelo menos falar sobre a filosofia Satre? (Artur boquiaberto balança a cabeça negativamente). Você por acaso, sabe como se chama, caro amigo?

ARTUR

Eu me chamo Artur...

MIGUEL

(Ri com ironia). Que interessante! Isso eu não sabia que eras tão culto...

ARTUR

Ah, Miguel... Eu não estou aqui pra ficar ouvindo asneiras, vindas de sua parte... E vendo os seus devaneios conturbarem a minha cabeça, que já está entrando em parafuso... Eu não vim aqui pra ser humilhado... Eu quero sair daqui com vida, com vida...

MIGUEL

E a sua cultura?

ARTUR

(Aos berros). Pro inferno! Não interessa! De que vale ter cultura num lugar como este? Não estás vendo que aqui somos iguais?

MIGUEL

Concordo! Mas dar pra diminuir o tom de voz? Se não, vou acabar tendo um seriíssimo problema de audição!

ARTUR

(Aos berros). Mas eu não estou gritando... Que coisa!

MIGUEL

(Miguel tapa os ouvidos com as mãos). Então se mantenha de bico de fechado! Se não, o que vai restar da gente é só uma lembrança no meio de muitas lembranças passadas... (Nesse instante, Catarine aparece num canto do cenário. Ou em sombra chinesa a critério da direção).

ARTUR

(Curioso). Olhe só, Miguel... Veja aquela mulher! Olhe bem para ela! Não acha parecida com alguém?

MIGUEL

(Entusiasmado). Catarine! É sim, Artur... É a Catarine! Tenho uma ligeira impressão que eu a vi entrar neste último caminhão que saiu daqui a pouco...

ARTUR

Eu também vi... Vamos, Miguel... Acene para ela... Olhe, ela está sorrindo para nós...

MIGUEL

(Feliz). Você viu, Artur? Ela correspondeu a minha saudação com um sorriso... Ela sorriu pra mim! Não é maravilhoso?(Em tom baixo). Olá, Catarine... Como tem passado? (Transição. Sério). Ela não me respondeu... Será que eu de alguma forma a magoei? Sei lá! Posso ter feito alguma coisa inconsciente... Nós seres humanos estamos propício a erros...

ARTUR

Na certa ela correspondeu o sorriso pensando que fui eu quem acenou para ela!

MIGUEL

Isso é o que você queria que tivesse acontecido, Artur! Vê se te manca, oh, porcalhão... Ela não seria tão idiota a ponto de pelo menos lhe olhar, quanto mais sorrir para você...

ARTUR

Não esteja tão certo disso, caro Miguel... (Transição). Olhe só! Ela está sorrindo e acenando a mão novamente! (Artur levanta a mão para Catarine). Tá vendo só? O que foi que disse? Catarine está interessada em mim... Como é que eu estou para recebe-la? Estou com uma roupa adequada para um momento propício de amor?

MIGUEL

Pra um velório, você estaria com um traje perfeitamente adequado...

ARTUR

Isso é despeita, sabia, Miguel? Por que você faz isso? Aceite a derrota! Nem tudo na vida é vitória!

MIGUEL

(Decidido). Nunca, Artur! Nunca! Eu não vou aceitar ser derrotado por você! Principalmente em si tratando de Catarine!

ARTUR

Você não vai poder fazer absolutamente nada! Nem eu e nem ela tem culpa se um cupido flechou os nossos corações... Ainda estou sentindo a flecha rasgando o meu peito...

MIGUEL

(Em tom de cochicho). Filho de uma marafona...

ARTUR

Eu?

MIGUEL

(Alterado). Não, o cupido! Nefasto! Não autorizei de forma alguma, que esse energúmeno desgraçado desse cupido injusto, malfadado e traidor... Flechar corações indevidos...

ARTUR

Calma, Miguel... Não precisa ficar com tanta raiva do cupido...

MIGUEL

Eu não estou com raiva do cupido, idiota! Estou com raiva de você, Artur... (Avança no Artur). É de você que estou travando os meus dente de ódio... Afim de descer sem pena a minha mão na sua cara malfadada...

ARTUR

(Com raiva). Não venha querer me morder, que eu já levei mordida de cachorro e não foi nada interessante... Olha como doeu...

MIGUEL

(Com ironia). Doeu, não foi, Artur? Muito bem! Eu tenho um trato a fazer com você! Vamos fazer um acordo! Nem você fala comigo, e eu tampouco falo com você!

ARTUR

(Se fazendo de desentendido). Mas por que, Miguel? Você está sendo um tanto rude para comigo!Eu nem comecei namorar a Catarine ainda...

MIGUEL

(Revoltado). Mas é um débil mental mesmo! Não venha pra cima de mim, querendo me fazer de besta, nunca mais! Está ouvindo, Artur?

ARTUR

Se é isso mesmo que desejas... Faça-se a tua vontade...

MIGUEL

É! Se eu for contar as vezes que você já me chamou de cachorro, vou acabar sentindo uma coceirinha no corpo como se eu tivesse com pulgas... Nunca mais apareça na minha casa... Faça-me este favor, senhor Artur!

ARTUR

(Meio político). Jamais aparecerei... Deixe a minha vida e a de Catarine em paz... É só isso que eu lhe peço, Miguel!

MIGUEL

(Ri). Muita incoerência de sua parte! Você é quem deve cair fora! A Catarine já está na minha... (Estala os dedos fazendo menção de muito tempo). Olha ela lá! (Levanta a mão). Ela está acenando novamente! Me bateu um sentimento muito grande em meu coração...

ARTUR

Perfeitamente! Ela está acenando e não é para você...

MIGUEL

Claro, que é! (Fecha a mão como quem vai dar um murro no Artur e empurra a testa). Mas é um velho teimoso... Rabugento, mentecapto, esquizofrênico... Estrepitoso...

ARTUR

Só entendi o teimoso! E velho teimoso é você, caro Miguel! Acho que você nunca se olhou diante do espelho!

MIGUEL

(Com desdém). Por que será, caro Artur?

ARTUR

Acho que para não quebrar o espelho! (Reage como quem não gostou).

MIGUEL

Pára!

ARTUR

Ou então você tem medo de se assustar...

MIGUEL

Eu já mandei você parar!

ARTUR

Nem brincar a gente pode! Muito mal humorado pro meu gosto!

MIGUEL

Nem sei o porquê ainda estou lhe dando trela! Eu já lhe disse para não dirigir mais a palavra para mim...

ARTUR

Você não vive sem mim, caro Miguel!

MIGUEL

Por que falas assim?

ARTUR

Ora, Miguel! Eu sei que você não consegue ficar longe de mim! Tudo que estás falando, é questão, nada mais nada menos do que ciúmes da Catarine...

MIGUEL

Loucura de sua cabeça... Jamais eu estaria com ciúmes de uma pessoa que acabou de ser gentil comigo... Olhe só como ela tem um sorriso encantador... Você deve admitir que ela me olhou diferente!

ARTUR

Eu não devo admitir nada! Pergunte a ela mesma!

MIGUEL

Sem problema nenhum! (Como quem se aproximou). Olá senhorita Catarine... Como tem passado? Bons olhos a vejam! (Catarine não dá ouvido). Você viu, Artur?

ARTUR

Vi! E fiquei extremamente decepcionado!

MIGUEL

Decepcionado? Com quem?

ARTUR

Com você! Ela não lhe deu a mínima! Acabei de ter a certeza que tu não passas de um zero a esquerda...

MIGUEL

Na certa ela não prestou atenção no meu charme! Ainda não...

ARTUR

Tu não desistes mesmo! Ela não lhe deu trela, porque não és tu, quem ela quer! Já devias ter se convencido disto! Só existe uma pessoa que ela realmente está às quedas!

MIGUEL

E este alguém, és tu, por acaso, Artur?

ARTUR

Evidentemente que sim! Tens alguma dúvida disso?

MIGUEL

Então, por favor... A conquiste se és tão surpreendente assim! Agora se ela não lhe der atenção...

ARTUR

Não venhas querer me ameaçar, Miguel! Eu não estou preparado emocionalmente para uma conquista assim tão repentina! Pegaste-me de surpresa e sabes muito bem disso...

MIGUEL

De forma alguma! Tens ou não tens coragem de conquistar uma dama? Apesar de não ter sido muito bem sucedido, eu fiz a minha parte! Agora é a sua vez! (Transição). Veja! Ela está de volta! Não precisa ficar nervoso!

ARTUR

Eu não estou nervoso! Eu estou apenas tentando controlar os meus nervos! Nessas horas dá uma vontade de usar o toalete!

MIGUEL

Não vais fazer coco nas calça agora, que não vai ficar bem, se apresentar diante de Catarine com um cheirinho desagradável!

ARTUR

Mas Miguel! Eu não estou agüentando! Estou ficando cada vez mais apertado! É tensão nervosa! Olha só como eu estou tremendo!

MIGUEL

Não faz isto, Artur! Vais me matar de vergonha perante a dama!

ARTUR

Eu estou tentando não fazer! Aí, eu estou com cólicas intestinais! Ai, que dor! (Se encolhe).

MIGUEL

Agüenta a mão, caro Artur! Tranca esta porta, pelo amor de Deus, Artur! (Miguel segura a bunda de Artur).

ARTUR

(Tirando a mão de Miguel). Tire a mão de minha bunda, Miguel! Desse jeito você quer me desmoralizar perante a senhorita Catarine! Não fica bem... (Transição).

MIGUEL

Desculpe-me! Mas use esta cortiça!(Entrega uma cortiça para Artur).

ARTUR

O que eu vou fazer com essa cortiça, Miguel?

MIGUEL

Meu querido e adorado Artur! Precisa que eu fale?

ARTUR

Já imagino! Não acredito que você teve essa mirabolante idéia! Por que ao invés de mim, você não usa?!

MIGUEL

Ora! Porque eu não estou com cólicas intestinais! Tá aqui a solução! É só tapar o buraco!

ARTUR

(Espantado). Tapar buraco? Que expressão mais chula! Na frente da dama? Logo você, metido a ser um gênio intelectual! Espere aí, tu já foste longe demais... (Transição sente dor). Ai! Agora chegou na porta!

MIGUEL

Eu já lhe dei a solução... Não quer usar, o que se pode fazer?

ARTUR

Prefiro ficar com a calça manchada a ser estuprado por uma cortiça, Miguel! Arrume outra solução! E tem que ser rápido, porque já foi dado o primeiro sinal de tortura!

MIGUEL

Não vejo outra saída! Pelo menos agora não!

ARTUR

Então faça o teste primeiramente em ti!

MIGUEL

Mas eu já estou borrado! Por que tem que acontecer logo agora?

ARTUR

E eu sei lá! Essas coisas acontecem sem a gente menos esperar! Nos lugares mais indesejados! Como agora, por exemplo! Olha ela se aproximando! Vai, Miguel!(A Sonoplastia libera umas pegadas de sapatos femininos). Eu estou a todo vapor! Dê-me um lenço! Faça-me um favor, Miguel! Não vês que eu estou me desmanchando em suor... As cólicas estão cada vez maiores... Eu não vou suportar...

MIGUEL

Eu não posso fazer absolutamente nada, porco velho...

ARTUR

Sem me xingar, Miguel! Eu estou ficando muito fraco! Estou numa viela! Se eu macular minhas calças na frente da senhorita, eu prefiro que me enterrem vivo e nunca mais mostre minha caveira para o mundo... !

MIGUEL

Então usa logo esta cortiça, Artur... Pelo amor de Deus e de Catarine! Ninguém vai saber... Só tem eu e você aqui neste buraco... E agora, a Catarine, que segundo você mesmo, está interessada em sua majestosa pessoa...

ARTUR

Claro, que está! Em nenhum momento eu falei o contrário...

MIGUEL

Então estou esperando uma prova concreta deste fato!

ARTUR

Ô velho ranzinza!

MIGUEL

(Consigo mesmo). É a vovozinha...

ARTUR

(Aos berros). Não fale mal da minha santa velhinha, que não tem nada a ver a nossa discussão! Tu sabes que eu não estou em condições físicas de encarar uma parada dessa... Minhas cólicas intestinais...

MIGUEL

Não sei se trata de verdade, essas suas cólicas intestinais! Pois até agora não vi nenhum resultado...

ARTUR

Não acredito que você quer ver minhas porcarias se resvalando nas pernas das minhas calças... Que maldade, Miguel...

MIGUEL

Não me interessa! Eu quero tirar isto a limpo! A Catarine é uma mulher inteligente! Não vai se prestar para lhe dar trela!

ARTUR

Você não acredita mesmo em mim, não é, Miguel?

MIGUEL

Pra lhe ser sincero? Não!

ARTUR

Pois bem... Deixe só eu me aliviar num bom toalete, pra você ver se eu não estou falando a verdade!

MIGUEL

(Escandalizado). Toalete, Artur? Estás diante da grande e sonhada Deusa e estás pensando em toalete numa hora dessas? És um frouxo mesmo...

ARTUR

Ainda não, Miguel, mas, não vai demorar muito não! Ai, como dói, Miguel... (Transição). Ela está me olhando! Não sei porquê ela ri tanto! Está muito visível a minha contorção?

MIGUEL

Evidente que sim, Artur! Você tá fazendo mais caretas do que um macaco...

ARTUR

(Como quem não gostou). Não gostei do... Macaco... (Transição sentindo dor). Ai, ai, aí... Vai ser agora... (Se espreme). Aí, ai...

MIGUEL

Se tranca, Artur... Se tranca!

ARTUR

Estou trancando, Miguel... Estou trancando! Não sei até quando, mas, eu estou trancando! Estou fazendo o que posso... (Transição). E o que eu não posso também...

MIGUEL

Coloca a rolha, então...

ARTUR

(De olhos arregalados). Não, Miguel... A rolha não...

MIGUEL

Ela parou de ri e está acenando com a mão... Estenda a mão para ela também... Dessa vez a gente sabe se a Catarine realmente está afim de você!

ARTUR

Não posso fazer tal coisa...

MIGUEL

Como não pode fazer? Tu estás com todas as mãos no lugar!

ARTUR

(Em tom de revolta). Ô Miguel! Cabeça de vento! Não estás vendo que ambas as mãos estão ocupadas? Estão substituindo esta maldita rolha, que tu quiseste me dar... (Transição). Mas parece que não está fazendo muito efeito não...

MIGUEL

Segura mais... Segura mais Artur... (Pega no braço do Artur e acena para Catarine). É só levantar a mão... (Catarine também acena. Miguel continua segurando o braço de Artur). Realmente tens razão! És tu que ela tá querendo, Artur! Infelizmente!

ARTUR

Dá pra soltar o meu braço agora, meu caro Miguel?

MIGUEL

Claro! Claro, que sim... Agora sim, podes defecar a vontade! A Catarine já se foi!

ARTUR

Tens certeza que ela se foi?

MIGUEL

Eu tenho cara de mentiroso?

ARTUR

Não é isso, que eu tou querendo dizer... É que de repente me bateu um alívio!

MIGUEL

Assim que Catarine se foi!? Tá vendo que tudo não passou de seu subconsciente lhe condenando por não saber enfrentar a realidade da vida?

ARTUR

Não é nada disso...

MIGUEL

E por que é, então?

ARTUR

Miguel... Eu tou todo borrado, mas tou muito tranqüilo! Posso não ter conquistado o coração de Catarine, provando pra você que sou eu quem ela quer, mas, pelo menos estou com a consciência tranqüila; pois, ela não me viu nesse estado de calamidade...

MIGUEL

Só você?! Não está vendo o meu estado também? Até nisso nós temos algo em comum, amigo Artur? Estamos imundos! Sujos e imundos, Artur...

ARTUR

Nojentos...

MIGUEL

Não baixar a tanto o nível, Artur... O fato de estarmos com as calças borradas, não quer dizer que somos porcos...

ARTUR

(Com raiva). Porcos não! Minha mãe nunca teve nem parentesco com porcos! A não ser que a sua...

MIGUEL

Oh! Oh! Oh! Veja lá o que vais falar, Artur... Eu sei que você está morrendo de raiva por não ter conseguido conquistar o coração de Catarine... Então não fique querendo jogar pra cima de mim, um defeito que cabe muito bem em você, meu caro Artur...

ARTUR

O que é isso, Miguel? Eu jamais faria tal coisa... Nunca me passou pela cabeça nem um focinho de porco, quanto mais um porco inteiro! Eu não lhe chamei de porco...

MIGUEL

Acabou de me chamar de mentiroso...

ARTUR

(Escandalizado). Eu?! Miguel, Miguel... Estás variando muito ultimamente! Isto é muito mau! Acho que você deveria procurar urgentemente uma clínica psiquiátrica...

MIGUEL

Doido é a mamãezinha...

ARTUR

Olhe bem como estás falando da minha mãe... (Transição brusca). Espere! Olhe só quem está bem na nossa frente!

MIGUEL

Catarine! Novamente! Vamos chame-a, Artur! Não a deixe escapar dessa vez... Apesar de estar todo borrado, ainda não senti nenhum cheiro desagradável...

ARTUR

Ai, Miguel... O meu coração tá em tempo de pular pela boca! Não estou resistindo! Estou sentindo um impulso muito forte! Acho que vou desmaiar...

MIGUEL

Olha que eu enfio a rolha, pra tu levantares!

ARTUR

Nem brincar a gente pode mais... Talvez Catarine possa nos ajudar...

MIGUEL

Claro, que pode! Principalmente se ela estiver realmente lhe querendo...

ARTUR

Claro, que está! (Transição chama). Catarine! Catarine... Espere aí, Miguel... Ela parou... (Catarine procura algo). Olhe! Ela está procurando! (Transição). Sou eu, Catarine! Artur!

CATARINE

Engraçado! Eu juro que eu ouvi alguém chamar o meu nome! (Transição com uma lista na mão). Vamos adiantem... Próximo!

MIGUEL

(Sem entender). Do que ela está falando?

ARTUR

Não sei; mas, posso até lhe garantir que ela não falou com você...

MIGUEL

(Com raiva). O que é que você tem contra mim, Artur?

ARTUR

Eu acho que é o contrário... Tu é que vives implicando com os meus brios, Miguel... No meu vernáculo existe uma palavra que cai como uma luva para esta situação...

MIGUEL

E eu por acaso, posso saber que palavra é esta?

ARTUR

Inveja!

MIGUEL

Ora, não seja tão imbecil... Acho que o grande invejoso da situação és tu, Artur!

ARTUR

Invejoso? Como tens o topete de me chamar de invejoso? É notório na face de Catarine que ela está caidinha por mim... Só tu é que não queres enxergar isso...

MIGUEL

Tá bom, Artur! Eu não vou ficar aqui lhe dando trela! Eu, é que sou um fraco...

ARTUR

Mentiroso, talvez...

MIGUEL

(Com raiva). Mentiroso não... Eu posso até ter escorregado quando falei de Catarine, mas eu não menti, Artur... Isso fere, isso machuca! Como é pode depois de velho, ser tratado por rabugento, animal e agora mentiroso...

ARTUR

Mas também me chamaste de fastidioso, maçante, azucrinante, tedioso...

MIGUEL

Chamei e chamo... Amolador...

ARTUR

Chato...

MIGUEL

Importuno... Irritador, irritante e maçador... Cacete!

ARTUR

(Escandalizado). Cacete?!

MIGUEL

(Sério). É cacete, sim? Eu falei cacete e daí?

ARTUR

Me respeita, Artur... Estás confundindo uma amizade com liberdade...

MIGUEL

É apenas sinônimo de tudo que a gente falou...

ARTUR

Desconheço e desaprovo o vernáculo...

MIGUEL

(Querendo chorar). Falaste uma ignorância do tamanho do universo... Mas eu transijo de alguma forma... Não quero me aborrecer, caro Artur! A minha prosopopéia não admite que eu desça o meu braço sobre tua massa cefálica... Friccionando o resto de pêlos que ainda adornam teu coro cabeludo, esquentando teus chifres até transforma-los em cinzas cadavéricas...

ARTUR

Quer saber de uma coisa, Miguel?Devemos admitir que por não termos condições físicas e emocionais para conquistar o amor da jovem Catarine... Somos dois rabugentos da pior qualidade... Dois rabugentos mesmo!

MIGUEL

Se somos dois rabugentos, a Catarine seria... A pulga...

ARTUR

Muito boa a sua colocação... Uma pulga pra dois rabugentos, já que estamos afim da mesma mulher... Imagine, jovem Miguel...

MIGUEL

Gostei do jovem...

ARTUR

É só demagogia! De vez em quando a gente tem que mentir um pouquinho pra sair do corriqueiro...

MIGUEL

Tem que vir a cacetada logo em seguida...

ARTUR

Espere aí, Miguel... (Como em um delírio). Vamos viajar um pouco... Imagine eu com a Catarine numa noite Argentina... Agora estou em frente à casa rosada... Soldados passeando em fileiras!(Encolhe os braços como que está sentindo frio). Ai, que frio...

MIGUEL

Quase zero grau... Já me imagino nos braços de Catarine... (Os dois vão se abraçando como em um delírio).

ARTUR

Catarine! Ah, Catarine! Sempre sonhei em tê-la em meus braços curtindo os seus abraços! Estamos abraçados... Olhar teus olhos encantadores... Ouvir sons de violinos, num jantar a meia luz... Que tal dançar um tango nesta noite friorenta?

MIGUEL

(Suspira forte). Ah! Dançar é sempre bom! Principalmente quando se trata de um encanto de mulher como a Catarine... (A sonoplastia libera um tango Argentino e os dois dançam apaixonados, como que cada um, tivesse vendo no outro, a Catarine). Você dança muito bem, Catarine...

ARTUR

Você é um encanto de mulher...

MIGUEL

Tua pele é doce como uma seda...

ARTUR

Teu corpo me faz ficar aceso de tesão... (Puxa o Miguel contra o peito).

MIGUEL

Nossa! Como você é atirado, Artur... Deve tá havendo algum engano por aqui...

ARTUR

Engano? Você me deixa neste estado de peru congelado e ainda me diz, que é engano, Catarine? (Puxa-o como quem vai beija-lo).

MIGUEL

(Aos berros). Eu não sou Catarine, seu rabugento... (Artur acorda e solta o Miguel no chão).

ARTUR

(Com raiva). Miguel! Por que você me agarrou?

MIGUEL

(Escandalizado). Eu?

XXXXXXXXXXXXXXXXXXARTUR

Estou com nojo de você! Meu estômago está embrulhando... Acho que vou vomitar... (Ouve-se vários disparos de fuzis. Os dois se jogam no chão). Não fale nada, Miguel...

MIGUEL

Será que fomos vistos aqui? Catarine também é Judaica... Ela está se passando como uma alemã...

ARTUR

Cala esta boca! Tu sabes muito bem que ninguém pode saber disso...

MIGUEL

Mas todo mundo já está sabendo... Olhe só como ela corre! (Ouve-se tiroteios. Transição se desespera). Corra, Catarine... Vamos correr também, Artur! Eles nos descobriram aqui... Malditos! Olhe só como Catarine está tensa! Salvem suas peles... (Os dois também começam a correr). Corre, Artur... Se não, vamos acabar morrendo...

ARTUR

Eu estou correndo, mas admito que estou velho demais! Não tenho mais resistência pra este tipo de exercício... Estou me borrando cada vez mais! Minha porcaria já umedeceu o meu sapato! Meus pés estão escorregando, Miguel! (Transição). Fale conosco Catarine! (Correm ao lado de Catairne, Artur corre, mas, fica meio mango como quem está sentindo cólica abdominal).

MIGUEL

Estás poluindo o ar, caro Artur! A fedentina já cobre a camada de osônio! Mas, vamos correr, que não há tempo para lamúrias! (Com a Catarine). Vamos Catarine! Fale conosco! (Catarine não responde). Nem nessa hora de fuga ela quer falar conosco! Que orgulho sem nexo! Tudo bem, Catarine! Faça de conta que não existimos pra você! Nunca mais... (Ouve-se muitos disparos. Catarine cai). Corram... Salvem suas vidas...

ARTUR

(Aos berros). Catarine...

MIGUEL

Não podemos deixa-la aqui, Artur...

ARTUR

Não podemos parar, Miguel! Vamos ser atingidos também! (Gritando). Catarine... Reaja, Catarine... (Mais disparos. Cessam os tiros). Vamos tentar carrega-la! (Eles tentam toca-la, mas não consegue). Engraçado, não estou conseguindo nem toca-la...

MIGUEL

A emoção faz isso... Deixe, que eu mesmo faço... (Tenta toca-la, mas não consegue). Interessante, que nem eu mesmo estou conseguindo, Artur...

ARTUR

Tem alguma coisa errada...

MIGUEL

(Com deboche). É notório que tem, não é, caro Artur? Se eu estou tentando pegar na Catarine e não estou conseguindo porque logicamente tem alguma coisa errada... Quem sabe o erro não está em você?

ARTUR

(Escandalizado). Em mim? Em mim não...

MIGUEL

Claro, que em você, sim...

ARTUR

Mas por que?! Eu também tentei pegá-la e não consegui... E agora vens me dizer que o erro está em mim... Palhaçada, isso, Miguel...

MIGUEL

Eu não sou palhaço, Artur...

ARTUR

É palhaço sim, Miguel... Por que? Vai querer entrar em duelo comigo novamente? Pode vir... (Se prepara como quem vai brigar). Eu já estou cansado de você querer me fazer de brinquedo... Cansado mesmo!

MIGUEL

Quer brigar mesmo comigo? Muito bem! Depois não reclame que faltou sorte em sua pessoa...

ARTUR

Digo a mesma coisa... Pode vir, venha, que eu estou preparado... Vamos acabar de uma vez por todas com essa confusão...

MIGUEL

Você está falando sério mesmo, caro Artur?

ARTUR

Claro, que eu estou falando sério... Você pode até ser mais intelectual do que eu... Mas eu tenho dúvidas quando se trata de um duelo no braço...

MIGUEL

(Se acovardando). Eu não tenho medo... Mas vamos deixar isso pra lá... Nós somos amigos... Não convém entrarmos em conflito, justamente numa hora como esta... Você tá vendo que a Catarine está precisando de nossa ajuda...

ARTUR

Eu sei muito bem disso... Mas pelo fato dela estar assim, não quer dizer que eu vou aceitar ser humilhado por você...

MIGUEL

(Gritando). Ah, mas tu estas indo longe demais...

ARTUR

E não venha me gritar não, que a minha fúria está prestes a explodir... E na sua cabeça, Miguel...

MIGUEL

Você tá brincando, não está, Artur?

ARTUR

(Aos berros). Estou falando sério...

MIGUEL

Tá vendo só? Você é que está me gritando... (Ouve-se uma corneta tocando). Fomos vistos, Artur... Fomos vistos...

ARTUR

E agora, o que vamos fazer? Vamos correr... Vamos sair daqui... Vamos salvar as nossas peles...

MIGUEL

Não podemos deixar a Catarine aqui...

ARTUR

Mas eles vão nos matar, Miguel... Não temos outra saída... Vamos embora daqui!

MIGUEL

Deixar a Catarine aqui, eu não vou deixar... (Tenta chamá-la). Catarine, Catarine... Acorda, pelo amor de Deus, acorda... Vamos sair daqui... Fomos vistos...

ARTUR

Vamos Catarine... Reaja! Vamos sair daqui... Antes que eles façam conosco o que fizeram com os outros... (Aos berros). Catarine...

MIGUEL

Não adianta, Artur... Ela deve estar com algum problema de audição... (Transição). Não temos escapatória, Artur! O jeito que tem é esperar a morte aqui... Morrermos juntos, assim como Cristo morreu diante dos ladrões...

ARTUR

Mas eu não sou ladrão... Eu não vou me entregar... (Ouve-se disparos). Vamos tentar pelo menos... De repente dar certo, sei lá... Vamos correr...

MIGUEL

Ponto final! Sem a Catarine eu não saio daqui... (Começa a tocar na Catarine). Olhe só, Artur... Eu estou conseguindo tocar na Catarine... (Artur também toca).

ARTUR

Também, Miguel... Eu também estou tocando... Veja só...

CATARINE

(Acordando lentamente e de olhos arregalados. Espantada). Miguel... Artur? Não acredito!

ARTUR

Catarine? Você tem certeza que está nos ouvindo? Por que você sempre se fez de desentendida? (Transição com o Miguel). Agora é que ela conhece a gente...

MIGUEL

(Com desdém). Não precisa mais falar conosco...

CATARINE

(Espantada). Vocês?! Meu Deus! Eu não acredito no que estou vendo... Quer dizer então que eu também... Meu Deus!

MIGUEL

E agora vem com cara de quem está vendo fantasma...

CATARINE

É inacreditável! O pior é que eu estou vendo mesmo...

ARTUR

Mas porque essa cara de espanto? Sempre tivemos por aqui... Você é que não queria dar ouvidos para nós...

MIGUEL

Até levantamos suspeitas de que havíamos feito alguma coisa, que tivesse lhe machucado... Mas não estávamos conseguindo lembrar...

CATARINE

Não, vocês não fizeram nada! Eu não estava os vendo...

MIGUEL

Meu Deus! Estávamos aqui o tempo todo... Agora vamos sair daqui, antes de sermos vistos por eles... (Transição. Admirados). Eles passaram e não nos viram...

ARTUR

O que está acontecendo... Sabes o que está acontecendo, Catarine?

CATARINE

Gostaria imensamente de não saber... Mas acho que já sei do que se trata...

MIGUEL

Então, por favor, poderia nos dizer?

CATARINE

Você não lembra do dia que você e o Artur tentaram fugir?

MIGUEL

Claro, que lembramos... A partir daí, tudo se tornou muito estranho!

ARTUR

Pois é! Ninguém ouvia a gente... Era como se estivéssemos isolados do mundo...

MIGUEL

Mas o que foi que aconteceu?

CATARINE

Pode parecer estranho o que eu vou falar... Até para mim é muito estranho... Olhem para trás e me digam o que estão vendo... (Os dois olham).

ARTUR

Tem uma mulher caída na estrada...

MIGUEL

Mas não justifica! Não tinha aquela mulher ali! Passamos agora mesmo por aquele local e... Quem é ela?

CATARINE

Veja com seus próprios olhos... (Os dois vão observar. Transição).

ARTUR

(Apavorado). Catarine! Meu Deus isso não pode estar acontecendo...

MIGUEL

Você está morta Catarine...

CATARINE

Estamos todos mortos...

MIGUEL

Mas cadê os nossos corpos?

CATARINE

Estão misturados no meio dos tantos corpos que tentaram fugir do manicômio naquele dia...

MIGUEL

Claro! Quer dizer então que ali foi o fim da gente?

CATARINE

Todos morreram naquele dia de fuga... A polícia invadiu o manicômio e acabaram trucidando muitos inocentes deficientes mentais... Inclusive vocês...

ARTUR

Ah! Por isso, que não nos escutavas... E agora? O que vai ser de nós, Catarine?

CATARINE

Nem eu mesma sei... Agora houve nova invasão e a vítima fui eu... (A sonoplastia libera um som de tensão e uma música celestial. Em seguida um facho de luz incandescente cai, se sobressaindo da iluminação do palco). Acho que temos visita...

MIGUEL

É! E pra onde eles vão nos levar?

CATARINE

Não sei, mas não temos outra opção a não ser acompanha-los!

ARTUR

Então o que estamos esperando? Vamos ao encontro deles! Eles estão nos esperando! (A sonoplastia libera um som de ventania, acompanhado de uma música de tensão. Em seguida um instrumental apropriado para a cena invade o palco e os atores fazem a coreografia. Coros de vozes solfejantes adornam o musical, dando idéia da presença de mentores espirituais evoluídos. Terminando o musical, as luzes na geral, vão se apagando gradativamente ficando pontos de luz em cima de cada ator. Cada ponto vai sumindo gradativamente um por vez, dando idéia que os personagens estão sendo sugados para a eternidade, deixando o palco em black-out. Música sobe, chegando assim, o fim do espetáculo “UMA PULGA PRA DOIS RABUGENTOS”).

Fim

Peça: “Uma pulga pra dois rabugentos”

Autor: Flávio Cavalcante

Mês: Março

Ano: 2002

Obs: Todo trabalho desenvolvido por este autor, é totalmente fruto da imaginação; porém, qualquer semelhança é mera coincidência.

Flavio Cavalcante
Enviado por Flavio Cavalcante em 29/04/2009
Código do texto: T1567369
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