"O RETRATO DE VÓ BERNADETE" Peça teatral de: Flávio Cavalcante
O RETRATO
DE
VÓ BERNADETE
Peça regional nordestina
De
Flávio Cavalcante.
ROLL DOS PERSONAGENS
- ARLINDO SILVEIRA
- VERÔNICA
- DONA NÚBIA
- GUTO
- PADRE
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SINOPSE
Depois de várias pesquisas feitas e varias passagens pelo sertão nordestino, me despertou o desejo de escrever regionais. O linguajar nordestino, apesar de ser discriminado em certas regiões, torna-se para mim, o mais belo e mais importante; não só pela linguagem propriamente dita, mas pela simplicidade do povo sofrido, que não sabe a riqueza que carrega dentro de si. Todo regional que escrevo, o linguajar difere muito de um trabalho para o outro; motivo pelo qual, cada pessoa que mora num sítio muito distante da cidade, se comporta com uma linguagem ou sotaque diferente das pessoas que moram na cidade e posteriormente das que moram na capital. Este trabalho, se passa em alguma cidadela do interior do Nordeste brasileiro. Lugar pouco atrasado e de gente muito humilde.
O RETRATO DE VÓ BERNADETE, é uma estória regional nordestina. Conta a estória de uma velha conhecida por Bernadete, que faleceu há muitos anos num massacre. Sendo que, houve mais morte além da velha; sua filha e seu genro. O autor do crime foi um filho de criação da velha Bernadete, não registrado, conhecido por Arlindo Silveira, que por não agüentar ver a Bernadete passar todos os bens que a ela pertencia para a sua filha legítima, resolveu acabar com a família inteira, menos com o neto da velha; na intenção de criar a criança como filho, para quando o mesmo atingir a maturidade, passar todos os bens que a ele pertence por lei, para o Arlindo Silveira, sabendo ele, que o Arlindo é o pai legítimo. Mas a velha Bernadete, mesmo depois de morta, através de seu retrato na parede, tenta destruir o Arlindo Silveira e desvendar para o seu neto, toda a verdade.
Será que essa estória é realmente real? Ou será que o Arlindo Silveira é um psicopata, a ponto de ocupar um lugar no hospício?
É, sem ler o trabalho, como é que a gente pode saber?
Flávio Cavalcante.
“O RETRATO DE VÓ BERNADETE”
Cena escura, a sonoplastia libera sons de grilos. É noite. Entra uma música de fundo, bem regional nordestina. A luz vai clareando gradativamente. Em cena está a Dona Núbia, sentada numa cadeira de rodas, de sono solto e Verônica, deitada sobre um sofá, também de sono solto. É noite alta. Repentinamente, entra o padre e nota que a Verônica está em posição que dá pra ver sua calcinha. Ele vai se aproximando também da dona Núbia, que acorda aos berros descontroladamente. Entra imediatamente assustado com os gritos da velha e da Verônica, também assustada, o Arlindo Silveira. O padre imediatamente disfarça rezando perto de um santuário, localizado em algum canto de parede da casa. O cenário é o interior de uma casa regional, com um retrato de uma velha sisuda na parede. Este retrato está pintado com uma tinta especial, meio florescente. Assim que a luz acender nele, dá-se a impressão que a velha está viva.
ARLINDO SILVEIRA
(Entra apavorado). O que diabo está acontecendo por aqui? Que gritos são estes? (Todos se calam, menos a velha Núbia, que continua aos berros).
VERÔNICA
(Sem jeito). Nada não, papai...
ARLINDO SILVEIRA
(Com raiva). Como não está acontecendo nada?! (Transição com a Núbia). Se acalme, mamãe... (Transição). Você está vendo, Verônica? A minha mãe quase morreu de susto! Se ela ficar com algum trauma, a culpa é toda sua...
VERÔNICA
E eu fiz alguma coisa demais? Só porque eu estava dormindo?!
ARLINDO SILVEIRA
Parecia uma desvairada!
VERÔNICA
Foi um sustozinho a toa, papai... Não foi, vovó? Vai ver que ela teve um tremendo pesadelo! Foi isso mesmo, vovó?
NÚBIA
(Soluçando com o susto). Foi...
ARLINDO SILVEIRA
Veja o estado que a mamãe ficou... Vocês vão acabar matando ela do coração! (Transição). Se acalme, mamãe! Está tudo bem agora! (Transição). Finalmente o que está acontecendo por aqui? (Vê o padre). E o senhor, padre... O que está fazendo aí, ajoelhado diante do meu santuário?
PADRE
Quem, eu? (Transição). Quer dizer... Eu estou rezando!
ARLINDO SILVEIRA
Eu estou vendo; mas a esta hora da noite? E o senhor poderia também me explicar que gritaria foi essa?
PADRE
(Embaraçado). Eu não sei! Eu não ouvi nada... (Transição). Quer dizer... Eu ouvi tudo, mas não pude fazer nada!
ARLINDO SILVEIRA
Não entendi absolutamente nada! Vocês querem fazer o favor de me explica melhor o que está acontecendo?
NÚBIA
Verônica, minha neta; por favor, pegue o meu remédio... Eu não estou me sentindo bem...
ARLINDO SILVEIRA
Está sentindo alguma coisa, mamãe? Não esconda doença; diga logo o que está acontecendo... Ou melhor... O que a senhora está sentindo!
NÚBIA
Eu estou sentindo uma boa vontade de meter a mão em gente de sua laia, Arlindo! Você ainda vai acabar com os meus nervos! Quase morri de susto!
ARLINDO SILVEIRA
Mas não fui eu, mamãe...
NÚBIA
Se não foi você, quem poderia ter sido, Arlindo?
ARLINDO SILVEIRA
Eu não sei o que está acontecendo por aqui...
PADRE
Pode deixar, que eu explico!
NÚBIA
Quem é este homem todo de preto? Por acaso tu tá botando macho aqui dentro, pra tá chumbregando com a Verônica, Arlindo? (Transição repreendendo). Tu toma tenência, cabra! Eu ainda não morri não, visse?!
VERÔNICA
Mas o homem de preto não é macho não, vovó! (O padre faz um olhar como quem não gostou). É o padre!
PADRE
Mas respeito comigo, senhor Arlindo Silveira! Eu sou muito, mas muito macho e você sabe disso!
VERÔNICA
Desculpa, padre!
NÚBIA
Desculpa, padre! Sua benção...
PADRE
Deus lhe abençoe, dona Núbia...
NÚBIA
(Com ironia). E quer saber de uma coisa, Verônica! O fato dele ser um padre, não quer dizer nada! Tem bilunga do mesmo jeito... (O padre faz um olhar espantado).
ARLINDO SILVEIRA
(De salto repreendendo). Mamãe...
VERÔNICA
(Escandalizada). Vovó...
PADRE
(Sem jeito). É brincadeirinha; não é, dona Núbia?
NÚBIA
E eu sou lá mulher de tá com brincadeirinhas, padre?
ARLINDO SILVEIRA
Ligue não, seu padre! De vez em quando, mamãe sai com cada uma! É a idade...
NÚBIA
Velha é a tua mãe, Arlindo...
PADRE
Eu não ligo não! Deus sabe o que faz, seu Arlindo Silveira... A gente é que não sabe o que diz! Já pensou...
NÚBIA
... Já pensou o que, padre?! (Transição). Eu não mando recadinho! O que eu tenho pra dizer, eu digo na cara, doa quem doer! Um dia que eu começar a falar muitas coisas que eu tou sabendo, muita gente vai correr da raia! E o senhor, seu padre; não vai escapar dessa não, viu?
PADRE
(Querendo se sair). Já tarde demais... E eu já vou andando! Tenham uma boa noite!
ARLINDO SILVEIRA
(Desconfiado). O que ela está querendo dizer com isso, seu padre?
VERÔNICA
Nada, papai! O senhor sabe muito bem, que a vovó tá ficando esclerosada...
NÚBIA
(Repreende). Me respeite, Verônica! Esclerosada tá a tua vovozinha, eu não! Arlindo, sente numa cadeira, bem sentado para não cair de bunda no chão! Eu vou abrir o verbo! Eu tenho um monte de coisa pra falar!
VERÔNICA
Não sente não, papai! (Transição). Padre, já tá passando da hora do senhor ir embora! A sua benção! (Beija a mão do padre e faz sinal para o padre sair).
ARLINDO SILVEIRA
... Mas o que diabo o senhor veio fazer aqui na minha casa, a esta hora da noite, padre? O que mamãe tá sabendo que vocês estão me escondendo! Eu não estou gostando nada desse segredinho...
VERÔNICA
Sabe o que é, papai?...
ARLINDO SILVEIRA
... Eu perguntei ao padre, Verônica...
PADRE
Senhor Arlindo Silveira! Eu não admito que o senhor venha fazer tal interrogação para mim! Se eu vim aqui na sua casa a esta hora da noite, é porque eu tive uma grande necessidade de vir até aqui, não é verdade?
ARLINDO SILVEIRA
Verdade! E eu posso saber essa necessidade do que se trata?
PADRE
Claro, que pode! Eu vim aqui, porque tenho um assunto muito importante que vai interessar muito a mim e ao senhor!
NÚBIA
Eu estou sabendo qual é o interesse dele... (Transição). A finada Bernadete já dizia que isso ia acontecer!
ARLINDO SILVEIRA
Mamãe, eu não quero mais ouvir esse assunto aqui dentro de casa! A Bernadete faleceu, já faz mais de dez anos...
NÚBIA
... Mas ela está aqui ainda! Eu sinto a presença dela! Agora mesmo, ela está aqui, em nosso meio...
PADRE
Quem é Bernadete?
NÚBIA
É uma história muito cumprida ! É uma história muito longa...
ARLINDO SILVEIRA
Vamos deixar isso pra lá, mamãe! É passado e o que passou, passou...
PADRE
O que foi que aconteceu com a Bernadete? E quem é Bernadete?
NÚBIA
Ela morreu...
ARLINDO SILVEIRA
Mamãe, eu já mandei a senhora parar de falar! Esta velha só trás o que não presta pra dentro dessa casa!
PADRE
Alguma coisa lhe incomoda, seu Arlindo?
ARLINDO SILVEIRA
(Aponta para o retrato, que tá na parede). Esta velha me incomoda demais!
PADRE
Ah, e Bernadete é a senhora que está no retrato?
VERÔNICA
Ela mesmo! (Transição). Engraçado, papai! O senhor nunca comentou à respeito de vó Bernadete...
ARLINDO SILVEIRA
Eu não quero ninguém falando nessa velha aqui dentro de casa e ponto final...
PADRE
Mas por que tanta raiva? A velha faleceu, segundo o senhor mesmo a mais de dez anos!
ARLINDO SILVEIRA
Mas é como se ela estivesse viva!
VERÔNICA
Papai cisma em dizer, que a vó Bernadete ainda se encontra nesta casa... Isso é loucura!
PADRE
Só pode ser loucura mesmo! Quem morre não volta! À não ser Jesus Cristo...
NÚBIA
Aí é onde o senhor se engana redondamente, padre! (Transição com a Verônica). Não é loucura não, Verônica... É possível sim... Ela está em nosso meio!
PADRE
Não sei o porquê, mas, desde a primeira vez que eu vi esse retrato, não gostei nenhum pouquinho dele! Só em vê-lo já me deu logo calafrios...
ARLINDO SILVEIRA
Vamos deixar esse assunto pra lá! (Transição). O senhor não me explicou ainda, o motivo de ter vindo aqui a esta hora! (Transição). Espere aí... Como foi que o senhor entrou aqui?
NÚBIA
Pela porta, não, é, Arlindo?
ARLINDO SILVEIRA
E eu posso saber o que esta porta estava fazendo aberta a esta hora da noite? (Pausa e transição). Não vão me responder não, é? Ih, esta conversa já tá partindo pra mistério...
PADRE
E o que o senhor está querendo insinuar, seu Arlindo Silveira?
ARLINDO SILVEIRA
(Com desdém e irônico). Eu?! Nada...
PADRE
(Desconfiado). Ohhhhh...
NÚBIA
Se no teu quengo tiver passando alguma malícia, você não está muito errado não, Arlindo! Essa tua filha, de santa não tem nada!
ARLINDO SILVEIRA
E o que a senhora está querendo dizer com isso, mamãe?
PADRE
(De salto e suando). Dona Núbia, cuidado com as calúnias... (Transição). Eu vou embora! Qualquer coisa, eu estou na minha paróquia!
VERÔNICA
(Impede). Não vá agora não, padre! Eu vou preparar um chá com biscoitos agora mesmo!
NÚBIA
Olha, Arlindo... Que bicha mais safada... Quando eu falo, tenho a língua grande...
ARLINDO SILVEIRA
(Repreende). Mamãe, mais respeito com o vigário...
PADRE
Sua mãe, seu Arlindo, é um amor de pessoa... Mas a idade já tá começando a pesar...
ARLINDO SILVEIRA
Home, saia desse imprensado...
NÚBIA
(Com raiva). Vem cá! Tu tá me chamando velha, é? Sim, porque se for isso, pode ficar certo que velha... (Frisando). É a tua mãe...
VERÔNICA
(Repreende). Vovó...
PADRE
(Ri sem jeito). Ela está brincando, não é, dona Núbia? (Transição). Seu Arlindo, eu gostaria de saber mais à respeito de vó Bernadete...
ARLINDO SILVEIRA
Ihhhh, tava demorando demais... Eu já disse...
PADRE
Eu sei que o senhor não quer falar do assunto, mas...
ARLINDO SILVEIRA
Não tem mais nem menos! É uma história antiga, que não tem pra que tá lembrando...
PADRE
Mas seu Arlindo...
ARLINDO SILVEIRA
Não tem choro nem vela e nem fita amarela... Eu já falei que não ia mais falar e eu não vou falar e pronto... Por favor, padre... Não insista...
VERÔNICA
Com licença, que eu vou preparar o chá! Vamos comigo, vovó?
NÚBIA
Eu não saio daqui, nem amarrada! O Arlindo sabe muito bem que essa história, eu não perco por dinheiro nenhum e eu conheço até demais...
ARLINDO SILVEIRA
Pode deixar ela aí, Verônica!
VERÔNICA
Então, com licença... (Sai de cena).
PADRE
Seu Arlindo Silveira... É bem verdade, que eu não sou tão velho na cidade, mas já conheço essa história tão bem, que o senhor não pode imaginar o contrário... Só estou querendo saber alguns complementos...
ARLINDO SILVEIRA
Quem andou conversando merda pro senhor?
PADRE
Isto não vem o caso...
ARLINDO SILVEIRA
É claro que vem, padre! Eu não sei o que diabo andaram falando nos seu ouvidos! Com certeza, falaram um monte de mentiras, não foi, mamãe?
NÚBIA
(Com desdém). Eu não sei de nada...
PADRE
A pessoa que me falou, não anda mentindo a toa, seu Arlindo Silveira!
ARLINDO SILVEIRA
Tá bom, tá bom... Eu vou contar a história como realmente aconteceu... Mas ninguém pode saber! Se o Guto descobrir uma coisa dessas, eu não sei qual vai ser a reação dele...
NÚBIA
Onde está o meu Guto, Arlindo?
ARLINDO SILVEIRA
Ora, mamãe... Deve estar dormindo! Não sei como ele não acordou com essa gritaria!
PADRE
Me responda uma coisa, seu Arlindo! Por que o senhor não gosta de falar no assunto de vó Bernadete?
ARLINDO SILVEIRA
Eu tenho o direito de não gostar, não tenho?
PADRE
É claro, que tem... Mas que é estranho, é!
ARLINDO SILVEIRA
O senhor mesmo não acabou de falar, que conhece toda a história? (Transição). Então eu acho melhor, deixar esse assunto pra lá, que não faz nada bem!
PADRE
Por que o senhor fez tudo aquilo? Eu não sei a história completa!
NÚBIA
Boa pergunta, padre...
ARLINDO SILVEIRA
Não sei lhe explicar, padre! Acho que estava obsedado! A Bernadete na realidade, era a avó de Guto! Eu não sou o pai de Guto... Mas, ele pensa que eu sou! Há quinze anos atrás, a Bernadete recebeu essas terras de seu pai, num inventário que a velha fez antes de morrer! Eu sou o filho bastardo da velha, não registrado, claro! A minha mãe, a dona Núbia... Era empregada da velha Bernadete! Na realidade, foi a velha Bernadete quem me criou! A velha Bernadete só despertava interesse por sua filha legítima e seu genro. Ela, como estava muito velha, fez o inventário antecipado e a desgraçada não me colocou! (Transição). Toda a minha revolta, foi exatamente essa... (Com raiva). Se ela fosse viva... (Transição). Deixa pra lá! Ela já tá morta mesmo! Eu fiquei que não conseguia me dominar! Em uma discussão que eu tive com a velha Bernadete, percebi que ela só vivia pensando nessas malditas terras! Cheguei a um ponto de loucura, que terminou indo longe demais... (Transição). Eu não quero mais continuar o assunto...
PADRE
O que aconteceu com a Bernadete, seu Arlindo Silveira?
NÚBIA
Ele matou ela, a filha e o genro... Eu corri para tentar impedir, mas não consegui! A arma disparou em mim e é por isso que eu estou nessa cadeira de rodas...
PADRE
(De salto). Misericórdia! O senhor estava com demônio no corpo, seu Arlindo?
ARLINDO SILVEIRA
O senhor tem o direito de dizer o que bem entender! Mas também tem que ver o meu lado! Desde o dia em que tudo aconteceu, a velha Bernadete não me deixa sossegado, um só instante!
PADRE
Como assim?
NÚBIA
Ela continua aqui, nessa casa!
ARLINDO SILVEIRA
Eu escuto a voz dela toda hora... (A sonoplastia libera voz ofegante, chamando Arlindo Silveira. Transição). Escutou, padre?
PADRE
Não, eu não estou ouvindo nada!
ARLINDO SILVEIRA
Mas eu escuto a voz dela pronunciando o meu nome o tempo todo! Eu não estou agüentando mais! A minha vida está se tornando um tormento... Um inferno!
PADRE
É muito grave! O senhor tirou a vida de três pessoas, por causa de ambição?! Por acaso sabe o que isso significa?
NÚBIA
Ele é um assassino! Assassino! O meu Guto, padre... É uma pessoa maravilhosa e não sabe de absolutamente de nada...
ARLINDO SILVEIRA
(Com raiva). A senhora quer fazer um favor de parar com isso, dona Núbia? Faz quinze anos, que eu carrego essa cruz nas minhas costas... Mas já aconteceu e não se pode fazer mais nada para voltar atrás... (Transição). O jeito agora, é deixar ele completar os dezoito anos, para ele fazer a transferência de todas as terras para mim! Afinal de contas, eu o registrei como meu filho...
NÚBIA
Você devia se envergonhar, Arlindo! O Guto é um inocente que não sabe de nada!
PADRE
(Com raiva). Como pode ser tão baixo? Devia ter vergonha mesmo! Devia estar na cadeia! Lá é o lugar de assassino frio e calculista de sua espécie!
ARLINDO SILVEIRA
(Dando um basta). Já chega, padre! Neste caso, seu conselho não me interessa! Dê-me a sua benção... (Estende a mão. O padre cospe na cara dele).
NÚBIA
Bem empregado, padre! É assim mesmo que deve ser feito...
PADRE
Eu não estava sabendo de absolutamente nada do caso! Eu joguei uma verde pra colher uma madura! Caiu como um patinho na lagoa...
ARLINDO SILVEIRA
Não tem problema nenhum! Já que o senhor não me abençoou, a minha mãe com certeza me dá a bênção, não é, mamãe?
NÚBIA
(Estende a mão). Eu não tenho outro jeito...
PADRE
O senhor está forçando a sua mãe, a entrar nesse jogo nojento! Isso é o maior absurdo que já vi!
ARLINDO SILVEIRA
Já eu não acho! O maior absurdo, foi sua atitude! Na condição de padre, está mentindo, dizendo que sabia de toda a história, sem está sabendo de absolutamente nada e ainda por cima, cuspir na cara de um cristão! (Transição). Tá, padre! Eu esperava isso de muita gente; agora, do senhor, nunca...
PADRE
(Com raiva). Lave sua boca três vezes quando for falar em cristão! Para ser cristão, é bom lembrar que tem que pelo menos tentar seguir os mandamentos da lei de Deus... (Transição com ironia). Pelo visto, o senhor não está seguindo mesmo, não é, seu Arlindo Silveira? (Transição). Já devia estar na cadeia a muito tempo!
ARLINDO SILVEIRA
(Com raiva). Padre, eu já matei três! Mais um, pra mim não faz diferença nenhuma!
PADRE
O que está querendo insinuar?
ALINDO SILVEIRA
Para bom entendedor, pouca palavra basta!
NÚBIA
(Repreendendo). Arlindo, tenha mais respeito diante do padre!
PADRE
Não se preocupe, dona Núbia! (Transição). O senhor está louco! Está não, o senhor é um louco!
ARLINDO SILVEIRA
Não, padre! Eu não estou louco! (Transição). Quer saber de uma coisa? Pense o que quiser... Só espero que esse assunto não saia daqui... (Entra a Verônica).
VERÔNICA
(Surpresa). Papai, eu ouvi toda a história! Eu não acredito! Eu não posso acreditar, que meu pai do coração e que eu amo tanto, teve coragem de esconder, que o Guto não é o meu irmão!Isso é um ato para revolta! (Transição mais surpresa ainda). É isso mesmo! O Guto é o dono de tudo... Ele é o herdeiro! Estas terras não lhe pertence, papai! (Transição com a Núbia). A senhora sabia disso, vovó?
NÚBIA
Eu vi tudo com esses olhos que a terra um dia há de comer!
ARLINDO SILVEIRA
Eu não quero mais falar nesse assunto! Ninguém aqui, vai falar, principalmente na presença do Guto, ouviram? (Transição). E este assunto termina por aqui!
NÚBIA
Por mim tudo bem, agora, pelo que eu conheci a Bernadete, ela não vai deixar isso de graça não, Arlindo! Desde quando ela morreu, esta casa nunca mais foi a mesma!
ARLINDO SILVEIRA
Tudo por causa desse retrato! O olhar que ela transmite pra nós, não me agrada em nada! Na realidade, esse retrato me dói nos nervos! O olhar dela nessa foto, é muito penetrante! Mas o interessante, é que nunca consegui tira-lo daí!
PADRE
Deixa de brincadeiras! É um simples retrato! (Vai em direção do retrato).
NÚBIA
Não chegue perto dele, padre! A fúria de Bernadete pode recair sobre o senhor...
PADRE
Eu não acredito em magia negra! (Tenta se aproximar, mas o padre se arrepia todo. Transição). Impressionante...
VERÔNICA
O que foi, padre?
PADRE
Nada não, deixe pra lá...
ARLINDO SILVEIRA
Ninguém consegue! É uma força indominável! É muito forte!
PADRE
Mais do que Deus é impossível!
NÚBIA
A vó Bernadete sempre foi muito religiosa, padre! Ela não vai prejudicar à ninguém! O negócio , é com o Arlindo...
PADRE
Se é assim, então eu posso tira-lo... (Aproxima-se novamente do retrato e tenta tira-lo da parede. A iluminação cai para 20%, deixando os 80% só no retrato, com uma luz de coloração bem viva. A sonoplastia libera uma voz em OFF, acompanhada de ventania. “MANDA ESSE PADRE SE AFASTAR DAQUI, AGORA MESMO”).
ARLINDO SILVEIRA
Vocês ouviram o que eu acabei de ouvir?
PADRE
Não, o que foi?
ARLINDO SILVEIRA
Ela mandou se afastar do retrato...
VERÔNICA
Eu não ouvi nada!
BERNADETE
(Em OFF). Eu vou me vingar...
ARLINDO SILVEIRA
E agora? Vocês ouviram?
VERÔNICA
(Querendo se aborrecer). O que foi dessa vez, papai?
ARLINDO SILVEIRA
Ela acabou de dizer que vai se vingar!
PADRE
Defuntos não fazem mal a ninguém, seu Arlindo Silveira... (Transição com ironia). Vivos fazem mais... (Transição). Eu vou tirar esse retrato da parede, que eu também não gosto nenhum pouquinho dele! (Toca no quadro. O padre dá um grito aterrorizante, acompanhado se sonoplastia e iluminação).
NÚBIA
Não adianta! Não foi o senhor o primeiro à tentar!
ARLINDO SILVEIRA
(Gritando). Bernadete, eu sei que estás aqui em algum lugar desta casa! Eu quero que você saiba, que estas terras são minhas! Elas me pertencem! Não vai ser você, que vai me atrapalhar não...
PADRE
(Admirado e espantado). Meu Deus do céu, o que é isso? Eu senti uma coisa estranha, quase insuportável! Seu Arlindo Silveira, procure um lugar para se tratar! A coisa não está nada boa por aqui... Principalmente com o senhor...
ARLINDO SILVEIRA
Já está acreditando, não é, padre? Esta velha não me deixa sossegado, já faz é tempo! É como se ela dominasse todo o meu corpo! É como que o meu espírito se afastasse, não completamente! Eu sinto esta maldita velha grudada dentro de mim...
PADRE
Isto também pode ser loucura! (Transição). Isso mesmo... Quando eu estudei parapsicologia, vi que a mente humana pode fazer muitas coisas...
ARLINDO SILVEIRA
O senhor tem o direito de pensar o que bem entender! (Transição). A sua reação diante do retrato, não lhe surpreendeu em nada?
PADRE
É claro, que sim... Mas, é como eu acabei de falar! Tudo pode ser força da sua mente! O senhor deve procurar um psiquiatra!
NÚBIA
Ela está aqui, padre! A vó Bernadete sempre esteve aqui...
ARLINDO SILVEIRA
(Feliz). Vocês estão ouvindo? Mamãe sabe o que está dizendo!
VERÔNICA
O que a vovó fala não se escreve, papai! A idade que ela carrega, logicamente, não estará boa de suas faculdades mentais!
ARLINDO SILVEIRA
Você por acaso, está querendo insinuar, que eu estou ficando louco, é?
NÚBIA
Você também me chamou de louca e esclerosada! (Transição). Esclerosada é a vovozinha...
VERÔNICA
Desculpa, vovó! Eu lhe amo! A senhora sabe muito bem disso! (Transição). E com relação ao senhor, papai... Eu não falei nada disso!
ARLINDO SILVEIRA
Mas só o fato de pensar, você já cometeu o crime!
NÚBIA
Arlindo, fale a verdade pra Verônica... Eu já me abusei mesmo...
ARLINDO SILVEIRA
(Tentando repreender a Núbia). Que verdade, mamãe?
VERÔNICA
(Desconfiada). Que verdade, papai?
ARLINDO SILVEIRA
Nada não, Verônica! De vez em quando, ela me surpreender! (Transição). Ela sai com cada uma... Você conhece sua vó, tão bem quanto eu!
PADRE
Ela está muito lúcida, seu Arlindo Silveira!
ARLINDO SILVEIRA
Até o senhor, seu padre?
NÚBIA
E estou mesmo...
VERÔNICA
É claro que está! Meu pai, eu percebo que desde quando eu ainda era uma criança, o senhor me esconde um segredo e acho que já estou grandinha o suficiente para saber o que é, não acha? Tem mais alguma coisa além do Guto não ser o meu irmão? (Entra o Guto bocejando).
ARLINDO SILVEIRA
(Dando um basta). Está bem... Eu estou com segredinhos, sim... Mas...
GUTO
Boa noite...
ARLINDO SILVEIRA
Aqui não tem nada de boa noite! (Transição). Quer dizer... Se tava boa, agora não tá mais!
GUTO
Desculpe! Não quis assustar e nem ofender a ninguém! (Transição). Vou na privada... (Sai de cena).
ARLINDO SILVEIRA
(Com raiva). Este moleque só faz aparecer em horas erradas...
VERÔNICA
Ah, deixa o Guto em paz, papai!
ARLINDO SILVEIRA
E você não venha defender este moleque! Você viu o que fez agora, não viu?
NÚBIA
Nada que o ferisse moralmente...
PADRE
Mas o menino não fez nada demais... (Transição). Me parece um rapaz de princípios...
NÚBIA
É um santo menino, padre!
ARLINDO SILVEIRA
Herança que eu ganhei da velha Bernadete!
VERÔNICA
Finalmente, o que realmente aconteceu com a vó Bernadete?
NÚBIA
Você quer realmente saber, Verônica?
ARLINDO SILVEIRA
(Irritado). Cala a boca, mamãe...
VERÔNICA
Meu pai, suas atitudes me surpreende de vez em quando! (Transição querendo ficar com raiva). Eu quero este segredo desvendado agora...
PADRE
Se acalme, Verônica!
ARLINDO SILVEIRA
Pode deixar, padre! Pode deixar! Eu já estou acostumado com essas atitudes bruscas!
PADRE
(Com o Arlindo). Mas tudo isso só está acontecendo, por sua causa! O senhor é quem deve se acalmar...
NÚBIA
Ela está aqui em nosso meio...
ARLINDO SILVEIRA
(Pega a arma). Onde, mamãe?
PADRE
(Assustado). Seu Arlindo, baixe essa arma!
NÚBIA
Ela está aí, bem pertinho do senhor, padre!
PADRE
(Com medo). Deixe de brincadeiras, dona Núbia! Eu não gosto dessas coisas!
VERÔNICA
Papai, baixe essa arma, ou caso contrário, vou ter que tomar outras atitudes impensadas!
ARLINDO SILVEIRA
Vai bater em mim, é?
PADRE
(Repreendendo). O que é isso, seu Arlindo? Ninguém nem pensou em tal coisa... O senhor está colocando o carro na frente dos bois...
VERÔNICA
Vou chamar a polícia ou o carro do manicômio!
ARLINDO SILVEIRA
Eu sei que vocês estão pensando que eu sou louco! Pode pensar! Este é o pagamento que vocês me dão... Depois de tudo que eu fiz...
VERÔNICA
Eu já mandei o senhor baixar essa arma!
PADRE
(Admirado e assustado). Que loucura...
ARLINDO SILVEIRA
Ela está me perseguindo a todo instante! Em cada canto de parede desta casa, eu sinto a presença desta maldita velha! Parece que uma maldição está tomando conta do meu ser... Eu não agüento mais...
VERÔNICA
Agora eu não tenho mais dúvida, que o senhor está precisando urgentemente de um psiquiatra! (Transição). E eu vou providenciar isso agora mesmo! E me dê pra cá essa arma, antes que aconteça algum acidente! (Pega a arma e vai saindo de cena).
ARLINDO SILVEIRA
(Impede). Você não vai pra lugar nenhum! (Acompanhado de sonoplastia, o retrato cai da parede. Transição). Vocês estão vendo, que eu não estou ficando louco?
PADRE
Não vi motivos pra ninguém se apavorar! Espíritos, como eu já falei, não fazem mal à ninguém...
ARLINDO SILVEIRA
(Apavorado, com o olhar fixo de louco). E o retrato? E o retrato?
PADRE
O que é que tem o retrato, seu Arlindo Silveira? Coincidência, não mais que isso!
ARLINDO SILVEIRA
O senhor é que está ficando louco! (Transição). Padre, tem algo de errado nessa casa! Veja o retrato no chão... (Transição). E isso não acontece por acaso...
PADRE
Mas é assim mesmo que acontece! Nestas fases de perturbações mentais, acontecem muitas coisas...
ARLINDO SILVEIRA
(Aos berros). Eu não sou louco!
VERÔNICA
(Repreendendo também aos berros). Papai, quer parar com isso? Eu não estou agüentando mais... Este seu comportamento está me deixando com os nervos a flor da pele! E tem mais! O senhor devia ter prega na língua! O padre merece respeito!
NÚBIA
Ela está chegando...
VERÔNICA
(Repreendendo). Vovó, por favor, pare com isso!
ARLINDO SILVEIRA
Mas a mamãe, sabe o que está dizendo! Ela além de ser vidente, é sensitiva...
PADRE
(Irônico). O que é agora, seu Arlindo? O senhor está querendo por acaso insinuar, que a sua mãe fala com espíritos?
ARLINDO SILVEIRA
Não tenho a menor dúvida disso!
PADRE
Ora, seu Arlindo Silveira! Tenha fé em Deus! Respeite pelo menos a palavra dele... Isso é produto de sua imaginação, não mais que isso...
NÚBIA
Não é não, padre! Ela realmente se encontra aqui, nesta casa...
PADRE
(Com o Arlindo). A sua mãe, também está precisando de um tratamento...
ARLINDO SILVEIRA
(Com raiva). Quem está precisando de um tratamento urgente, é o senhor, com o seu fanatismo idiota!
VERÔNICA
(Repreende). Papai, olhe as suas expressões chulas...
ARLINDO SILVEIRA
(Com o padre). Todos contra a mim! Tudo bem! Só digo uma coisa, curta e grossa! Eu sou católico romano! Fé em Deus, eu tenho até demais! Agora, a partir de hoje, eu vou mudar de religião! Eu tenho absoluta certeza, que vai ser lá, que eu vou encontrar respostas para minhas perguntas!
VERÔNICA
Lá onde?
ARLINDO SILVEIRA
A partir de hoje, eu sou espírita...
PADRE
(Com expressão de muita raiva, dá um murro em cima da mesa). Pois vá! O mundo não precisa de gente de sua espécie não... (Transição). Eu vou embora dessa casa! O ambiente está muito pesado para mim e para as escrituras sagradas... Passem muito bem... (Faz menção que vai sair).
VERÔNICA
(Impede). Espere, padre!
NÚBIA
Você está vendo, Arlindo; o que você acabou de fazer?
ARLINDO SILVEIRA
Deixe ele ir, Verônica! Só assim me dá a pura certeza de que eu realmente estou certo! Fuja, padre! (Transição). Todos vocês não prestam! Covardes...
PADRE
(Volta irritado). Senhor Arlindo Silveira! Eu peço que por favor, meça as suas palavras! Eu quero que saiba de uma coisa; lá na igreja eu sou um padre... Mas fora dela, eu sou um homem igual a você!
ARLINDO SILVEIRA
O que é agora? O senhor está querendo insinuar o que? Ou vai querer me bater? (Transição). Ora, padre! Vê se te manca! Eu nunca apanhei nem de uma mulher vestida de saia, quanto mais...
PADRE
Eu tenho que controlar os meus nervos! Depois dessa prova, quem sabe eu não sou canonizado como santo?! (Transição). Senhor tende piedade deste homem!!! Ele não sabe o que está fazendo...
ARLINDO SILVEIRA
Eu já ouvi estas palavras antes! (Transição). Quem já se viu? Querer se comparar com um santo! (Transição com ironia). E logo com quem... Com cristo! (Dá uma gargalhada de zombaria).
VERÔNICA
Papai, o senhor quer parar com essa ironia?
ARLINDO SILVEIRA
(Sério e com raiva). O que é você também? Tá defendendo ele também? Tá se doendo, Verônica? Pegue suas coisas e vá morar com ele!
VERÔNICA
(Decidida). Não seja por isso... (Vai saindo).
NÚBIA
Verônica, baixe seu facho, que é melhor que você faz...
ARLINDO SILVEIRA
Deixe ela ir, mamãe... Depois que ela tiver aí falada, sujando o nome, por causa desse padreco sem escrúpulos nenhum, eu sei o que eu faço! (Transição). A velha Bernadete, não teve um final muito bom...
NÚBIA
(Se desespera). Eu não quero lembrar daquele tempo!
VERÔNICA
(De salto). Fale, vovó! O que aconteceu com a vó Bernadete?
NÚBIA
Eu não posso falar, se não ele vai me matar também... Ele matou a Bernadete...
VERÔNICA
(Escandalizada). Fez o que?
ARLINDO SILVEIRA
(Com a Núbia). Cala a tua boca, sua velha linguaruda!
PADRE
(Também espantado). Eu não estou acreditando no que eu acabei de escutar! (O padre fica boquiaberto).
ARLINDO SILVEIRA
Eu já falei que esta velha linguaruda, não está nada boa de suas faculdades mentais...
PADRE
(Revoltado). Eu não sei como tratar um animal de sua espécie! Um monstro de tamanha grandeza... Um assassino...
ARLINDO SILVEIRA
(Dando um basta). Chega!
PADRE
(Começa à rezar). Pai nosso que estais no céu... Santificado é o teu nome...
VERÔNICA
(Curiosa). Foi verdade isso que a vovó falou, papai?
ARLINDO SILVEIRA
Se quer saber mesmo a verdade, foi sim, e daí? Eu não me arrependo do que eu fiz!
NÚBIA
Mas ela veio se vingar! Não adianta você querer correr, Arlindo! Ela não vai sair deste mundo, enquanto não houver uma vingança!
ARLINDO SILVEIRA
(Se desespera). Ah, é? Pois bem, Bernadete... Eu estou aqui! Pode vir se vingar! (Pega novamente o revólver. A sonoplastia entra com uma música de tensão).
VERÔNICA
Solte esta arma, papai! O senhor pode machucar alguém!
NÚBIA
Não faça isso, Arlindo! Não queira conhecer a fúria de Bernadete!
PADRE
Deixe de bobagem, dona Núbia! Tudo é produto da imaginação... (Transição). Onde eu coloco este retrato? (Vai pegar o retrato, o qual leva um tremendo choque. A sonoplastia libera um som, dando idéia de choque no exato momento em que o padre pegar o retrato. O padre dá um grito aterrorizante). Aiiii... Valei-me meu Deus... O que está acontecendo por aqui?! (A sonoplastia libera uma voz solfejante “Eu vou me vingar”).
ARLINDO SILVEIRA
Vocês ouviram? Ela está aqui! Ela quer realmente acabar comigo! (Transição desesperado). Padre, pelo amor de Deus, me escute! Eu não estou ficando louco!
PADRE
(Irritado). Como ousa falar o nome de Deus, depois de tudo que o senhor aprontou?
ARLINDO SILVEIRA
Mas padre escute! Pode confiar... Eu não estou ficando louco...
PADRE
(Revoltado). Assassino...
ARLINDO SILVEIRA
Eu não matei ninguém! (A sonoplastia libera a voz solfejante. “FALE A VERDADE, SEU CANALHA”. O Arlindo Silveira coloca as mãos nos ouvidos). Eu não vou falar nada e não me atormente...
NÚBIA
Não tem jeito, Arlindo! Se ela está mandando você falar, o melhor é você falar...
PADRE
Falar o que? Que o senhor Arlindo Silveira, realmente matou a velha Bernadete? (Transição). Isso a gente já tá sabendo!
ARLINDO SILVEIRA
(Aos berros e com raiva). Eu já disse que não fui eu...
VERÔNICA
(Repreende). Papai, olhe o tratamento! O senhor está diante de um futuro santo...
ARLINDO SILVEIRA
(Irônico). Grande coisa! Está parecendo mais, um sargento de polícia! Vai gostar de perguntar assim no raio que o parta!
VERÔNICA
(Repreende novamente). Papai...
PADRE
Deixe pra lá, Verônica! (Transição). Seu Arlindo Silveira, o senhor está precisando de um hospício urgente!
ARLINDO SILVEIRA
(Dá uma gargalhada. Transição). Ah, padre! Vá olhar se eu estou lá na esquina!
NÚBIA
Verônica, apanhe o retrato!
ARLINDO SILVEIRA
(Desesperado). Não toque nesse retrato! Ele está cheio de maldição...
NÚBIA
Pode pegar, Verônica! A Bernadete autorizou...
PADRE
(Espantado). Como sabe disso?
NÚBIA
Ela acabou de me dizer...
ARLINDO SILVEIRA
Eu estou dizendo, mas ninguém acredita!
PADRE
Pois pode deixar, que eu mesmo pego o retrato... (Tenta avançar).
NÚBIA
Não faça tal coisa padre! A Bernadete quer a Verônica!
VERÔNICA
Não entendo! Por que ela quer somente eu?
NÚBIA
Isso ela não me falou, por enquanto... (A Verônica apanha o retrato e o coloca novamente na parede). Ela está agradecendo, Verônica...
VERÔNICA
Não fiz nada, vó Bernadete!
PADRE
Eu pensei que o único louco aqui, era o senhor Arlindo Silveira, mas como diz o ditado, “Filho de gato, gatinho é”...
NÚBIA
Padre, não brinque com coisa séria...
PADRE
Perdão!
ARLINDO SILVEIRA
(Debochado). Vá brincando, seu padre! Depois que ela vir arrancar o seu pescoço, não saia dizendo que o céu é perto!
PADRE
O senhor é um caso de polícia...
VERÔNICA
Mas por que o senhor matou a vó Bernadete?
NÚBIA
O Guto... (O Guto entra em cena).
GUTO
O que tem eu?
ARLINDO SILVEIRA
(Com raiva). Lá vem você se meter em assuntos que lhe diz respeito...
GUTO
(Com expressão de quem está sabendo de alguma coisa). E eu fiz alguma coisa de errado?
PADRE
Não, Guto! O problema é que seu pai está muito nervoso... Não é, seu Arlindo Silveira?
GUTO
Eu ouvi, padre! Eu ouvi toda a conversa!
ARLINDO SILVEIRA
Você não ouviu absolutamente nada! Vá pra cama dormir, que já é tarde demais e estamos conversando um assunto muito particular...
GUTO
(Encarando). Eu não vou sair daqui, de jeito nenhum! Este assunto particular, também vai me interessar, até demais...
NÚBIA
Vá, Arlindo... Fale agora para o Guto que você não é o pai dele, fale...
ARLINDO SILVEIRA
(Dando um basta). Cale-se, sua velha gagá...
GUTO
Não precisa, vovó! Eu também ouvi... (Transição com o Arlindo. Expressão de raiva). O senhor é um canalha... (O Arlindo faz expressão de ódio).
NÚBIA
Ele matou a sua vó Bernadete...
GUTO
Eu ouvi toda a história...
ARLINDO SILVEIRA
Guto, não dê ouvidos a ela! Já é o efeito da idade!
NÚBIA
Ele também matou os seus pais...
GUTO
Eu estou sabendo de tudo...
ARLINDO SILVEIRA
Quer dizer então, que você está acreditando mesmo nela, não é, meu filho?
GUTO
(Revoltado). Não me chame de filho! (Expressão de ódio). Eu tenho nojo de você!
ARLINDO SILVEIRA
O senhor está vendo, não é, padre? Tanto trabalho, tanto suor derramado pra criar esses meninos e de repente olhem só o que eu acabo de ganhar!
NÚBIA
É, Arlindo! Cada um colhe o que planta...
ARLINDO SILVEIRA
(Com raiva). Cala a boca, se não...
PADRE
(Espantado). Se não...
NÚBIA
Vai me matar também, Arlindo? Vá, me mate agora! Você não me prometeu que me mataria se eu falasse alguma coisa? Vá, faça agora mesmo na frente de todo mundo, faça...
VERÔNICA
O senhor prometeu matar a sua própria mãe?
ARLINDO SILVEIRA
Prometi, sim...
PADRE
(Escandalizado). Misericórdia! Deus seja louvado...
GUTO
(Com o Arlindo). Eu queria nesse momento, acabar com a sua raça, com as minhas próprias mãos! Um cachorro de sua espécie, só cortando a cabeça...
ARLINDO SILVEIRA
Guto, se acalme...
GUTO
(Aos berros). Como quer que eu fique calmo... Assassino... Assassino... (Transição em prantos). Matar uma senhora tão doce e tão meiga, como a vó Bernadete, por causa de ambição! Ah, assassino... Você vai embora dessa casa o mais breve possível! Eu quero lhe ver no mundo, comendo o que lhe jogarem, quero ver você na miséria absoluta... Eu quero ver você morrendo aos poucos, pra pagar tudinho que você fez com a minha família...
ARLINDO SILVEIRA
(Desesperado). Ai, meu Deus... Eu estou perdido... Tanta terra em seu poder e agora nada serve para mim... Tenho medo do mundo! Eu não quero comer baratas... (Também cai em prantos). Me perdoe, meu Guto!
NÚBIA
Está vendo, padre?
PADRE
É remorso, dona Núbia! É remorso...
ARLINDO SILVEIRA
(Abre a porta bruscamente). Padre, por favor... Queira retirar-se!
GUTO
(De salto, impede o padre). O senhor não vai pra lugar nenhum! Quem manda nesta porra, sou eu...
ARLINDO SILVEIRA
(Aos berros). Me respeite, seu filho de uma puta!
VERÔNICA
(Dando um basta). Pára com essa confusão! (Transição com o Arlindo). O Guto tem razão! O padre daqui, não sai...
ARLINDO SILVEIRA
Até você contra a mim, Verônica?
VERÔNICA
Eu quero lhe ver por trás das grades...
NÚBIA
A Bernadete acabou de me dizer, que vai ter mais um massacre dentro desta casa! E dessa vez, o Arlindo vai ser a vítima!
ARLINDO SILVEIRA
Mamãe, fale pra eles, fale! A velha Bernadete não se encontra nessa casa?
GUTO
Eu não posso acreditar que seres humanos são capazes de acabar com a vida das pessoas para se promoverem de alguma forma! (Transição com o Arlindo). Como teve a coragem de fazer tamanha monstruosidade? (A sonoplastia libera a voz de Bernadete em OFF “VOCÊ VAI ME PAGAR, ARLINDO...”).
ARLINDO SILVEIRA
(Grita aterrorizado). Sai daqui, satanás... (Todos olham para ele). Eu não estou louco! Essa velha está querendo me levar a loucura! (Pega o revólver e aponta para o retrato de vó Bernadete. Transição). Tudo isto está acontecendo, por causa dessa velha fedorenta...
NÚBIA
A Bernadete era uma grande mulher...
ARLINDO SILVEIRA
Mas agora não é mais! Ela está morta! Ela está morta, será que vocês não entendem?
NÚBIA
Não há condições de fuga, Arlindo! Ela ainda está aqui, no meio da gente! (A sonoplastia libera novamente a voz da Bernadete em OFF “EU VIM TE BUSCAR, ARLINDO!!!”).
ARLINDO SILVEIRA
(Em desespero). Esse retrato... (Transição). Bernadete, se você não morreu, vai pro inferno agora mesmo... (A iluminação cai para quase 0%, ficando só um foco de luz em cima do retrato de vó Bernadete e o outro em cima do Arlindo, ficando os outros personagens todos paralisados. O Arlindo atira no retrato, o qual escorre sangue do peito de vó Bernadete. A luz aumenta gradativamente em resistência. A partir desse momento, o foco de luz não sai mais do retrato).
VERÔNICA
(Grita). Nãããoooo... (Transição apavorada). Por que o senhor fez isso?
ARLINDO SILVEIRA
Ela está com o demônio no corpo! (O padre começa a rezar). Pai nosso que estais no céu...
GUTO
É apenas um retrato...
PADRE
Tem uma energia muito forte!
ARLINDO SILVEIRA
(Com o olhar fixo de louco e surpreso). Está sangrando... Ele está sangrando! É sangue vivo!
NÚBIA
Estou vendo! É claro, que é sangue! É sinal de vida! É sinal, que ela está entre nós... (A sonoplastia entra com uma música de impacto e a iluminação cai novamente deixando um foco de luz em cima da dona Núbia e o outro foco de luz em cima do Arlindo Silveira. Com a mesma expressão da velha Bernadete no retrato e com a voz da Bernadete). Vamos, Arlindo Silveira! As portas do inferno estão abertas... (Dá uma gargalhada). Assassino...
ARLINDO SILVEIRA
Bernadete, se prepare que você vai morrer de novo! (Aponta a arma e o padre reza mais alto ainda. A luz vai clareando em resistência).
GUTO
(Parte pra cima da arma). Assassino...
VERÔNICA
(Também vai ajudar). Quer matar sua própria mãe, assassino...
ARLINDO SILVEIRA
Não é a minha mãe! Saiam daqui, que eu vou atirar na velha repugnante... (A luz cai em resistência. Guto e Verônica, gritam aterrorizadamente. Arlindo Silveira atira na própria mãe. A sonoplastia libera um som de ventania e a iluminação escurece totalmente no restante dos personagens, deixando apenas um foco de luz no retrato e o Arlindo, que passa a ter a mesma expressão do retrato. A Bernadete invade o corpo do Arlindo Silveira, mas não consegue se apossar completamente, conseguindo apenas um lado do corpo, aproveitando que ele está com a arma. O Guto e a Verônica cai em prantos e choram calados em cima do corpo da velha Núbia. A luz vai clareando em resistência. Transição com a mesma expressão da velha). Você agora vem comigo... (Com a voz normal). Nunca! (A Bernadete domina a mão em que está a arma e o Arlindo reage contra. Na voz da velha Bernadete). Eu vou atirar em você, assassino... (Na voz normal). Se afaste de mim, agora mesmo... (A Bernadete consegue atirar no Arlindo o qual cai no chão sangrando. (Grita apavoradamente). Nãããããooooooo... (A luz dá um black out, acompanhado de sonoplastia. Total silêncio. O Galo canta. A luz clareia em resistência. Em cena está o Arlindo Silveira, sentado na cadeira de sono solto. Acorda bruscamente a assustado). Ai, que susto! (Transição). Ai, minhas costas! (Olha para o relógio. Transição). Meu Deus, já é dia! Que pesadelo, que eu tive! Que loucura...
VERÔNICA
(Entra em cena juntamente com o Guto e a dona Núbia). Papai o senhor dormiu aí, foi?
GUTO
Estamos indo a feira, papai!
ARLINDO SILVEIRA
Eu tive um pesadelo daqueles sufocante! E foi com a aquele retrato...
NÚBIA
É o retrato de sua vó Bernadete! O pintor fez o quadro e deixou aquela mancha de tinta, que parece sangue! Ele ficou de vir aqui dá um retoque nele! Estamos indo a feira! Vou aproveitar e passar na casa dele... Afinal de contas, eu já paguei a ele mesmo... (Transição). Vamos, meninos... Já estamos atrasados! Beijem o seu pai! (Eles beijam o Arlindo e saem de cena. O Arlindo se aproxima do retrato).
ARLINDO SILVEIRA
(Admirado e bocejando). Muito bonito o retrato de vó Bernadete! É realmente um trabalho de arte! Realmente está manchado de tinta, que parece sangue... Mas não tem nada a ver a realidade com o meu pesadelo! Que loucura! É bom que este pintor, venha logo retocar esse retrato! Eu não vou suportar outro pesadelo! Está muito bem feita esta obra! Cada escritor tem a sua maneira de escrever e cada pintor tem o seu estilo próprio de pintar! (Transição). É, vou me preparar para trabalhar! O dia me parece que vai ser longo... (Sai de cena bocejando. As luzes se apagam e chega o fim da peça “O RETRATO DE VÓ BERNADETE”).
PEÇA: O RETRATO DE VÓ BERNADETE
AUTOR: FLÁVIO CAVALCANTE
MÊS: OUTUBRO
ANO: 1996
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Obs: Todo trabalho desenvolvido por este autor, é totalmente fruto da imaginação; porém, qualquer semelhança é mera coincidência.