"Que Família" Peça teatral de: Flávio Cavalcante

Que família!

Comédia teatral

De

Flávio Cavalcante.

ROLL DOS PERSONAGENS

SÉFORA

SAULO DA BRÔA

LOURDES

ERISBALDO

VELHO HOLANDA

ZEFINHA

DOUTOR

Que família!

SINOPSE

É uma estória passada com uma família inteiramente desajustada, cujo pai, o velho Holanda, demonstra ter muito dinheiro, mas, mão de vaca igual à ele, não pode existir outro na face da terra.

O velho Holanda possui vários filhos e por se tratar de personagens reais e muitos, o autor achou por bem, descrever apenas alguns deles, por serem mais interessantes.

Os principais filhos do velho Holanda, são:

SÉFORA

Com seus cacoetes, está precisando urgentemente de uma vaga no hospício. É ambiciosa e já quebrou vários vidros de relógio de pulso com o queixo.

SAULO DA BRÔA

Marido de Séfora. Este quando começa a beber, esquece de parar. É um beberrão contumaz.

ERISBALDO PITADA

Irmão de Séfora. É o mais velho da família. É ele quem cuida dos bens do velho Holanda. Não agüenta passar quinze segundos, sem coçar os testículos e cheirar.

LOURDES

Mulher de Erisbaldo. Criatura escandalosa e exagerada. Gosta de usar trajes de destaque para chamar atenção e as vezes indo ao ridículo.

ZEFINHA

Emprega de Séfora. Matuta do interior, mas esperta suficiente para passar uma rasteira em qualquer um dos filhos do velhos Holanda, para também ser herdeira.

Todos tem o mesmo objetivo:

DESEJAR A MORTE DO VELHO HOLANDA PARA HERDAR A SUA FORTUNA.

Flávio Cavalcante.

Cena escura, a sonoplastia libera uma música, dando um tom de comédia. O telefone toca insistente, a iluminação vai clareando gradativamente. Está em cena a Séfora com a cabeça encostada na parede, pressionando o relógio com a testa. Entra Zefinha, empregada de Séfora com um espanadador, dançando no ritmo da música. Zefinha desliga o som e vai atender o telefone.

ZEFINHA

(Gritando). Alô... Hen? Tá não... (Desliga o telefone bruscamente). Esse povo parece que não tem o que fazer! Sabe muito bem, que eu odeio atender telefone, mas ninguém atende! (Transição se espanta ao vê a Séfora com a cabeça encostada na parece, fazendo força para quebrar o vidro do relógio com a testa). O que é isso, hen? A senhora tá se sentindo mal, é, dona Séfora?

SÉFORA

Ah, ah, ah... (Levanta a cabeça com a mão na testa).

ZEFINHA

Que cacoete é este, hen? (Dá uma gargalhada).

SÉFORA

(Com raiva). Que cacoete? Você quer fazer uma favorzinho de me deixar em paz?

ZEFIINHA

(Transição, querendo chorar). Tá vendo, tá vendo? A gente quer ajudar e só leva na cabeça... (Chorando). Buuu... Buuu...

SÉFORA

(Grita com raiva). Pára com esse bu, bu, bu, que eu não estou agüentando mais!

ZEFINHA

Tá vendo, tá vendo? (Chorando). Búúú, búúú...

SÉFORA

(Irritada). Ai, meu Deus! Eu só queria saber o que diabo eu fiz, para merecer um castigo desse!

ZEFINHA

O que diabo a senhora fez? Se por acaso não estar satisfeita com o meu serviço, me bote pra fora! Eu não vou pedir as contas de jeito nenhum!

SÉFORA

Vai terminar eu fazendo isso mesmo!

ZEFINHA

(Debochada). Eu boto a senhora na justiça! Eu sou uma emprega, mas não sou burra não, viu? Eu vou querer todos os meu direitos!

SÉFORA

(Pressionando o relógio com o queixo). Hummm... (Transição). Já não basta o Saulo com a cachaça dele?! Será possível uma coisa dessa?

ZEFINHA

Eu não digo que essa mulher tá ficando doida mesmo!? O seu Saulo faz dois dias que não bebe!

SÉFORA

Quer apostar como ele foi pra rua tirar o atraso?

ZEFINHA

Eú!!! Tenho mais o que fazer!

SÉFORA

(Com raiva). É, mas quando você está telefonando para os seus cambriões, você não tem nada para fazer!

ZEFINHA

(Querendo chorar). Tá vendo? A mania da senhora, é dizer que meus amigos são meus machos... (Transição). Isso é o que revolta... (Chorando). Búúú... Búúú...

SÉFORA

Nem brincar a gente pode mais!

ZEFINHA

(Transição). Apois a senhora fique sabendo, que eu sou uma moça de família, viu?

SÉFORA

E eu nunca falei o contrário! (O telefone toca insistente). Ôh, Zefinha, atende logo esse telefone!

ZEFINHA

(Querendo chorar). Mas também, tudo nessa casa sou eu... (Chorando). Búúú... Búúú...

SÉFORA

(Repreensão). E tu vais atender o telefone desse jeito, é, Zefinha? Tão velha e tão boa de ter vergonha...

ZEFINHA

(Querendo chorar). Tá vendo? E ainda por cima me chamou de sem vergonha... (Chorando). Búúú... Búúú... (O telefone toca insistente. Transição gritando). Alô! (Transição querendo chorar). Bateram o telefone na minha cara... (Chorando). Búúú... Búúú...

SÉFORA

Você queria o que? Quem já se viu atender telefone desse jeito, Zefinha?

ZEFINHA

Ah, dona Séfora! Minha função é faxineira, não é telefonista não!

SÉFORA

(Com raiva). Ah, mas tem que aprender! Você ganha muito bem pra não fazer nada!

ZEFINHA

Êita mulé mentirosa da peste! O que a senhora me paga, não dá nem pra remendar os buracos das minhas caçolas!

SÉFORA

(Pressionando o relógio com o queixo). Hum... Mas você é mal agradecida mesmo, não é? Pensa que emprego por aí está fácil?

ZEFINHA

(Querendo chorar). Triste de quem é empregada... (Chorando). Búúú... Búúú... (Transição). Mas eu não vou chorar... Não vou, não vou e pronto!

SÉFORA

E quem mandou você chorar? (O telefone toca novamente).

ZEFINHA

Nem pense que eu vou atender!

SÉFORA

Pode deixar que eu atendo! Agora, eu vou atrasar o seu décimo terceiro mês!

ZEFINHA

Isso é uma miséria mesmo! Se eu soubesse eu tinha atendido essa merda!

SÉFORA

(Pega o telefone e grita). Alô! (Transição). Não, é a mãe dela! Você não sabe que sou eu, Erisbaldo! Diga logo o que quer! (Transição). Tu tens certeza do que estás me falando? (Dá uma gargalhada). Claro! Foi a melhor notícia que eu já recebi em toda a minha vida! No que depender de mim, é só ligar... Tchau... (Desliga o telefone).

ZEFINHA

Dona Séfora! Eu não quero saber o que foi! Primeiro porque não me interessa e não eu não gosto de fofoca! Mas se a senhora por acaso, quiser me contar, não custa nada ouvir, não é?

SÉFORA

(Alegre). Zefinha, o Erisbaldo acabou de me dar uma notícia, que se for verdade, vai mudar completamente a nossa vida!

ZEFINHA

Aé? Vai me botar pra fora, é? (Querendo chorar). Vou procurar os meus direitos... (É atrapalhada).

SÉFORA

Que botar pra fora que nada!

ZEFINHA

Então diga logo, dona Séfora!

SÉFORA

O Erisbaldo disse pra mim, que meu desapareceu, sumiu, escafedeu-se... (Rindo).

ZEFINHA

Virgem que palavra difícil!

SÉFORA

Ou difícil ou não, é bom já começar à pensar em que investir tanto dinheiro! (Pensativa). Apartamento... Carro...

ZEFINHA

E se seu Holanda não morreu, dona Séfora?

SÉFORA

Cruz credo, Zefinha! Êta boca de praga! Bate na madeira três vezes, que é pra não dar azar! Vira esta boca pra lá!

ZEFINHA

(Espantada). E a senhora tá querendo que seu pai morra, é? Que família!

SÉFORA

Hen?! Não... Imagina se eu quero que uma coisa dessa aconteça! Mas de jeito nenhum! (Transição). Mas aconteceu! E o Erisbaldo já está cuidando da papelada! Diz ele, que vai contratar um advogado, um tabelião...

ZEFINHA

Pra que, dona Séfora?

SÉFORA

(Com raiva). Êita mulher burra! Pra fazer o inventário e dividir os bens para os filhos!

ZEFINHA

Eu não faço parte da família! Quer dizer que eu não vou levar vantagem nisso não, é?

SÉFORA

É claro que vai, não é, Zefinha?

ZEFINHA

Jura pela alma de seu marido?

SÉFORA

Meu marido não morreu, Zefinha!

ZEFINHA

Com a cachaça dele? Isso não vai demorar acontecer, não!

SÉFORA

Tá certo, eu juro!

ZEFINHA

E que vantagem eu vou levar, dona Séfora?

SÉFORA

Por exemplo! Se o Erisbaldo estiver correto e tudo correr bem, eu vou aumentar o seu salário!

ZEFINHA

Apois eu quero mais é que seu pai morra... A coisa já tá até melhorando!

SÉFORA

Mas não é bom se alegrar muito não! A gente não tem certeza ainda se o velho está vivo ou morto!

ZEFINHA

Eu já vi que alegria de pobre dura muito pouco mesmo!

SÉFORA

É por isso que eu digo que você não se alegre muito! (A Séfora sente um cheiro de queimado). Tá um cheiro de queimado!

ZEFINHA

Tá mesmo! Tou sentindo! (Transição). Êta! É o feijão que eu botei no fogo! Já deve tá é torrado... (Sai de cena apressadamente).

SÉFORA

(Com raiva). Pela décima Segunda vez, tu deixas esse feijão queimar! É pra isso que eu lhe pago, é? Hummmm... (Pressionando o relógio com o queixo. A campainha toca). No mínimo é visita! Era só o tava me faltando agora... (Vai abrir a porta e faz cara de quem não gostou). Oi... (Transição). Só faltava você pra completar o meu dia! (Entra em cena a Lourdes, cunhada de Séfora).

LOURDES

(Entra cantando escandalosamente). Deixa eu te amar, faz de conta que eu sou o primeiro... (Transição). É isso aí, Zefinha! (Transição). Cadê a Zefinha, Séfora?

SÉFORA

Está lá dentro cuidando do almoço! Não é que a peste queimou o feijão?!

LOURDES

Séfora, minha filha... Eu gosto tanto dessa tua empregada! Eu sempre quis ter uma empregada assim! E eu faço questão que ela saiba disso!

SÉFORA

(Espantada). O que é isso, Lourdes? Deixa de tua falsidade! Tu nunca gostasse de minha empregada! E agora vem dizendo que sempre gostou?

LOURDES

Mas agora eu gosto! Eu mudei de opinião! E é por isso mesmo que eu estou aqui, exatamente para falar isto pra ela, dar boas novas...

SÉFORA

Nossa! Que cordialidade! Isso não tá me cheirando muito bem!

LOURDES

(Com ar de fofoca). Séfora, eu não te conto...

SÉFORA

(Irônica). Lá vem fofoca! Tava demorando demais... Fala, vai...

LOURDES

Que fofoca, mulher!? (Transição). Tem lençol aí?

SÉFORA

Que mania ridícula!

LOURDES

Mas repara quem fala! Pior é a tua que já quebraste um monte de relógio com o queixo!

SÉFORA

(Com ironia). Mas eu não casei chupando chupeta, tá?

LOURDES

(Debochada). Mas hoje eu não chupo mais, tá?

SÉFORA

Coitado do meu irmão Erisbaldo! Deve sofrer que sovaco de aleijado...

LOURDES

Você diz isso, porque não é você que agüenta ver ele coçando os ovos e cheirando! (Transição). Mas deixa pra lá, que os ovo é dele e a gente não tem nada à ver com isso! Mas a peste era quem cheirava uma desgraça podre daquela... (Transição). Como é... Tem ou não tem um lençol?

SÉFORA

(Gritando). Zefinhaaaaaaa...

ZEFINHA

(Responde gritando sem aparecer em cena). O que é, dona Séfora?! Eita mulher exagerada da peste! Não precisa gritar que eu não sou surda!

LOURDES

E é assim que ela te trata, Séfora?

SÉFORA

Pra você o tipo de gente que eu convivo! (Transição gritando com a Zefinha). Me trás um lençol aí...

ZEFINHA

(Ainda sem entrar em cena). É a chata de sua cunhada, é? (Entra em cena). Aquela mulher é um porre...

SÉFORA

(Repreende). Zefinha!

ZEFINHA

É isso mesmo! Já falei tá falado e pronto! (Com a Lourde). E já que a senhora está aí, prepare-se pra ouvir o que tá enganchado aqui na minha goela a muito tempo!

LOURDES

(Com falsidade). O que foi que eu fiz?

ZEFINHA

A senhora não fez nada, dona Lourdes! Simplesmente a senhora não vai com a minha cara e tampouco eu não vou com a sua!

LOURDES

(Escandalizada). Séfora!

SÉFORA

Não liga não, que ela é assim mesmo! (Querendo rir). Ôh, Zefinha vai logo buscar esse lençol!

ZEFINHA

Como a senhora me pediu com muita educação, eu já tou indo... (Sai de cena).

SÉFORA

Se isso fosse rica, não pisava no chão!

LOURDES

O pior é que ela é, minha filha!

SÉFORA

(Séria). Não entendi!

LOURDES

Eu estou dizendo que a Zefinha tá com a bola toda! Deixa o Erisbaldo chegar, que ele vai te contar tudo!

SÉFORA

Ah, você agora me deixou na curiosidade!

LOURDES

Eu não gosto de fofocas! Mas deixa eu te adiantar algumas coisas... (A Zefinha vai entrando e ouve quando a Lourdes fala o nome dela. Ela pára e fica escutando). A Zefinha foi a felizarda da herança do seu Holanda! Ele passou todos os bens dele para ela...

SÉFORA

Eu não acredito que aquele velho seboso teve coragem de fazer uma coisa dessa!

LOURDES

Mas teve! Agora, o Erisbaldo pediu pra ter todo cuidado do mundo para essa notícia não chegar aos ouvidos dela, que ele vai falar com o advogado pra ver se derruba essa cachorrada, que o velho fez com a gente!

SÉFORA

Eu vou matar aquele velho desgraçado...

LOURDES

Agora é tarde que ele tá desaparecido! Se ele não estiver morto, deve tá aprontando mais alguma, com certeza...

SÉFORA

Lourdes, se a Zefinha descobrir uma coisa dessa, estamos todos perdidos!

LOURDES

Descobrir? Como? Só se você contar!

SÉFORA

E você acha que eu estou doida, Lourdes? Entregar o ouro assim de mão beijada? (Transição). Como foi que o Erisbaldo descobriu isso?

LOURDES

Diz o Erisbaldo, que ouviu o advogado do velho Holanda, conversando com o Juiz...

SÉFORA

Conversando o que?

LOURDES

Que o velho Holanda passou todos os bens dele para a Zefinha e... (A Zefinha desmaia).

SÉFORA

O que foi isso?

LOURDES

Foi a Zefinha que desmaiou!

SÉFORA

Ela estava ouvindo... E agora?

LOURDES

(Apavorada). Ai, meu Deus! O Erisbaldo vai me matar!

SÉFORA

Isso não é problema!

LOURDES

Eu pensei que você gostasse mais de mim!

SÉFORA

Pois pensou errado! Tu sabes muito bem, que nós somos unidas pela falsidade! (Transição). Vamos, mulher, me ajuda aqui! (Vão levantando a Zefinha).

ZEFINHA

(Meio tonta). É verdade isso que eu acabei de ouvir?

LOURDES

Aproveita enquanto ela tá aí bêbeda, e vamos uma dose de veneno de rato, pra ela ficar durinha, durinha!

SÉFORA

Tá ficando doida, Lourdes? Se matar a mulher, a coisa vai ficar feia pra o nosso lado! (Transição). O que foi que tu ouvisse, Zefinha?

ZEFINHA

Ora, dona Séfora! Que eu sou dona disso aqui tudinho... (Transição volta a si). Eu sou dona de que? Disso aqui? Tudinho é meu? (Dá uma gargalhada). É o mesmo que bater na sena sem jogar...

SÉFORA

Seria melhor que você tivesse ficado calada, Lourdes!

LOURDES

Como era que eu ia advinhar que essa empregadinha de meia tigela estava aí escutando!

SÉFORA

E agora? O que a gente vai fazer, hen?

LOURDES

Vamos ter que pensar... (Pega o lençol que a Zefinha trouxe, senta numa cadeira, enrola-o no pescoço e passa entre os dedos do pé e começa a coçar os dedos da mão, alisando o lençol).

SÉFORA

Você está ficando maluca, Lourdes?

LOURDES

Eu Séfora?

SÉFORA

Que mulher mais complicada tu és, hen, Lourdes? Pôxa!

LOURDES

Nem ligo! Eu só consigo pensar desse jeito! (É atrapalhada pela Zefinha, que dá uma gargalhada eufórica).

SÉFORA

Nesse mato tem cachorro!

ZEFINHA

Não tem não! Vocês agora vão me pagar! Sabe por que?

SÉFORA

(Temerosa). Não, por que?

ZEFINHA

(Outra gargalhada). Porque sou rica, podre de rica... (Outra gargalhada).

SÉFORA

(De salto e com raiva). Você tá ficando besta!

ZEFINHA

(Autoritária). Psiu... Fale baixo, que eu não sou sua da sua turma!

LOURDES

(Escandalizada). Oh! Séfora! E tu vais ficar calada, é?

SÉFORA

(Com raiva). Você está despedida!

ZEFINHA

A senhora acha que eu, Zefinha da conceição, dona de tudo isso aqui, deve ir embora? (Transição). Fique sabendo que quem vai sair daqui, é a senhora e sua raça... Com a mão frente e outra atrás...

SÉFORA

(Com raiva). Mas respeito comigo!

ZEFINHA

Vou lhe dar um prazo de meia hora pra senhora arrumar os seus picuá!

LOURDES

O que é isso?

ZEFINHA

(Debochada). Que mulher mais burra! Eu tou falando, arrumar os trapos e cair fora... Antes que eu solte os cachorros!

SÉFORA

(Escandalizada). Como é que pode? Eu estou sendo expulsa de minha própria casa! É muito desaforo!

LOURDES

Estou vendo! E quer saber de uma coisa? Eu vou embora que a coisa não está muito por aqui!

ZEFINHA

E eu posso saber para onde?

LOURDES

(Debochada). Para a minha casa, não posso?

ZEFINHA

Podia...

SÉFORA

Não estou entendendo!

ZEFINHA

Esqueceu que eu sou dona de tudo que pertence ao velho Holanda?

LOURDES

Mas a casa onde eu moro, é minha, tá?

ZEFINHA

Tá! E é?

LOURDES

Nunca foi, não é Lourdes?

LOURDES

(Repreende). Séfora!

SÉFORA

Quando você casou com meu irmão Erisbaldo, o velho lhe deu uma das casas, tá certo! Só que ele não bate prego sem estopa! A casa que ele lhe deu, ainda está em nome dele...

ZEFINHA

Ah, então também é minha!

SÉFORA

Acho que falei demais!

LOURDES

Falou mesmo! Desgraçada!

ZEFINHA

(Gritando). As duas estão na rua! (Sai empurrando as duas).

SÉFORA

(Tensa). Mas nós não temos para onde ir!

LOURDES

E também você não vai querer botar pra fora de casa, uma pessoa que sempre gostou de você, não é verdade, Zefinha?

ZEFINHA

Deixa de tua conversa! A senhora nunca gostou nem da senhora mesmo! Tá lembrada que foi a senhora mesmo quem fez todo inferno pra dona Séfora me botar pra fora? Porque não ia muito com a minha cara? É muito falsa esta mulher!

LOURDES

(Escandalizada). Eu fiz isso?

ZEFINHA

Por acaso, é doida ou tá se fazendo, hen mulher?

LOURDES

Eu lembro sim... Claro, que eu me lembro! Como era que eu ia esquecer disso?! Mas foi para o seu bem!

ZEFINHA

Ah, foi? Então eu também vou fazer uma coisa para o seu bem!

LOURDES

É assim que eu gosto de ver!

SÉFORA

(Alegre). E o que é?

ZEFINHA

Vou lhe botar pra fora da minha casa! Ou melhor, as duas... (Começa à empurrar as duas novamente).

SÉFORA

Você não pode fazer isso com a gente, Zefinha!

ZEFINHA

(Vai até a porta). A porta da casa é a serventia da rua!

LOURDES

Mas nós não temos para onde ir!

ZEFINHA

Se vire! A senhora não é quadrada!

SÉFORA

Eu faço qualquer coisa que você quiser! Mas pelo amor de Deus, não bote a gente pra fora de casa!

ZEFINHA

Pode até ser! À não ser que vocês trabalhem para mim!

LOURDES

(Espantado). Ohhhhh...

SÉFORA

(De salto). Nunca!

LOURDES

Nunca mesmo!

ZEFINHA

Não vejo outra saída...

SÉFORA

Prefiro morar embaixo de uma ponte, do que ser emprega da minha empregada! Coisa estranha!

LOURDES

É chato mesmo, Séfora!

ZEFINHA

Bom! A decisão é de vocês!

LOURDES

O que tu achas, Séfora?

ZEFINHA

(Com raiva). Espere aí, minha filha! Quem deve achar alguma coisa aqui, sou eu!

SÉFORA

Não tem outra saída!

ZEFINHA

Então tratem logo de por avental, que a minha casa está uma imundice!

LOURDES

(Admirada). Avental?

ZEFINHA

Isso, avental...

SÉFORA

E quanto você vai pagar pra gente?

ZEFINHA

Acha pouco? Casa, comida, roupa lavada e...

SÉFORA

(Gritando). E você tá achando que a gente vai trabalhar de graça, é?

ZEFINHA

Em primeiro lugar, fale baixo! A sua empregada morreu de caganeira faz tem, oh! E também não admito que empregados fale mais alto do que eu... (Transição). Ah! Além disso, é bom saber, que eu exijo que me chamem de senhora!

SÉFORA

Mas é cada uma que a gente ver!

ZEFINHA

Achou ruim? (Abre a porta). Não tem problema! A porta está aberta!

SÉFORA

Tá vendo, Lourdes? Tudo por tua causa! Só conversa merda em horas erradas!

ZEFINHA

E vamos deixar de muito papo e começar ao afazeres!

SÉFORA

Começar por onde? Eu nunca trabalhei!

LOURDES

Eu também não!

ZEFINHA

Não tem problema! Como eu já tenho experiência, eu vou ensinar! Mas vou cobrar, viu?

SÉFORA

E a gente vai pagar com que? Só se for fazer do rabo candeeiro, minha filha!

ZEFINHA

Eu desconto do salário de vocês! Não tem problema nenhum!

LOURDES

Já não gostei da idéia!

SÉFORA

Se a gente ganhar, vai ser uma miséria, com certeza...

ZEFINHA

Já? E a senhora não disse que eu ganhava bem?

SÉFORA

O suficiente para não fazer nada!

ZEFINHA

Pois vocês vão ganhar o que eu não ganhei para fazer alguma coisa! Agora, só tem uma coisinha!

LOURDES

O que foi dessa vez?

ZEFINHA

Os descontos!

SÉFORA

(Espantada). Que descontos?

ZEFINHA

Do que vocês vão comer, beber, das minhas aulas...

LOURDES

Mão de vaca...

SÉFORA

Isso é uma pirangueira da peste! Nem o meu pai...

LOURDES

Espere aí! E você vai arrumar dinheiro onde?

ZEFINHA

Você não, Lourdes! Não sou sua pareceira!

LOURDES

Tá bom, desculpa! E a senhora vai arrumar dinheiro onde?

ZEFINHA

Agora melhorou! Bem... Se tudo do velho Holanda é meu, o dinheiro chega fácil!

SÉFORA

E como é que vai ficar as condições do Saulo, do Erisbaldo...

ZEFINHA

Também já tá tudo certo! O Saulo vai ser o meu chofer e o Erisbaldo vai ser o meu vigia noturno!

SÉFORA

O Erisbaldo? Vigia noturno? (Dá uma gargalhada).

LOURDES

Com a cachaça do Saulo, chofer? Você vai quebrar a cara no primeiro poste que ele encontrar na frente!

ZEFINHA

Ah, mas ele vai ter que acabar com essa cachaçada!

LOURDES

E o Erisbaldo, que manobra todos os bens do velho Holanda? Já pensou ele, como vigia noturno?

ZEFINHA

Ai, ai! Eu vou me sentar! Me bateu um cansaço de repente! Já tá me dando até fome! Vistam logo o avental!

LOURDES

Eu, ir fazer comida? Você está brincando!

ZEFINHA

Que brincando?! Eu não estou mandando... Eu estou ordenando!

LOURDES

Já vou, já vou! (A Séfora começa a pressionar o relógio com o queixo).

ZEFINHA

(Gritando com a Séfora). Pára com essa mania horrorosa! (A campainha toca. Tanto a Lourdes como a Séfora, já estão de avental). Quem diabo será? Vá olhar, Séfora!

SÉFORA

(Abre a porta e fecha bruscamente). É Saulo! (A Saulo dá um grito de dor).

ZEFINHA

E o que é que tem? Mande o meu chofer entrar!

LOURDES

Mas ele não pode ver a Séfora desse jeito!

ZEFINHA

E por que não?

LOURDES

Porque ele sabe, que a Séfora não pega nem num alfinete, quando mais numa vassoura pra varrer uma casa...

ZEFINHA

(Dá uma gargalhada). Então ele não vai gostar nada, quando souber que é meu chofer... (A campainha toca insistente). Abra logo essa porta, Séfora!

SÉFORA

(Abre a porta envergonhada). Oi!

SAULO

(Embriagado). Você tá ficando doida, é? Bateu a porta na minha cara, e quase arrancou o meu nariz! (Transição). E o que essa empregadinha de meia tigela está fazendo aí sentada? (Transição). Com os pés no meu sofá... (Transição gritando). Já pra cozinha...

ZEFINHA

(Dá uma gargalhada).

SAULO

E agora tá zombando da minha cara!

ZEFINHA

(Outra gargalhada). Meu chofer!

SAULO

Acho que bebi demais! Você está é louca! (Com raiva). Já pra cozinha, eu não já disse?

ZEFINHA

(A Zefinha começa à cantar com pose de dona de casa).

SAULO

(Com raiva). Eu já perdi as estribeiras! Eu vou meter a mão na cara dessa sujeita... (Tenta avançar, mas a Séfora segura).

SÉFORA

Você está ficando doido, Saulo?

SAULO

Eu não tou acreditando... A empregada diz o que quer dizer... E eu, é que tou doido, é, Séfora?

LOURDES

Saulo! Ela não é mais empregada!

SAULO

É, pelo visto a empregada agora é você... (Transição dá uma gargalhada). Você de avental, Lourdes? Ou eu bebi demais ou estou tempo um pesadelo... (Outra gargalhada).

ZEFINHA

(Debochada). Isso não é um pesadelo, meu amor!

SAULO

(Aos berros). Cala a boca cachorra!

ZEFINHA

(Toma o copo do Saulo). Vá lavar o banheiro, que é melhor que você faz!

SAULO

E vocês ficam paradas, olhando para a minha cara, é?

ZEFINHA

Não! Elas vão cuidar do restante da casa!

SAULO

Eu não tou entendendo nada...

LOURDES

O seu Holanda passou todos os bens dele para a Zefinha...

SAULO

E por causa disso você... (Transição). O que? Aquele velho tá ficando doido, é? (Com raiva).

SÉFORA

Foi o Erisbaldo que falou para a Lourdes!

SAULO

(Bate com a mão na mesa). Mas isso não pode ficar assim!

ZEFINHA

Não pode não, já está assim! E você vai ser o meu chofer e pronto!

SAULO

(Com cinismo). E se eu não quiser?

ZEFINHA

Pra deixar de ser besta, vai ser assim mesmo!

LOURDES

Ela é a dona, Saulo! (Transição). E por onde devemos começar?

ZEFINHA

Três horas e a barriga não miora, não é, minha filha?

SAULO

(Boquiaberto). Eu juro por Deus, que não acredito no que estou vendo...

ZEFINHA

É, meu filho! Eu sempre digo e vocês não acreditam! “Um dia é da caça e o outro é do caçador...”

SÉFORA

(Pressionando o relógio com o queixo). Cadê o Erisbaldo que não chega?

ZEFINHA

Começou com a mania horrorosa! Já vi que nessa família só tem loucos... Que família!

SAULO

E chegando mais...

ZEFINHA

(Querendo ficar com raiva). Vá cuidar dos seus afazeres que é melhor...

SAULO

E você acha que um homem da alta sociedade como eu, vai ser empregado de uma empregada? (Dá uma gargalhada. Passa pela Zefinha e bota a mão no queixo dela, ironizando). Tchauzinho, fofura! Prefiro pedir esmolas!

ZEFINHA

Depois não venha pedir arreigo...

SAULO

Você esqueceu que eu sou sócio do velho Holanda, minha querida?

ZEFINHA

E o que é que tem?

SAULO

Tenho dinheiro em caixa! E você não presta nem pra puxar carroça, quanto mais pra ser patroa...

ZEFINHA

(Querendo chorar). Eu já vi que alegria de pobre dura pouco... (Chorando). Búúú... Búúú...

SÉFORA

Bem feito, Saulo! É bom dá uma lição nessa coisinha...

SAULO

Já pensou se eu não tivesse esse dinheiro em caixa, o que seria de nós, numa hora como essa?

SÉFORA

Realmente você tem razão, Saulo! Com essa cachorrada que o velho Holanda fez com a gente... Hum... (Pressionando o relógio com o queixo). Eu mato aquele desgraçado...

LOURDES

Ele tá desaparecido, esqueceu, Séfora?

SAULO

E você já viu vasilha ruim se quebrar, Lourdes? Ele deve aprontando alguma coisa, com certeza!

SÉFORA

O Saulo tem razão, Lourdes!

ZEFINHA

(Ainda com pose de dona casa). E vocês acham pouco o tempo que eu estou esperando pra ver esta casa arrumada?

LOURDES

(Aos berros). Vai te catar...

ZEFINHA

(Querendo chorar). Tá vendo, tá vendo? (Chorando). Búúú... Búúú... (A campainha toca e a Zefinha vai atender).

SÉFORA

E você não é dona da casa? Como vai atender a porta?

ZEFINHA

(Querendo chorar). Eu não tenho vocação pra ser patroa mesmo não... (Transição). As coisas do velho não são minhas? (Abre a porta. Transição). Seu Erisbaldo... (transição). Ou melhor... Erisbaldo...

ERISBALDO

(Com raiva). Você me respeite! Quem lhe deu ousadia pra me tratar dessa forma?

ZEFINHA

(Autoritária). Êpa! Baixe a pancada pra minha banda...

ERISBALDO

(Com raiva). Você tá ficando besta! Que piniqueira atrevida!

ZEFINHA

(Querendo chorar). Tá vendo, tá vendo... (Chora). Búúú... Búúú...

LOURDES

(Admirada). Erisbaldo...

ERISBALDO

Lourdes, é melhor você ficar... (Transição espantado). O que é isso? Você de avental?

SÉFORA

Tudo isso é por causa daquele velho!

ERISBALDO

O velho Holanda aprontou de novo?

SÉFORA

(Sem entender). Como o velho Holanda aprontou de novo?! Ôh, Erisbaldo! Você tá ficando doido, é? Não foi você mesmo que falou que o velho passou todos os bens dele pra Zefinha?

ERISBALDO

(Escandalizado). Eu falei isso? Quando? Você é que tá ficando doida...

LOURDES

A Séfora tem razão! Você também falou pra mim...

ERISBALDO

Eu? (Dá uma gargalhada). Estão doidas você e ela... (Outra gargalhada). Vocês não entenderam nada!

SAULO

Depois de uma situação dessa você fica rindo, Erisbaldo?

ERISBALDO

Nunca mais tinha dado boas gargalhadas! Vocês acham que o velho Holanda do jeito que é, vai passar os bens dele, justamente para uma empregada derreada? Só na cabeça de vocês mesmos...

SÉFORA

(Decepcionada). Olha a situação que a gente tá agora?

ERISBALDO

Por que isso?

LOURDES

Simplesmente porque quando a Zefinha, quando descobriu que tudo isso aqui é dela, achou por bem se apossar e expulsar a gente de casa! Como nós não tínhamos para onde ir, tivemos que servir de empregados para ela!

ERISBALDO

(Dá uma gargalhada).E você, Saulo?

SAULO

Eu fiquei como motorista...

ERISBALDO

Motorista? Você? (Outra gargalhada). Só se for para acertar o carro no primeiro poste que encontrar na sua frente...

SAULO

Não ria não! Até você já estava escalado também!

ERISBALDO

Em qual função?

ZEFINHA

(Ainda com pose de dona de casa). Vigia noturno!

ERISBALDO

Vigia noturno? Eu? (Outra gargalhada).

ZEFINHA

Pode rir à vontade! É pura realidade!

ERISBALDO

(Com raiva). Procure o seu lugar, antes que eu bote você pra fora daqui na porrada...

ZEFINHA

(Querendo chorar). Tá vendo, tá vendo? (Chorando). Búúú... Búúú... Eu vou pra cozinha que é melhor... Búúú... Búúú...

ERISBALDO

Vocês confundiram tudo! Eu falei com juiz e perguntei pra ele, se havia uma possibilidade do velho passar os bens dele para alguém! Comentei também, que ele gostava muito da empregada de Séfora! Aí o Juiz disse, que era possível o velho passar todos os bens para ela! Isso não quer dizer que o velho fez essa burrada...

LOURDES

Mas você não falou que eu tivesse cuidado para esta notícia não chegar no ouvido dela?

ERISBALDO

É porque eu já lhe conheço! Você fala pelos cotovelos, não é, Lourdes? Eu falei isso, para você não aumentar demais o assunto! Mas parece que foi exatamente isto que aconteceu! Deu no que deu...

SÉFORA

Quer dizer que eu fiz papel de besta, dentro de minha própria casa? (Pressiona o relógio com o queixo). Hummmm...

LOURDES

E eu ajudei... (A Zefinha vem entrando desconfiada).

SAULO

Já pensou que confusão você aprontou, Séfora?

SÉFORA

Tudo por causa dessa empregadinha de uma meia tigela! (Gritando). Já pra cozinha, antes que eu quebre a tua cara, sujeita...

ZEFINHA

(Querendo chorar). Tá vendo? Até nisso eu sou desclassificada... (Chora). Búúú... Búúú... (Sai de cena).

ERISBALDO

Deixa ela pra lá! Eu tenho boas notícias...

SÉFORA

O velho morreu, foi?

ERISBALDO

Eu não falei que tinha uma ótima notícia... Mas é boa... Da última vez que eu vi o velho Holanda, ele estava sem a bolsa e aí, ele desapareceu até hoje...

LOURDES

E daí, Erisbaldo?

SAULO

Isso mesmo! Quer dizer que o dinheiro do velho Holanda está aqui, dentro desta casa!

ERISBALDO

Perfeitamente!

SÉFORA

Que maravilha! (Entra Zefinha como quem está nervosa).

ZEFINHA

Dona Séfora... Dona Séfora...

SÉFORA

(Gritando e com raiva). Eu já mandei você ir pra cozinha! Depois vamos ter uma conversinha... Só nós duas...

ERISBALDO

Ela está nervosa, Séfora... O que houve, Zefinha?

ZEFINHA

Eu ouvi um barulho no quarto do seu Holanda! Eu acho que tem gente lá!

SAULO

É ladrão...

ERISBALDO

(Pensativo). Acho que não...

LOURDES

Por que, Erisbaldo?

ERISBALDO

(Ainda pensativo). Isto está me cheirando...

SÉFORA

A ladrão?

SAULO

Mas isso eu já falei!

ERISBALDO

Que ladrão coisa nenhuma! Isto está cheirando à travessuras do velho Holanda!

ZEFINHA

(Espantada). Será?

SÉFORA

Faz sentido, Erisbaldo! Ele veio buscar a mala de dinheiro...

LOURDES

Você tem razão, Séfora! Ele esqueceu a agora veio buscar...

ZEFINHA

E por onde ele passou?

SAULO

Com certeza pulou a janela do quarto para não chamar a atenção...

SÉFORA

A gente precisa fazer alguma coisa! (Transição). Zefinha, vá lá pegar a mala...

ZEFINHA

Ôxe! Quem vai lá é o guarda!

SAULO

Eu tive uma idéia...

LOURDES

Com certeza é besteira!

SAULO

(Com raiva). Que besteira, Lourdes! E isso é hora de estar com brincadeiras?

SÉFORA

Então fala logo, Saulo!

SAULO

A janela que ele entrou, pode ser travada pelo lado de fora também! Eu vou lá, travo e ele ficar preso!

ERISBALDO

Rapaz, que idéia genial! Faça isso antes que seja tarde demais!

SAULO

Me ajuda, Zefinha?

ZEFINHA

É craro... (Saem de cena o Saulo e a Zefinha).

SÉFORA

Esse meu marido toma umas e outras, mas sempre arruma um jeito pra tudo! (A sonoplastia libera um barulho de uma janela se fechando bruscamente e o velho Holanda dá um grito de dor).

HOLANDA

Oiiiii... Foi em cima do meu dedo, ooooiiii...

ERISBALDO

(Espantado). O que está havendo lá dentro? (Entra Zefinha e o Saulo).

SAULO

Pronto!

ZEFINHA

Ele já tá no quarto preso!

HOLANDA

(Gritando). Eu vou morrer... Eu vou morrer...

LOURDES

Séfora, chame um médico! O velho tá morrendo...

SAULO

Deixa ele morrer! Não vai fazer falta pra ninguém e ainda vai deixar uma boa grana pra gente...

SÉFORA

Saulo... Apesar da safadeza do velho, ele é meu pai... (Transição). Boa idéia, Lourdes eu vou chamar o médico... (Vai ao telefone e disca um número qualquer). Alô... Quem fala!!!! Aqui é Séfora da Broa... (Transição espantada. Desliga o telefone).

ERISBALDO

O que aconteceu, Séfora?

SÉFORA

(Sem graça). Hen? Foi um trote...

LOURDES

Ah, eu adoro trote! O que disseram, hen?

SÉFORA

... Grande merda!

ERISBALDO

Então disque de novo!

SÉFORA

(Disca um número qualquer). Alô! É do pronto socorro? (Transição).

LOURDES

Foi trote de novo, foi?

SÉFORA

Dessa vez caiu numa clínica veterinária...

ERISBALDO

Séfora, não perca tempo! Numa hora como esta qualquer coisa serve!

SÉFORA

Alô! Estou precisando urgente de um médico... (Transição). O que? Você está brincando!!! (Falando com o Erisbaldo). Ele está me perguntando, que tipo é o animal e qual é a raça...

ERISBALDO

Já que a clínica veterinária é tão pertinho, manda ele vir até aqui e olhar com os próprios olhos...

SÉFORA

Quando o doutor chegar aqui, ele ver que raça é! Mande pra casa da Séfora da broa urgente... (Desliga o telefone).

ZEFINHA

Eu só quero saber o que diabo de um veterinário vem fazer aqui!

LOURDES

Examinar o velho, ora!

ZEFINHA

Um médico de animal? Eu nunca vi coisa igual...

SÉFORA

Já chamei tá chamado! (A campainha toca). Foi rápido... (Vai atender a porta).

DOUTOR

(Aperreado). Cadê o cachorro?

SÉFORA

(Escandalizada). Que cachorro, doutor? Tenha vergonha na sua cara! O senhor tá ficando doido, é? Eu lhe chamei aqui, pra fazer uma rápida consulta em meu pai!

DOUTOR

(Escandalizado). O que? Agora eu, é quem digo! A senhora não tem vergonha não? Eu sou médico de cachorro, não de gente...

LOURDES

Deixa de conversa e vá logo consultar o homem...

DOUTOR

E cadê o homem?

SAULO

Tá lá no quarto...

DOUTOR

Vou até lá! Onde fica?

ZEFINHA

Aqui, oh... (Apontando para a porta do quarto).

DOUTOR

(Tentando abrir a porta, mas não consegue). Por que a porta está fechada de chave?

ERISBALDO

Porque o senhor não sabe a fera que está aí dentro!

DOUTOR

Então dona Séfora, chamou o médico certo! Abram a porta que eu vou entrar...

LOURDES

Sem proteção! O senhor tá louco! Só pode tá louco mesmo! Se o senhor acha que tem o pé do ouvido de borracha, então entre...

DOUTOR

Eu sei como me defender... Abram a porta... (A Zefinha abre a porta e fecha novamente só no trinco).

SAULO

Será que o médico vai demorar?

ERISBALDO

(Com o Saulo).Você não acha que está mais preocupado do que eu que sou filho?

SÉFORA

O Saulo só quer ajudar, Erisbaldo...

ZEFINHA

(Irônica). Tá se vendo...

ERISBALDO

Eu estou sabendo da preocupação dele! Isso aí está doido que o velho morra, pra desfrutar dos bens que ele pode oferecer...

SÉFORA

(Repreende espantada). Erisbaldo, como é que você tem coragem de pensar uma coisa dessa de Saulo?

ERISBALDO

Mas se é verdade, minha irmã!

ZEFINHA

Não estou querendo me meter não... Mas aí é caso de briga! E quem vai dar o primeiro tapa?

LOURDES

Vamos parar com essa cachorrada?

SÉFORA

Eu também acho... (O doutor vai entrando se benzendo).

DOUTOR

Misericórdia... Misericórdia...

SÉFORA

O que foi, doutor?

ERISBALDO

O homem morreu?

DOUTOR

Essa coisa que tá aí, é uma fera mesmo!!

LOURDES

Tá! E eu pensei que o doutor ia acabar de vez com a aflição da gente!

DOUTOR

E vou mesmo...

SÉFORA

(Alegre). Jura? (Transição descabreada). Quer dizer...

DOUTOR

(Irônico). Eu entendo a sua aflição...

ZEFINHA

O senhor não entende coisa nenhuma...

SÉFORA

Entende nada, doutor...

DOUTOR

Vocês é que não estão entendendo nada! Olhe, que eu tive uma conversa com o velho Holanda e ele me explicou tudo! Por sinal, ele me falou muito bem do seu Erisbaldo...

SAULO

E eu tou vendo o Erisbaldo coçando os ovos e cheirando...

SÉFORA

(Repreende). Deixa disso, Saulo... Doutor, não ligue para o que o Saulo fala, porque quando ele bebe...

SAULO

E tu calas tua boca, que quando casaste comigo, tu não eras mais moça...

ZEFINHA

Tá! Essa eu não sabia...

SÉFORA

(Com ironia). Era não, Saulo... Era uma piranha, não era?

SAULO

Tá vendo só, doutor?

ERISBALDO

Esse Saulo não presta! Depois que toma umas e outras, fica desmoralizado...

LOURDES

Doutor não ligue pra eles! Vá olhar como está o velho!

DOUTOR

De novo?

LOURDES

Quem é o doutor aqui, doutor?

DOUTOR

Sou eu, é claro e evidente!

SÉFORA

Então vá ver se adianta as coisas pra ver se traz pra gente, uma boa notícia dessa vez...

DOUTOR

O que a senhora tá querendo dizer com isso?

SÉFORA

Pra bom entendedor, pouca palavra basta!

DOUTOR

Já tou indo... (O médico entra no quarto).

LOURDES

(Rindo). Saulo, tu não tens jeito mesmo!

SAULO

É isso mesmo! É bom que esse velho morra mesmo pra deixar de ser ruim...

SÉFORA

Continue pensando assim, Saulo! (Pensativa). Vocês já pensaram se o velho morre? Por uma hipótese! Aqui pra nós! Vai deixar um dinheirão pra gente! Eu não quero nada! Aliás... Eu só vou querer o dinheiro, claro, que eu não sou burra... Aquele relógio de parede da casa dele, que me parece que é de ouro e alguns móveis...

LOURDES

(De salto). O que?! Eu já estava de olho nele! De jeito nenhum! Aquele relógio é meu e ninguém se meta a besta de querer tomar!

SÉFORA

É bom saber que eu sou filha! Tenho mais direito!

LOURDES

E eu sou mulher do Erisbaldo, que também é filho, tá, querida?

ZEFINHA

Isso vai dar em merda!

ERISBALDO

Minha gente! O velho nem morreu e vocês já estão dividindo os cacos...

LOURDES

(Transição). Mas Erisbaldo, eu estou tão preocupada!

ERISBALDO

Com quem, meu bem?

LOURDES

É com Toninho, Erisbaldo! Ontem foi tão lindo ele namorando com Caty...

SÉFORA

Olha, Saulo! Tem jeito não! A gente se mata de esperar um baú de dinheiro que tá pra cair do céu e a Lourdes falando naqueles guenzas que ela cria!

SAULO

(Irônico). Estou vendo!

LOURDES

Não estás vendo nada! Toninho é um cachorro, mas é como se fosse meu filho mais novo... (O doutor vem entrando).

ZEFINHA

Olhe o doutor, dona Séfora!

SÉFORA

Você tem razão, Zefinha!

SAULO

Tomara que ele traga boas notícias...

SÉFORA

Tomara mesmo! (Pressionando o relógio com o queixo).

DOUTOR

(Com a Séfora). O que foi, minha filha? Está se sentindo mal?

SÉFORA

Ahhhh... Hummmm...

SAULO

Ela é doida mesmo e o pai não sabe!

ERISBALDO

Sim, doutor! Como é que tá o velho?

DOUTOR

Olhe! (Com ar de cochicho). Ele mandou dizer que não ia passar dessa noite!

LOURDES

Eu sabia que o velho tava com safadeza...

DOUTOR

Ah! E ele fica o tempo todo resmungando chamando os filhos de ingratos!

ZEFINHA

(Rir). E isso é novidade?

ERISBALDO

(Com a Séfora). Esse teu pai não presta!

SÉFORA

Meu não, teu...

ERISBALDO

Repara se eu tenho uma tinha daquela como pai! Eu não conheço...

SAULO

(Com ironia). Mas conhece o dinheiro dele, não é, Erisbaldo?

DOUTOR

Não entendi...

LOURDES

E não é pra entender mesmo, não! Não é de sua conta! Isto é um assunto de família...

SAULO

Estás vendo, Séfora? A Lourdes caladinha, caladinha, mas de vez em quando solta as dela...

SÉFORA

Olhe doutor! O que a Lourdes fala não se escreve!

ZEFINHA

Como eu já disse, isso vai dar em merda...

SÉFORA

Olha aqui, sua empregadinha de uma meia tigela... Você já aprontou demais, não acha? Você está pensando que eu sou sua pareceira, é? (Gritando). Já pra cozinha, antes que eu tome uma atitude mais drástica!

ZEFINHA

(Querendo chorar). Tá vendo, tá vendo?! (Chorando). Búúú... Búúú... (A Zefinha sai de cena. Com isso o Erisbaldo sem querer, coça os testículos e cheira).

SAULO

De novo, pitada? Coçando os ovos e cheirando?

SÉFORA

Tu gostas de olhar a vida dos outros, não é, Saulo?

SAULO

Séfora! É melhor você parar de encher o meu saco, que teus podres eu já conheço!

DOUTOR

Vocês são loucos...

LOURDES

O que foi, doutor? O senhor tá ficando doido, é? Tá com canseira na nuca? Êta! Ele está com febre... Corre, Erisbaldo... Vai chamar um médico...

ERISBALDO

E o homem não é doutor? Eu não estou entendendo mais nada...

SAULO

Não se preocupem! Eu tomo conta do homem! Mas tomem as providências...

DOUTOR

(Querendo fugir). Vocês loucos... (Gritando). Socorro, socorro...

LOURDES

(Com o Saulo). Eu não vou deixar tu com esse homem sozinho! Além de você está embriagado, ele está com o demônio no corpo... (Abraça o médico). Erisbaldo, pega um lençol pra gente amarrar o doutor... (O Erisbaldo pega o lençol senta o doutor numa cadeira e amarra-o).

SAULO

Séfora, eu tive um idéia...

SÉFORA

Qual foi? Desembucha logo...

SAULO

Você vai chamar o doutor no lugar do Erisbaldo e diz pro doutor que o doutor tá doido! Que ele venha pra cá depressa...

SÉFORA

Que loucura, Saulo! E ele vai entender?

SAULO

Sei lá! Tudo é a mesma merda! Mas você vai assim mesmo! Mas antes de ir, você dá uma passadinha no quarto onde está o velho Holanda e procura a bolsa onde ele guarda o dinheiro...

LOURDES

Erisbaldo, vão mexer no satanás com a vara curta!

ERISBALDO

Estou vendo! Depois não reclame da sorte!

SÉFORA

Mas o Saulo tem razão, Erisbaldo! Aqui pra nós! Por uma hipótica! Nós vamos pegar uma parte de herança antecipada!

DOUTOR

Deixe eu me livrar de você que eu vou contar tudinho para o seu Holanda!

ERISBALDO

Ah, vai contar, é? E por acaso eu falei que você ia se livrar da gente?

DOUTOR

Eu sei que não vou me livrar e nem vocês vão achar médico nenhum, porque eu sou médico! De cachorro, é claro! Mas quem não tem cão caça com gato! Eu estou aqui, para examinar e não para ser examinado! O velho Holanda precisa de mim e pronto...

SÉFORA

Nesse ponto, o doutor tem razão...

ERISBALDO

Desamarra o homem...

LOURDES

Então fique lá no quarto fazendo companhia para ele não escapar!

DOUTOR

Perfeitamente!

LOURDES

E não vá conversar merda com ele à respeito do que o senhor viu aqui não...

DOUTOR

Perfeitamente! Com toda certeza...

SÉFORA

Então vá logo...

DOUTOR

Êta! Me esqueci do material para o exame!

SAULO

Então vá buscar!

ERISBALDO

Mas volte logo! O senhor sabe que é caso de vida e morte...

DOUTOR

Perfeitamente! (Sai de cena).

SÉFORA

Como é, gente... Eu posso buscar o ouro escondido?

SAULO

Eu pensei que tu já estavas de volta, Séfora!

LOURDES

Repara a peste mesmo! Mulher, tu não sabes a jararaca que está lá dentro...

SÉFORA

Que nada, Lourdes! Vai ser como tirar um doce da boca de uma criança... (Sai de cena e entra no quarto onde está o velho Holanda).

ERISBALDO

Vocês acham que a Séfora vai conseguir? (Todos fazem cara de dúvidas). Pois parece que eu estou vendo ela entrar por aquela porta, sem a fortuna, com um olho troncho e com o pé do ouvido sem as orelhas!

SAULO

Caramba, tudo isso?

ERISBALDO

Sem contar com o queixo onde ela quebra os relógios...

LOURDES

Também não exagera, não é, Erisbaldo?

SAULO

E se fosse tu, Erisbaldo?

LOURDES

Quem? O Erisbaldo é homem pra dar e vender...

SAULO

Que ele dar umas coçadas e depois umas cheiradas, isso eu sei...

ERISBALDO

Faz de conta que eu não ouvi essa...

LOURDES

A gente só tá pensando no pior! E se ela conseguir?

ERISBALDO

Se ela conseguir, que eu acho muito difícil! Estamos todos eleitos... (Ouve-se um barulho de quebra-quebra, grito e muita confusão e um forte barulho de vidro se quebrando e um silêncio total. Entra a Séfora com a maleta, com um olho roxo, como quem levou um murro e puxando de uma perna).

SAULO

O que foi que eu disse?! Não falei que ela ia conseguir?

LOURDES

Erisbaldo, o velho tá virado na gota!

ERISBALDO

É! Mas a Séfora é uma mulher de muita coragem! Veja as condições que ela está! Eu acho é pouco! Quem mandou querer enrolar o próprio pai?

SAULO

E ai, Séfora? Trouxe a fortuna?

SÉFORA

Se eu trouxe a fortuna não sei... Mas que eu trouxe umas boas porradas, isso trouxe e não foram poucas... Aiiii... Oiiii...

ERISBADLO

Sim... Mas cadê o velho?

SÉFORA

Ah, eu também dê-lhe uma cacetada! Ele quebrou o vidro da janela e se mandou...

SAULO

É, mas vamos começar a dividir a fortuna!

LOURDES

O que estamos esperando?

ERISBALDO

Nessa parte, eu estou de pleno acordo...

SÉFORA

Dividir coisíssima nenhuma! A coisa tem que ser feita do modo que eu achar melhor!

ERISBALDO

Como eu sou o mais velho, o mínimo que a Séfora tem que me dar, é cinqüenta por cento do apurado...

SÉFORA

Deixa de ser cachorro, Erisbaldo... Por uma hipótica! Eu levei porrada que só a peste! E ninguém teve coragem de desafiar a fera! Mas eu consegui arrancar o doce! Depois de tanto trabalho que eu tive, dividir o lucro? Nem morta! Eu como o doce e você ficam arrotando de longe...

LOURDES

(Com raiva). Maldita unha de fome!

SAULO

Bota quente, Séfora...

ERISBALDO

E quem disse que eu vou deixar por isso mesmo? (Dá uma coçada e depois uma cheirada. Depois parte pra pegar a mala da fortuna).

LOURDES

Ah, eu também vou...

SAULO

Vou defender a minha mulher! Estou indo... (Todos ficam agarrados na mala e começa o puxa-puxa).

SÉFORA

Isso é uma peste mesmo! A mala é minha... Fui eu quem peguei...

LOURDES

É nossa, sua vaca delinqüente! Pode ficar com aquele relógio do velho! É todo seu...

SÉFORA

Repara se eu quero aquela coisa velha! Eu nunca falei que eu queria...

ERISBALDO

Puxa, Lourdes... Puxa... (Puxando a mala).

LOURDES

Estou puxando, Erisbaldo...

SAULO

Puxa, Séfora, Puxa...

SÉFORA

Estou puxando, Saulo... (A bolsa se abre e cai um monte de remédios no chão).

LOURDES

(Escandalizada). O que é isso?

SÉFORA

Tanto trabalho pra nada! (Pressionando o relógio com o queixo).

SAULO

Tá! E a gente nem se lembrou que o velho Holanda, não carrega dinheiro na bolsa e sim, remédio...

SÉFORA

Mas isso não pode ficar assim...

LOURDES

Não pode não! Isso não vai ficar assim...

ERISBALDO

Temos que bolar uma idéia pra gente arrancar de vez essa fortuna...

SÉFORA

(Pensativa). Já sei...

ERISBALDO

Já?!

LOURDES

Fala de uma vez, mulher!

SAULO

Cuidado, Séfora! Fale devagar...

SÉFORA

É melhor a gente ir atrás do velho e quando pegar o bicho, a gente obriga a ele a soltar a grana...

SAULO

E tu achas que ele vai querer vir, Séfora?

SÉFORA

A gente traz assim mesmo... Na marra...

ERISBALDO

Minha irmã, você acabou nesse momento de me dar uma idéia fabulosa!

LOURDES

O Bardinho sabe o que diz...

SÉFORA

Então fale! Se for melhor do que a minha, que eu acho muito difícil, a gente age...

ERISBALDO

Prestem atenção! Nós vamos pegar o velho nem que seja na porrada e traz ele pra cá...

SÉFORA

E daí?

ERISBALDO

E daí?! A chave da coisa! A gente obriga de maneira bem feroz para o velho dizer aonde está a grana...

SAULO

Êita...

SÉFORA

Mas essa foi a minha idéia...

LOURDES

Mas Erisbaldo completou...

ERISBALDO

Agora! Depois de tanto trabalho que eu tive! Depois de tantas pestanas queimadas de pensar nessa idéia, eu mereço nada mais nada menos, que cinqüenta por cento do que a gente conseguir...

SÉFORA

É o besta!

LOURDES

Besta não, Séfora! Erisbaldo tem toda razão! O tempo não está pra fazer graça pra ninguém rir, não... É toma lá, dá cá...

SAULO

Eu não quero me meter não! Mas que ele roubou a idéia de Séfora, roubou feio...

ERISBALDO

Eu não roubei idéia de ninguém! Eu apenas criei em cima daquilo que a Séfora havia exposto, uma genial maneira de arrancar de vez, a fortuna do velho Holanda! (A Séfora se irrita, olha para o Erisbaldo com seriedade e novamente começa a pressionar o relógio com o queixo. Quando Erisbaldo nota que a coisa é séria, dá uma coçada e uma cheirada e a séfora parte pra quebrar a cara dele).

LOURDES

(Separando a briga). Séfora, se acalme... Não se afobe...

SÉFORA

Saia da minha frente que a minha conversa é com ele...

ERISBALDO

(Se abraça com a Lourdes). Me salva, mulher...

SAULO

(Agitando). Toma, desgraçado! Nunca mais tu vais se meter com a idéia alheia...

LOURDES

Séfora, você já passou da conta... Agora a conversa é comigo... (A campainha toca insistente).

SÉFORA

Quem será?

ERISBALDO

E quem sabe?

SÉFORA

(Gritando). Zefinha...

ZEFINHA

(Entra em cena). O que é, dona Séfora?

SÉFORA

Vá olhar quem peste tá tocando esta campainha! Se for esmola, bata a porta na cara...

ZEFINHA

(Abre a porta). Perdoe... (Fecha a porta bruscamente, acertando os dedos do velho Holanda).

HOLANDA

Ôiiii... Minha mãozinha... Ôiii... (Transição). Isso é uma peste...

ZEFINHA

Êta! É o seu Holanda... (Abre a porta). Ôh, seu Holanda, me desculpa... Nem notei que era o senhor... Pensei que era mesmo um esmolé... (Entra em cena o seu Holanda e o Doutor).

HOLANDA

Cadê a minha bolsa?

SÉFORA

Não, paizinho! Se acalme... Se acalme! O senhor sabe que eu sempre apoiei o senhor em tudo...

ERISBALDO

(Com ironia). Tá se vendo...

LOURDES

Olhe, doutor... Se acontecer alguma coisa com o velho, a culpa é sua...

DOUTOR

Não tem nada a ver! Não me comprometam... (O velho encara o Erisbaldo).

HOLANDA

(Revoltado). Filho ingrato...

DOUTOR

Vamos botar o seu Holanda nessa cadeira, que eu vou examina-lo! (Transição). Me esqueci novamente da mala! Mas volto rápido... (Sai de cena).

ZEFINHA

De novo?

ERISBALDO

Esse doutor tá fazendo hora...

SAULO

Seu Holanda, a pessoa quando está doente, tem que gemer muito...

HOLANDA

(Geme). Oiii...

SAULO

Mais alto...

HOLANDA

(O velho geme mais alto). Oiiiii...

SAULO

Tem que ser mais alto ainda...

HOLANDA

(O velho obedece). Oiiiii...

ERISBALDO

O senhor não está doente coisíssima nenhuma...

HOLANDA

(Gritando). Quem não tá doente, peste? Filho ingrato!

ERISBALDO

Não venha com alteração não, que o senhor vai tomar um bonde muito errado...

HOLANDA

(Pega um copo). Eu quebro esse copo na tua cara...

ERISBALDO

Aí, eu arranco o seu dinheiro na marra e compro uma dúzia...

HOLANDA

Nem brincar a gente pode mais!

SAULO

Olha! Quando fala em gastar o dinheiro, o velho tem logo um ataque...

SÉFORA

Pai, quando o médico terminar de lhe examinar, pague sem fazer escândalos...

LOURDES

Quem? Esse? Acho difícil...

HOLANDA

(Gritando com a Lourdes). Quem te chamou aqui, bexiga...

ERISBALDO

(Repreende). O que é isso, pai?

HOLANDA

Eu estou doente, por causa dessa peste!

LOURDES

Não venha jogar seus dengos pra cima de mim, não... (O doutor retorna com a maleta para examinar o velho).

DOUTOR

(Como quem tá tratando de uma criança). Seu Holanda... Bilú, Bilú, Bilú... Vamos começar o exame?

ZEFINHA

Ele já está pronto...

DOUTOR

(Com o velho). É?! Mas tem que pagar adiantado, porque eu já lhe conheço muito bem...

HOLANDA

E quanto vai ser o exame?

SAULO

Virgem! Agora vai pegar fogo...

ERISBALDO

Pai, seja lá quanto for, o senhor não quer ficar bom?

HOLANDA

Ôh peste, bubônica da peste! Quem disse que eu tenho dinheiro, peste?

SÉFORA

Todos nós sabemos que o senhor tá montado na grana... Confessa, vai...

ZEFINHA

O senhor não tem cara de quem tem pouco dinheiro, seu Holanda...

LOURDES

É, seu Holanda! A gente não tá aqui pra outra coisa...

DOUTOR

Tá aqui a conta... (O velho olha com um olho aberto e outro fechado).

ZEFINHA

Doutor, diga devagar porque se não o velho vai morrer de um ataque...

ERISBALDO

Então diga logo e rápido...

LOURDES

(Dá um beliscão). Erisbaldo...

DOUTOR

(Paulatinamente). Dois milhões de cruzeiros...

HOLANDA

Aí, oi, ui... Eu vou morrer... (Vai caindo devagar para não se machucar).

DOUTOR

(Apavorado). Eu sou um assassino! Matei o velho!

ERISBALDO

Eu já conheço essa manha, doutor! Deixe ele morrer que amanhã a gente enterra! Só assim vamos curtir o dinheiro que ele vai deixar pra gente... (O velho Holanda se levanta e limpa o traseiro com a mão).

HOLANDA

Filhos igratos! Eu testei todos vocês...

SÉFORA

Testou? Não entendi...

HOLANDA

O doutor me contou toda história...

LOURDES

Traste ruim, nos traiu...

HOLANDA

Eu já estou sabendo de tudo...

ERISBALDO

Nós não deveríamos ter deixado esse porco sair daqui!

ZEFINHA

Agora é tarde...

HOLANDA

Vocês queriam me matar pra ficar com meu dinheiro...

SÉFORA

(Querendo se safar). Meu pai...

HOLANDA

(Com raiva). Cala a boca imbecil...

LOURDES

E agora?

HOLANDA

Agora, vocês vão provar do próprio veneno! Vocês não querem herança? (Pausa e grita). Respondam! (Todos ficam calados). Nenhum de vocês vai entrar no inventário! Eu passei esse tempo todinho cuidando dos papeis...

ERISBALDO

O senhor não pode fazer isso com a gente, meu pai!

HOLANDA

(Com raiva). Não me chame de pai...

ZEFINHA

Se acalme, seu Holanda...

DOUTOR

Eu acho melhor eu ir embora que o assunto é de família!

HOLANDA

Muito obrigado, doutor... (O doutor passa pelos filhos e todos ficam rosnando como cachorros e sai de cena). Podem rosnar à vontade de raiva! Só existe uma pessoa que merece ser herdeira da minha fortuna...

SÉFORA

É claro, que sou eu...

ERISBALDO

Eu aposto que sou eu! Eu sou o mais velho da família...

HOLANDA

E o mais safado...

LOURDES

E precisa falar assim com o Bardinho?

SAULO

E quem é o herdeiro?

HOLANDA

Está aí, a nova herdeira... (Abraça a Zefinha).

SÉFORA

(Escandalizada). Quem?

SAULO

A Zefinha? Vai começar tudo de novo...

ERISBALDO

Eu não acredito no que eu estou vendo! O senhor está ficando é doido...

SÉFORA

(Querendo chorar). E como é que vai ficar a nossa situação se até a casa que a gente mora, lhe pertence?

HOLANDA

Vocês vão saber se virar sozinhos...

ERISBALDO

Mas a gente trabalha pra o senhor! Nós não temos pra onde ir...

HOLANDA

(Irônico). Se virem... (Dá uma risada).

SÉFORA

Tá vendo, Erisbaldo? A Zefinha terminou sendo a herdeira de tudo! (Pressiona o relógio com o queixo e com a testa e o Erisbaldo coça os testículos e cheira. O telefone toca).

ZEFINHA

(Com pose de dona de casa). Séfora vá atender o telefone...

HOLANDA

E faça o que ela está mandando! A Zefinha é a minha nova família...

TODOS

Que família!... (Os refletores se apagam e chega o fim da peça QUE FAMÍLIA).

FIM

PEÇA: QUE FAMÍLIA!

AUTOR: FLÁVIO CAVALCANTE

MÊS: FEVEREIRO

ANOS: 1994

Obs: Todo trabalho desenvolvido por este autor, é totalmente fruto da imaginação; porém, qualquer semelhança, é mera coincidência.

Flavio Cavalcante
Enviado por Flavio Cavalcante em 29/03/2009
Código do texto: T1511854
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