"SANGUE DE BODE NUM DÁ SUSTANÇA" Autor: Flávio Cavalcante

SANGUE DE BODE NUM DÁ SUSTANÇA

ROOL DOS PERSONÁGENS

VALENÇA

VIRGURINO

QUIXA

CARITO

SINÓPSE NARRATIVA

A realidade do sertão nordestino predomina uma situação de intensa miséria. Pouco antes do século XX, foi criado o cangaço. As primeiras manifestações desse movimento surgiram durante a grande seca de 1877 a 1879. Por volta de 1916, surgiu no sertão nordestino, Virgulino Ferreira, o "LAMPIÃO".

Virgulino Ferreira, nasceu em 03 de setembro de 1898, no município de Vila Bela, hoje serra talhada em Pernambuco. Sua família foi perseguida pelo coronel Nogueira e o conflito resultou na morte de seus pais. Lampião e seus irmãos fugiram para o sertão e se juntaram aos grupos de bandidos que ali se refugiavam. Pouco depois de 1918, começou a ganhar fama na região. Ao contrário de seus antecessores no cangaço, o grupo de Lampião era muito mais conhecido pela sua crueldade, do que pela generosidade na distribuição de donativos para os pobres.

Até 1927, seu bando agiu no interior da Paraíba e Pernambuco, aterrorizando cidades e fazendeiros. Os governos estaduais e federal tentaram de várias formas para acabar com o cangaço. Somente em 08 de agosto de1938, uma tropa sob o comando do capitão Bezerra, conseguiu cercar de surpresa os cangaceiros, na fazenda dos angicos, onde onze deles morreram, entre os quais, Lampião e Maria Bonita, sua companheira. Suas cabeças foram cortadas e durante muitos anos, conservadas no museu da faculdade de medicina da Bahia. O ciclo do cangaço encerrou-se definitivamente em 1940 com a morte de Corisco.

Depois de várias pesquisas feitas sobre o assunto e várias entrevistas com pessoas que viveram na pele as façanhas de Lampião e seu cangaço, no sertão existiam algumas lendas, que mesmo depois do cangaço, ainda atemorizavam os moradores do sertão. Uma delas, foi o surgimento de três Vampiros cangaceiros, conhecidos como: Virgurino, coincidentemente com o nome muito parecido com o de Lampião, Quixa e Carito. Não se sabe ao certo, se existiram mais além dos três. Presume-se que com a seca da barragem e a fome predominando de uma forma horripilante acredita-se, que não conseguiram chegar à cidade mais próxima, morrendo no caminho de fome e sede. Sabe-se também que lá, na mesma região, existiu Valença, prima legítima de Lampião. Valença era super apaixonada pelo rei do cangaço e revoltada com Maria Bonita por ter lançado a mão sobre seu primo, deixando-a revoltada e decidida a não ter caso com homem pelo tempo de sua existência. Decepcionada com a atitude do casal cangaceiro, Valença resolveu ter um caso com um bode, que a mesma criava, dentro de sua tapera, para proteger dos Vampiros cangaceiros... A estória se passa, exatamente com essa lenda...

(Flávio Cavalcante).

Cena escura, a sonoplastia libera uma música bem regional sertaneja. O cenário é o interior de uma tapera, que mais parece um chiqueiro. Muito capim espalhado e uma espécie de curral. Em cena está Valença cortando capim para o bode.

VALENÇA

(Com raiva). Eita cum seiscentos milhão mais já se viu!? ... Ele num devia ter fazido aquilo cum eu... Me trocar por aquela cabocla feiosa da peste, que de bonita, ela num tem é nada... Ele ficou cum ela... E agora os dois tá cum as cabeça cortada pela tora... O que se há de fazer!? E a coisa mais preciosa que eu tenho agora, é vormiçê, meu bode Nabé! Eu tou aqui, meu bichinho... É pra te proteger daqueles Vampiro Cangaceiro da mulesta!(Se coça). Eu juro pelo meu padin Ciço, que num vou pregar os oio um só instante! Se aquele bando de Cangaceiro dentuço aparecer, eu vou tocalhe bala pra cima! Oi, eu sou ruim e o cabelo ajuda, num sabe?! (Transição vai à janela). Eita, que a lua tá é bonita hoje... Fez inté uma estrada luminosa nas caatinga!(Se coça). Aqueles vampiro num apareceu mais pra essas banda... Graças ao meu bom Padin Ciço Romão de Juazeiro... Mas também se aparecer, eu tou protegida inté os dente...(Vai à parede)... Mandacaru, cacto, urtiga, cansanção e água benzida pelo padinho, que Deus bote ele num bom lugar... Já parou pra pensar, o que esses vampiro tá comendo por aí?! A barrage secou, o meu boi só tava a caicaça e ainda pro cima aqueles fi da peste chupou o restinho de sangue do meu bicho que só tava o coro e o osso... Agora eu tou vendo a cabeça dele em cima da porteira pra num deixar entra cobra dentro de casa... Eu num seio pro que eles fez isso, que eu nunca vi dizer que vampiro cangaceiro gostasse de sangue! ... O que a fome num faz, Nabé! Vampiro cangaceiro aqui no sertão, como é rapadura com farinha... Eles deve tá numa fome da gota serena e agora tá dando pra chupar os bicho por aí e eu vou segurar o meu, pra eles num chupar também... Eu num vou nem me preocupar... O boi sabe aonde arromba a cerca... Eles me conhece! Brincar com Valença num é coisa boa...!(Se coça). Se num fosse essa coceira da peste que eu tenho, eu nem seio se tava mais aqui! Um vadio do bando se lascou cum eu, todinho... ! O fi da peste me deu um frio nas costa, que vala-me Deus, fazia tempo que eu num sentia essas coisa... Eu pensei inté que ele tava matando as necessidade dele também, mas o desgraçado me deu uma mordida, que ainda hoje me doe pro aqui (Botando a mão no pescoço)... Mas também ele nunca mais quis cunversa cum Valença... Pegou uma coceira, que num teve rezador da peste que desse jeito... Eu acho é pouco... (transição). Hoje só resta nóis mermo, pra defender esse sertão vei de guerra... E continuar o cangaço, que já tá no meu sangue, desde quando minha falecida mãe me pariu... (Transição). Desde o dia que aquele Vampiro me deu a chupada, eu nunca fui a merma! Eu já tava até esquecida... Mas de uns dias pra cá, eu tou sentindo farta de uma companhia, meu bodinho... (Transição). Tu num vai ficar botando miolo de pote na cabeça, que eu num tou querendo dizer, que vormiçê num tá fazendo, num sabe?! Mas vormiçê tem que entender, que a companhia que eu tou precisando, é de um home! Caba macho, como eu conheci dentro das caatinga, quando eu era mais nova... Eu acho que já perdi inté o jeito de fazer... Já pensou se vormiçê num tivesse aqui, meu bodinho cheiroso?! Cuma era que eu fazer nas hora de necessidade?!(Transição). Mas também vormiçê, só sabe dizer a merma coisa, é béee pra cá, é béee pra lá, desse jeito num tem santo que arguente... Vormiçê tem compreender que ocê é um macho, mas é diferente dos outro... (Alisando o bode)... Presta atenção em tudo que eu falo... (Arregala os olhos para baixo do bode. Transição). Bicho, vormiçê tenha veigonha na sua cara, que eu quebro teus dente de porrada! Tome tenência! Por acaso eu diche nada demais pra vormiçê ficar desse jeito?! Vormiçê me respeite, que eu posso tá cum fome, mas num tou vadia não, viu, Barnabé?! Só em passar a mão, tu já fica desse jeito, é Nabé?! Misericórdia! Eu num quero mais nada cum ocê... Se eu passar a mão em tu de hoje por diante, eu quero fuçar... Tu num vem me dizer que querendo ter arguma coisa cum eu agora!? Nessa posição num tem espinhaço da peste que argüente... (Transição). Eu quero um home que me abrace, cheire no meu cangote...(Transição). Sem morder... Que me deixe toda arrepiada... (O bode berra). Num precisa ficar cum ciúme, Nabezinho, pro que desde quando o Virgulino me trocou pela outra feiosa, eu num tenho mais oios pra outro macho... Mas cuma aqui num tem mais home, o jeito é dá nó na espinha... Fazer o que, num é?! É me conformar com vormiçê mermo e pronto... Eu tenho muito coidado com esses vampiro... O que esse bicho tá querendo mermo, é ficar no lugar de Virgulino e se eu num abrir dos oio, eles vai tá aí, mandano nessas terra quente e seca todinha... Cortaro a cabeça de Lampião, mas esquecero de cortar a minha também... (Transição). É isso aí, meu Nabezinho... Eu tou cuspino bala de sede e dano nó nas tripa de fome, mas eu quero ver caba da peste vim tirar prosa cum a minha cara!(Transição). Pra gente ter segurança, eu vou botar um chocalho no teu pescoço, pro que se argum do bando aparecer, o chocalho vai balançar e eu tou aqui cum os oio bem arregalado, pra resorver cum eles... (Coloca o chocalho. A sonoplastia libera som de muitos morcegos voando. Transição). Mulesta dos cachorro doido da peste encaibada! Veja cuma é que eu tou... (Dispara dois tiros). Tá veno?! Isso aqui á só uma demonstração, seus vampiro morto de fome! Se vormiçês tá querendo chupar meu Nabezinho, venha chupar eu premeiro, seus dentuço de uma figa... Tá pensano que no sertão num tem mulé braba não, é?! (Fecha a janela). Vormiçê tá vendo a farta que um macho faz, num tá, Nabé?! (A sonoplastia libera novamente o som dos morcegos voando novamente). Oi eles de novo! ... (Abre a janela e dispara dois tiros). Dessa vez eu vi a cara de um deles! E foi o banguelo... Aquele fio da peste num tem que fazer não é?! (Transição). Eu vou acertar as conta cum eles, é lá fora!(Faz menção que vai sair. Transição). Não, pensano melhor, eu vou ficar aqui, proque se esses vampiro chupar o meu bodinho, eu tou é lascada! Daqui a pouco o dia já tá crareando e eu preciso dormir... (Boceja). Inté que eu acho bom vormiçê ficar aqui dentro casa... Só assim tu num fica se engraçando com essas cabrita por aí... Proque se um dia eu descobrir, que tu me trocou pro uma cabrita, Nabé... (Com raiva). Eu acabo cum tu e cum ela... Num tem pra que tu arrumar quenga lá fora! Eu num tou aqui pras tuas vontade também?! (Boceja novamente). Eu vou tirar uma soneca, que eu tou morreno de sono! Quarqué coisa, é só balançar o chocaio, que eu esperto logo, logo... (Vai adormecendo e os vampiros abrem a janela).

QUIXA

Capitão, ela tá dormino...

VIRGURINO

E eu tou vendo que eu num tou cego! Mas num é bom confiar muito não, visse?!

QUIXA

Mas pro que, Capitão?! A rapadura e a farinha acabou! O jeito agora é chupar sangue mermo... E ela tem um pescocinho...

VIRGURINO

(Repreende). Baixa teu facho, Quixa... Vormiçê deixe de ser besta! Nunca orvi dizer, que sangue fosse bom pra vampiro cangaceiro! E tu num se atreve a chupar o pescoço daquela muié... Tu sabe muito bem o que acunteceu com o Carito...

QUIXA

Eu seio, Capitão, mas eu tou cum fome! As minha tripa já tudo brigano, as minhas vista já ficano anuviada... (Transição). Oi, o bode...Capitão, oi o bode... Deixa eu dar uma mordidinha, deixa?! (O Carito aparece no meio dos dois, provocando susto).

CARITO

Num toque naquele pescoço... (Se coça).

VIRGURINO

Sai de perto de mim cum a tua coceira da peste, Carito! Quage matou a gente de susto...

QUIXA

É, capitão! Ele quage matou a gente de susto mermo!

VIRGURINO

Também num precisa tá me arremedano, num é Quixa?

QUIXA

(Descabriado). Descurpe, mas o que foi que eu fiz?!

VIRGURINO

Cala a boca...(Transição). Psiu... Silêncio... A Valença pode acordar! Ela tá cum o rivorve topado de bala!

CARITO

Mas Virgurino, rivorve num mata vampiro sertanejo...

VIRGURINO

Eita peste, tinha me esquecido disso... (Transição). Mas num é bom confiar não. Já pensou, se aquele rivorve tiver topado de frutas de mamona?! A peste é quem confia...

QUIXA

Antonse num é bom a gente nem chegar perto! Fruta de mamona, estourada nas costa, num é nada bom! Diz os vampiro mais velho, que quando num mata, aleja...

VIRGURINO

Isso é mentira... Quixa, num precisa tá orvino cunversa de vampiro gagá! Eu sou o chefe do bando, o grande rei do cangaço atual, é eu! Se vormiçê quer saber arguma coisa, pode proguntar pra eu...

QUIXA

O que a gente faz pra acabar cum esse fome da peste, capitão?

VIRGURINO

E eu seio lá, Quixa?! Tu só progunta coisa difice...

QUIXA

Mas eu seio, capitão! A fome ensina! Uma mordidinha no pescocinho daquele bodinho é solução!

CARITO

Ele tá trasvariano, Virgurino!

VIRGURINO

Só pode tá mermo! (Transição com o Quixa).Vormiçê num vai pra lugar nenhum! É muito perigoso e tem uma cascavel perto dele... (A sonoplastia libera um som do chocalho da cascavel).

QUIXA

Capitão, eu num tou querendo dizer que vormiçê num tá errado não, mas, num é cascavel não, é a Valença... (Carito se coça).

VIRGURINO

(Com a Carito). Eu já mandei tu sair perto deus, pra es mardita coceira num pegar no meu coro... (Transição). Êêêêita, eu num vou quebrar os dente desse cangaceiro?! Eu num vou fazer ele comer farelo...

QUIXA

Faça isso... Por favor,... Eu quero farelo, eu tou cum fome... (Carito se coça).

VIRGURINO

Quixa, num precisa tá gritano, que nem eu e nem as lombriga, sofre das oiça!

QUIXA

Mas capitão, eu tou cum fome!Oi, se eu dermaiá aqui, num vai ser de outra coisa, é fome mermo, viu?!(Transição). Só quero dar uma mordidinha, pelo amor de... (É atrapalhado pelo Virgurino).

VIRGURINO

Tu num vem falar de santo aqui perto deu, que eu quebro o teu focinho... Pelo amor de Deus...(Transição). Deus?! Ora, mais que diabo... O único santo que o bando pode falar aqui nas caatinga é pade Ciço Romão, pro que o rei, quando era vivo, só falava nele, num seio pro que?! Tanta gente pra ele adorar e se meteu logo cum um padreco, velho enfadado... (Transição) E cuma vormiçê falou, o que tu tá sentindo, é pro causa da fome! Só uma mordidinha no bode, num faz mal a ninguém não, viu?!... É capaz deu deixar tu fazer isso... Agora num fale mais aqui em outro santo... Só dou brecha pro pade Ciço Romão de Juazeiro e pra mais nenhum, orviu?!

QUIXA

(Alegre). Capitão, vormiçê é demais...

CARITO

Eu num sou bem chegado a sangue não, mas já que vormiçê deixou, Virgurino, antonse vamos lá, que eu quero chupa-lo todinho também...

VIRGURINO

Vamo não, vormiçês vai só... Eu num tou recramano de nada...

QUIXA

Capitão, o bode é muito novo ainda e o sangue dele deve tá de premera qualidade!

CARITO

O pobrema num é esse não, Quixa! O Virgurino tá é cum medo... (Se coça).

VIRGURINO

(Com raiva). Cum mil e seiscento jumento alejado! Tu nunca mais venha tirar prosa cum a minha cara, pro que se não, eu estoro teus miolo! Virgurino num tem medo de nada! (A sonoplastia libera o berro do bode. Transição. Virgulino se assusta). O que diabo é isso?! O que foi isso?! Vamos imbora daqui, que a Valença vai acordá...

CARITO

Vormiçê num diche que tem corage?! Tá frocano...

VIRGURINO

Frocano coisa nenhuma, Carito! Eu tenho corage e muita corage! Num é à toa que eu quero ser o rei do cangaço... Ficar no lugar do outro...

QUIXA

O capitão vai fazer o que?!

VIRGURINO

Vou chupar o sangue do bode todinho e sozinho, já que vormiçês num tem corage...

CARITO

Aí é covardia, Virgurino... Nóis tá uma fome da peste também... Isso é egoísimo...

VIRGURINO

Antonse deixe de tá cunversano merda e vá logo pegar o bode, antes, que eu arresôrva fazer isso! Vormiçês tá é cum medo...

CARITO

(Se coça). É, mas o pobrema num é medo do bode não, é ela acordá! (Se coça).

VIRGURINO

(decidido). Quer saber de uma coisa?! Quem vai chupar o sangue desse bode é eu e num vou deixar nem pinguinho pra ninguém... (Transição). Cuma é?! Vormiçês vai, ou num vai, chupar o sangue do bode?!

CARITO

Virgurino deixa Quixa ir prêmero, pro que eu já orvi dizer, que sangue de bode num dá sustança... E dá uma caganeira da peste... E eu num quero sair daqui cagado! Eu sou azarado mermo!

QUIXA

Cum a fome que eu tou, eu quero lá saber se o sangue do bode num vai me dar sustança!? Eu posso inté sair daqui cagado, mas saio tranqüilo... E de barriga cheia...

VIRGURINO

Antonse vá logo, antes que eu desista! Já que quem manda no bando, é eu...

QUIXA

Se é assim, eu já tou indo... (Vai se aproximando lentamente e vai mordendo o pescoço do bode. A sonoplastia libera o som de um chocalho e de repente, a Valença arregala os olhos. O Quixa olha assustado para a Valença e transiciona tangendo o bode).

VALENÇA

(Furiosa). Meu bode não, fi da peste... (Engatilha a arma). Será possive que nem uma soneca eu posso tirar?!(Transição). O que diabo vormiçê pensa que vai fazer?! O bode é meu e ninguém toma...

QUIXA

Home, se acarme... Eu só faço o que capitão manda...

VIRGURINO

Num é um fi da peste, esse Quixa?!

VALENÇA

Desapareça daqui, antes que eu estore os miolo de vormiçê... (Apontando a arma).

QUIXA

Foi o Virgurino que mandou...

VIRGURINO

(Aos berros). Mentira desse vampiro cangaceiro... Depois a gente cunversa, Quixa... Eu vou fazer tu cumer um monte sal, pra aprender... Vou arrancar teu coro todinho, ou então cortar essa tua língua de Jacaré... E as dispois eu vou te enterrar até o pescoço... Dessa vez tu aprende à num tá me entregano pra tudo que num presta!

VALENÇA

Vormiçê tá ficano besta!? Aqui no sertão quem ainda manda é Valença... E passe pro canto da casa, que eu num vou deixar vormiçê sair daqui agora não... Eu vou te botar no pau de arara e fazer o sol de derreter todinho...

QUIXA

(Tremendo de medo). Num faça isso...

VIRGURINO

Ela vai matar o Quixa, Carito!(Transição. Gritando). Atacar... (Avança com a arma). O vormiçê tá pensano que vai fazer cum o Quixa?!

VALENÇA

O que num lhe interessa! Caba da peste, que pelo menos pensar, que vai triscar um dedo no meu Nabezinho, pode se considerar morrido...

VIRGURINO

Quixa, antonse saia desse imprensado sozinho... Vamo imbora daqui, que essa muié tá cum esprito ruim no coro...

VALENÇA

Esprito ruim?! O que?! Vormiçês quer brincar cum a cara de Valença?!

VIRGURINO

Ninguém tá quereno brincar cum tua cara, muié... Tu tá muito enganada cum os meus caba! Ninguém aqui tá quereno chupar o teu bode não! Num é Carito?! Vormiçê quer chupar o bode dela?!

CARITO

Não, eu nunca pensei nisso! (Se coça).

VIRGURINO

E vormiçê, Quixa?! (O Quixa balança a cabeça afirmando). Num é um peste mermo?! Na frente da muié?! ... Eu já vi que tu tem corage de mamar em onça pintada...

VALENÇA

(Furiosa). Eu vou acabar cum essa raça de vampiro vadio...

VIRGURINO

(Cena movimentada). Vamo imbora daqui, que a muié tá virada na gôta...

CARITO

(Tenso). Pro onde nóis vai?! Por onde nóis vai sair, home?! Vai, Virgurino, fala?!

VIRGURINO

Pela porta... Pela Janela...(Transição). Sei lá, pro quarqué canto...

VALENÇA

(Estranhando). Qual é a sua graça mermo?!

VIRGURINO

Virgurino... pro que?!

VALENÇA

Ora, que merda... Virgurino é o nome de meu primo... O rei do cangaço, que recebeu patente de Capitão do meu padim, padim Ciço de Juazeiro...

VIRGURINO

Mas ele num existe mais... E agora quem vai ser o rei, é eu...

VALENÇA

Que cara mais cinica... E tu acha que eu vou deixar, tu mandar nas terra do meu sertão?! Premero tem cortar a minha cabeça também... Pra isso, tu tem que ser macho mermo...

VIRGURINO

Tu tá quereno me dermoralizar, diante do meu home?! Ninguém dermoraliza o vampiro Virgurino... Ninguém...

VALENÇA

Apois pode se considerar dermoralizado... Pro que eu num abro do pau... Eu sou muié, e eu tenho veigonha na cara...

VIRGURINO

E tu tá quereno dizer, que eu num tenho não, é?!

VALENÇA

É... Pro que?! Vai encarar?!

VIRGURINO

É pior do que o outro...

CARITO

Lique não, Virgurino... Ela deve tá pirada...

VIRGURINO

Home, vamo imbora daqui, que essa muié tá cum bala inté nos dente e ainda pro cima, é parente do outro lá...

VALENÇA

Cachorros da mulesta! O rivorve de vormiçês, eu seio que num tem mais bala, mas o meu, já tá no ponto de descarregar na cabeça de cada um!

CARITO

(apavorado, se coça). Ai, meu... (Virgurino arregala os olhos para Carito. Transição). ... Meu... Padim Ciço...

VIRGURINO

Isso num é uma peste mermo?! Eu já diche que num chame esse nome aqui, que dá azar...

QUIXA

Oxente, capitão! E num foi vormiçê mermo que diche, que tá liberado o nome do santo?!

VIRGURINO

E foi?! Eu diche isso?! ...

QUIXA

E apois... Num foi, Carito?!

CARITO

Foi...

VIRGURINO

Eu num tou alembrado não... Mas já que eu diche, tá dizido! Virgurino, vampiro cangaceiro, quano diz uma coisa, tem palavra de cangaceiro...

VALENÇA

Vamos deixar de muita baboseira... Que eu num quero mais orvir nem uma palavra mais... Eu vou contá inté três, pra começar a atirar... Eu quero ver pedaço de vampiro cangaceiro pro tudo que é canto dessa casa... Lá vai um...

VIRGURINO

(Com medo e desesperado). Ai, meu Jesui... (Todos olham para o Virgurino. Transição). Quer dizer... Pade Ciço... (Transição). Essa muié tá é doida... (Transição com o Quixa). Home vamo imbora daqui, antes que ela faça da gente peneira...

VALENÇA

Mexa cum meu macho, pra vormiçês ver cuma é que vai sair daqui...

QUIXA

Eu num saio daqui...

VIRGURINO

Quixa, essa muié num tá brincano! Tu tá ficano doido, home!? Sai de perto que ela vai atirar...

QUIXA

Eu num tenho do medo do rivorve dela!

VIRGURINO

Carito, Quixa só pode tá doido...

CARITO

Eu num tou veno, Virgurino?!

VIRGURINO

Virge, meu Deus do céu...(Mais uma vez todos olham para Virgurino). Descurpe... Mas vormiçês orviro o que eu acabei de falar?!

QUIXA

Capitão, num quer que a gente chame o nome do home, mas fica chamando pro ele, o tempo todinho...

VIRGURINO

(Com raiva). Cala a boca, Quixa... É o neivoso... É o neivoso...

VALENÇA

Vormiçês num acha, quer tá demorano demais, pra desaparecer das minhas vista não?!

QUIXA

Capitão, num precisa ficar cum medo! O rivorve dela, num mata vampiro cangaceiro...

VIRGURINO

(Virgurino dá uma gargalhada nervosa e aliviado).

CARITO

(Se coça). Pro que tu tá rindo, Virgurino?!

VIRGURINO

Alívio, Carito... Alívio...(Transição). Cuma eu num tava lembrado disso, home!? Agora sim! (Transição). O que a gente tá esperano?! Vamo ataca-la e chupar o sangue do bode...

QUIXA

Capitão, vormiçê prometeu, que o bode ia ser meu...

VALENÇA

Vormiçê num viu um satanás, cum a peste no coro, venha mexer cum o meu bode Barnabé, que ocês vai ver o remédio bom pra coceira...

CARITO

Esse me interessa muito saber...

VIRGURINO

Num interessa coisa nenhuma! Já que o rivorve dela, num mata vampiro, o rivorve de nóis, mata ela...

QUIXA

Capitão... E tem mais bala no rivorve da gente?!

CARITO

(Se coça). Virgurino, tu te esqueceu que a úrtima bala, nóis usou na besta maga dela!?

VIRGURINO

Eita mulesta, tem razão... Antonse vamo pegar o bode é cum as mão mermo... É a fome que fazendo me esquecer das coisa... (Transição gritando). Vamos atacar...(Os três avançam).

VALENÇA

(Reage com raiva). Vormiçês num tá cá peste não, tá?! Vormiçês por acaso tá cum o furico coçano?!

VIRGURINO

Tu respeita a gente... Nóis só vai querer o bode... Num se meta... Pelo amor... (Transição)... De quem vormiçê querer, num se meta...

VALENÇA

(Gritando). Meu bode não... Eu já diche, que meu bode não! (Transição). Agora eu tou virada na gota serena injuriada! Aí, que raiva...(Prepara a arma). Venha pegar o meu Nabé, venha?!

QUIXA

Oia só, capitão... Ela pensa que o rivorve dela mata a gente!

CARITO

Isso aí num mata vampiro não, muié! O que mata vampiro é...

VIRGURINO

(Tapa a boca do Carito). Vormiçê é besta! Home cala essa matraca... Tu quer entregá o ouro pra ela, Carito?! Eu pensei que vormiçê fosse mais sabido...(Transição). E mermo que ela sabesse, aqui no sertão cum essa seca toda, ela num ia encontrá semente de mamona...(Transição). Será que eu falei arguma besteira?!

VALENÇA

(Com ironia). Não, de jeito nenhum! Só que eu não sabia que semente de mamona mata vampiro cangaceiro... É viveno e aprendeno... Já dizia o meu primo Virgulino...

VIRGURINO

Tenha veigonha e prega na língua de tá mentino... Eu nunca falei nada disso...

VALENÇA

E quem é que tá falano cum tu, ôh, vampiro banguelo?! ... Já tá caindo inté os dente... Quem me falou foi o verdadeiro rei do cangaço... Meu primo Lampião...

VIRGURINO

Grande coisa... E eu tenho certeza que não foi ele... (Transição). Foi vormicê, Carito?!

CARITO

Ôxe, eu mermo não! Me tire dessa, viu?! Quem andou cunversano o que num devia, foi vormiçê mermo...

QUIXA

Ihhh, capitão... Essa cunversa vai arrodear muito e as minhas tripinha, num vai arguentá não... Ocê fica brigano aí, que eu dar as minha chupadinha no bode... (Avança, mas a Valença reage imediatamente metendo a mão no Quixa).

VALENÇA

(Com raiva). Tome pra vormiçê aprender a num se meter cum o bode de ninguém...

VIRGURINO

Essa eu num gostei, a maneira que vormiçê tratou o Quixa! Mas num gostei mermo... E agora, quem tá virado na gota serena, é eu... A gente já sabemo que o teu rivorve num mata vampiro cangaceiro... E pra lhe matar de raiva, nóis vai os três de uma vez só, chupar o teu bode!(Transição). Vamo atacar...

VALENÇA

Se ocê quer exprementá a palma da minha mão na cara, eu tou esperano...

QUIXA

Capitão, essa muié, tá virada no cão... A minha cara tá é ardendo...

VIRGURINO

Eu tou veno, home... Mas nóis vai assim mermo!

CARITO

Se a gente chupar o sangue desse bicho, nóis vai mexer cum um satanás a ainda pro cima cum a vara curta... Virgurino, eu tou cum uma fome da peste! Eu tou veno que chupar esse bode num vai valer à pena não...

QUIXA

Mas eu quero chupar o bode assim mermo...

VALENÇA

Vormiçês acha, que Valença Ferreira, vai deixar que argum mal acunteça a o único macho que tem aqui na região?!

VIRGURINO

Êpa! Dessa vez, essa muié tá desmoralizano a crasse vampirina...

QUIXA

(Quase em cochicho). Lá vem mais cunversa...

VIRGURINO

O que é Quixa?! O que diabo tu tá falano aí baixinho, que a gente num tá orvino é nada...

QUIXA

Capitão, eu vou desobedecer as suas orde! A minha barriga tá mandano eu fazer isso... (Transição com o bode). Chega, bodinho... Eu só quero uma chupadinha...

VIRGURINO

(Segura o Quixa). Quixa se comporte, ou eu vou acaba cum a tua raça... Se comporte cuma vampiro cangaceiro...

CARITO

A fome num deixa... (Transição). Eu também vou desobedecer as tuas orde... Chega bodinho...

VIRGURINO

E pro que eu vou ficar espiano?! Tá doido! Eu também vou, que eu num sou besta...(Todos avançam. Valença pega um crucifixo feito de mandacaru. Transição gritando). Se afasta, que a muié tá cum uma coisa ruim na mão! ... (todos se afastam. Valença pega algumas folhas de cansanção).

VALENÇA

Eu vou dar uma surra em vormiçês, cum esses gaio de cansanção! Pelo cu tou veno, no bando, num vai sobrar um só vampiro cangaceiro...

VIRGURINO

Vormicê tá é doida... (Transição). Vamos imbora daqui, Quixa depressa, antes que esse mato acabe cum a gente...

VALENÇA

Ninguém vai sair daqui! Só depois da premeira lapada!(Transição com raiva). Tome pra vormiçê aprender, seu Virgurino desfarçado! (Dá uma lambada nas costas de Virgurino).

VIRGURINO

Aiii... Eu vou imbora, mas eu vou vortar... (Sai rapidamente pela Janela por onde entrou, o Virgurino e o Carito).

VALENÇA

(Com o Quixa). E vormiçê?! Vai querer também um pouquinho de sarninha?!

QUIXA

(Gritando). Virgurino, espere pro eu... (Sai apressadamente, também pela janela). Mas um dia cum fome.

VALENÇA

Vai imbora daqui, seus vampiro fedorento! Oçês só vai chupar o meu Nabezinho, se passar pro cima do meu cadáve... (Transição). Mais tarde, eu vou tá esperano! Pode vim, que eu vou tá preparada! Eu tenho que preparar uma armadilha! Eu tenho que acabar de uma vez pro todas cum esses vampiro da peste serena! Meu bodinho Nabé, esses vampiro só vai chupar o seu sangue, depois eles conseguir acabar cum eu premero; mas antes disso, desses vampiro, num vai sobrar, nem pensamento! Eu vou acabar cum essa corja rabugenta, nem que eu tenha que mudar de nome... Esses peste tá tirano o meu sossego! Eu já tou que num consigo ver saída! Eu já tou que num consigo pregar os oio um só instante! Mas eu vou conseguir, Nabezinho...(Transição). É bem verdade, que o meu rivorve num mata vampiro cangaceiro, essas coisa ruim... Mas eu posso acabar cum eles de outro jeito! É só pensar, que cabeça foi fazida pra pensar mermo, num foi pra ficar pendurada precoço... E também, meu bodinho, quano nóis acabar cum essa praga, nóis vai embora daqui pra um lugar bem longe, onde a gente podemo ser feliz e que tenha comida e água de montão... Sem tá se prorcupano, cum esses cangaceiro dentuço... Eu num vou arguentá mandar nessas terra sozinha mermo! Agora pra tu vai ser bom... Mas pra eu, num seio se vou arguentá viver longe desse sertão vei de guerra não... Eu nasci aqui, me criei, fiquei moça...(Transição). Só num fiz me casar... Amiguei-me... Enterrei meu pai e minha, lá perto da porteira... Eu só peço a meu padim padim Ciço, que me ajude... Querer eu quero ir me embora, mas a fome já tá apertano n'eu também... E a cidade mais próxima daqui da caatinga, fica em muitas légua... Eu não conseguia chegar inté lá... Cum certeza eu ia morrer de fome e sede no caminho... Minhas perna já ficano fraca, mas enquanto eu ainda puder sustentar a minha caicaça em pé, eu vou te defender, meu bodinho... Vou morrer de peito em pé... Será que se nóis conseguir chegar noutro lugar, lá tem uma lua bonita cuma essa, crareando a estrada, Nabé?! Também se num tiver, a vida pra mim, vai deixar de ter sentido... Eu num tenho nada na minha vida, só tu e uma esteira pra dormir... Mas sou feliz, Nabé... Eu vou morrer depressa se isso acuntecer... E tu vai ficar livre pra namorar a cabrita que ocê quiser... (O bode berra. A sonoplastia libera um som de chocalho. Virgurino entra em cena gritando).

VIRGURINO

Valença, eu agora tou aqui, pra acabar cum essa tua cara de muié valente! (Entra o Carito e o Quixa. Todos armados).

VALENÇA

(Já fraca de fome). Tava demorano...

CARITO

Se prepare pra morrer, Valença! Nóis tá cum os rivorve topado de bala e esses mata tu, muié...

VALENÇA

(Com raiva). Oçês pensa que eu vou ficar cum medo, é?! Apois tá muito enganado! Eu sou é muié do mato o oçês me respeite! Eu morro, mas num dou o braço a trocer! Vamo atire seus covarde!

QUIXA

Capitão, ela tá quereno guerra...

VIRGURINO

Isso aí é o demo em forma de gente! O santo já dizia, que um dia ia aparecer arguém parecido e parece que o dia acabou de chegar...

CARITO

Antonse, o jeito é cortar o mal pela tora! Já que o santo diche isso...

VALENÇA

Pode vim, que eu num tenho medo de nenhum fi da peste...

QUIXA

Capitão, eu acho que ela chamou o santo de peste... Ou então foi vormiçê... É muito desaforo...

CARITO

Oi o respeito, cum o santo pade... Vá lavar a sua boca podre... O Virgurino falou do santo pade Ciço...

VIRGURINO

Carito, desde quano vormiçê viu eu falano o nome do santo aqui?! Eu quebro teus dente, caba...

CARITO

Vormiçê acabou de falar, num foi, Quixa?!

QUIXA

Foi...

VIRGURINO

Inté tu, Quixa!? (Transição). Eu tou veno que eu penso que falo a coisa, num falo e vormiçês diz que eu falo! Nem eu tou intendeno mais o que tou falano... Mas que merda...

VALENÇA

(Com o Carito). Cuma é que tu tem corage de mandar Valença lavar a boca?! ... Tu acha se que eu tivesse pelo menos uma gota d'água pro aqui, eu ia lavar a boca?! Eu tou cuspino pedra de tão seca... (O bode berra. Transição). O que foi Nabé... Tu deixa de vadiage... A seca que eu tou falando é pro causa da farta de água... É as minhas goela que tá seca... (Transição). E cuma é?! Eu tou esperano! Oçês vai ou num vai me matar?!

VIRGURINO

Deixa de ser apressada, muié! Nóis num sabe se vai valer a pena! Nóis tá pensano aqui, esquentano os miolo... Pra negociar o bode cum tu...

VALENÇA

Vormiçês é besta! Nem que meu padim padim Ciço mandasse três mês de chuva sem parar, em troca de meu bode, eu preferia morrer de sede, mas eu num dava... Num tem negócio de jeito nenhum!Meu bode é coisa muito preciosa...

VIRGURINO

Mas é pro ser preciosa, que a gente paga caro...

VALENÇA

Cum que?! Tu num pede esmola, pro que num tem um saco e nem tem a quem pedir... E ainda quer pagar caro, por um bode!? (Dá uma gargalhada de zombaria). Essa foi da gota serena pra dentro...

QUIXA

Capitão, essa muié tá tirano prosa cum a tua cara... Ela tá quereno te dermoralizar...

VALENÇA

(Outra gargalhada).

CARITO

Ela também lhe chamou de irmolé, Virgurino... Se fosse cum eu, ela num tava mais viva...

VIRGURINO

Ela brinque cum eu, que eu acerto o pandeiro dela...

VALENÇA

(Transição). Me respeite, caba! Pelo menos na frente de meu macho... (Transição com o bode). Tá veno, Nabé?! Tu fecha os orvido, que esse cachorro da mulesta tá pensano que eu vou botar ponta em tu... Mas tu pode ficar quieto, pro eu num troco tu, nem pra um home caba da peste, quanto mais pra três vampiro, metido a cangaceiro... Morto de fome...

QUIXA

Capitão, eu num acreditano no que as oiça acabou de orvir! Essa muié, num gira bem do quengo não...

CARITO

Cum um bode?! Só pode tá doida mermo...

VIRGURINO

(Valença). E o macho que tu tá falano, é o bode, é?! (Dá uma gargalhada de zombaria).

VALENÇA

É sim senhor... Tem arguma coisa contra?! Sim, proque se tem, nóis arresorve agora mermo!

VIRGURINO

Quer dizer então, que o bode é teu macho?! (Transição. Dá outra gargalhada de zombaria).

VALENÇA

(Decidida e com raiva). É meu macho sim! Ele é um home igual a qualquer um de vormiçês...

QUIXA

Não, capitão, dessa vez ela foi longe demais... Comparar nóis com um chifrudo desse...

VALENÇA

Ocês tenha prega na língua, que meu Nabé, num é corno não, eu sempre fui uma mulé dereita... Ocês respeite, que respeito é bom e eu gosto...

VIRGURINO

E quem mandou tu ficar comparano nóis cum esse teu macho aí... Cum bode... Nem berrar, eu seio berrar... Eu sou mais nóis do que ele...

VALENÇA

E eu sou mais o Nabezinho...

CARITO

(Curioso). E cuma é que tu consegue fazer?!

QUIXA

(Também curioso). Ah, essa também eu quero saber!

VIRGURINO

Tu quer saber o que, Quixa?! Vormiçês tem nada haver cum a vida da muié aí?!

QUIXA

Capitão, eu só tou quereno saber, o que o Carito proguntou... Cuma é que faz!? ...

VIRGURINO

Num interessa a nenhum de vormiçês... (Transição). Eu pido descurpa pro ele, dona Valença! Num precisa responder nada! O bode é seu e a senhora faz dele o que quiser...! Agora se de repente quiser falar, eu num vou achar muito ruim não, num sabe?!Só assim, eu aproveito e fico sabeno também...

VALENÇA

Eu num vou dizer, pro que também num lhe interessa...

VIRGURINO

(Espantado). Êita peste... Que mulerzinha atrevida!

CARITO

(Se coça). Bobôinca...

QUIXA

Ela vai botar tu pra trás, capitão...

VIRGURINO

(Em tom alto). Ninguém bota Virgurino pra trás... (Transição com raiva e gritando). É bom que tu fique sabeno, que a gente num tá aqui pra tá proguntano nada do teu bode, o que nóis quer é chupar o sangue dele...

VALENÇA

(No mesmo tom). E vormiçês tenha coidado, que o meu bode, num é nenhum cavalo batizado não e tem nome... O nome dele é... (Aos berros). Barnabé...

VIRGURINO

E num venha gritar cum o vampiro rei do cangaço não, que hoje só vai dar eu e tu...

CARITO

(Se coça). Se for pra estourar os miolo dela, é só mandar atirar...

VIRGURINO

Baixa o rivorve, Carito... Se nóis tá aqui pra levar o bode, antonse nóis vai levar o bode... E acabou...

VALENÇA

Eu rasgo ocês todinho de dente, mas eu mostro, que o meu bode Nabé, num tem piolho de cobra, mussurú de açoite e nem periquito boi tatá da gota encaibada... Que venha tirar ele deu...

QUIXA

Capitão, essa muíe vira bicho...

CARITO

Antonse vamo imbora daqui, que ela pode tá cum um cachorro brabo no coro...

VIRGURINO

Ela tá virada no cão, ela pode tá inté cum a seribobéia no coro... Mas o bode é nosso e daqui, nóis só sai cum ele...

CARITO

Mas repara a peste mermo! Eu num tou dizeno que essa muié pode morder!? Eu num digo mais é nada... Se quiser pegar o bode pode pegar, mas se ela partir runindo, quem nem um cachorro doido, eu vou bater os pé na bunda de tanto correr... Quem vai esperar, é a peste, eu não...

QUIXA

Capitão...

VIRGURINO

(Com raiva). Cala a boca, Quixa! A gente tá num aperreio neivoso da peste e tu vem querer cunversar merda!?

QUIXA

Mas eu num diche nada!

VIRGURINO

... Mas pensou...

CARITO

Tu tá precisano se acarmá mais, Virgurino... Tu tá neivoso demais... Isso num é bom...

VIRGURINO

Eu num tou neivoso não, Carito... O pobrema todinho é essa muié que tá torrano os meus miolo... Desse jeito eu vou acabar ficano doido...

VALENÇA

Se num deixar o meu bode sossegado, eu num vou deixar tu só doido não, eu vou corta o precoço de vormiçês todinho e as dispois beber o sangue...

VIRGURINO

(Debochadamente). Eu tou morreno de medo... Oi cuma eu tou tremeno... Carito, fala o nome dela perto deu, fala...

CARITO

(Se coça). Valença...

VIRGURINO

Uhhh... Cuma eu tou tremendo... Fala de novo...

CARITO

Valença...

VIRGURINO

Dessa vez, foi forte demais...

QUIXA

Capitão, deixa eu falar também, deixa?!

VIRGURINO

Se vormiçê cunversar merma aí, eu corto tua língua de faca e guardo pra quano nóis encontrar um barracão, tomar ela cum cachaça de cabeça...

QUIXA

Num era mió cortar o bode não, capitão!? Eu acho mió, que eu num tou aguentano mais...

VALENÇA

(Com ironia)... Mas é aparecido mermo...

QUIXA

Meu nome num aparecido não... É Quixa...

VIRGURINO

Deixa de ser burro, Quixa... Aparecido é o nome do macho dela, o bode...

VALENÇA

(Furiosa). Essa foi demais! Eu num seio onde é que eu tou, que ainda num quebrei a cara de um fi da peste desse!Oi aqui! Eu num quero orvir mais nada... (Transição). Oçês vai imbora daqui, é agora... xô... xô...

VIRGURINO

(Reage). Peraí... Tu tá tangeno a gente pro que?! Tá pensano que aqui tem arguma galinha, é?! Nóis é vampiro macho do mato... E se tu quer escuiambá cum a gente, pode dizer o que tu quiser, pode chamar nóis de cavalo, de poico...

VALENÇA

Siriema... Veado, num é?! ...

VIRGURINO

Aí tu já quer dermoralizar a crasse vampirina... Aí é outra linhage...

VALENÇA

Eu já mandei vormiçês sair da minha casa... (Transição). E num vai sai não, é?! Peraí, que eu vou acabar cum o restinho da raça de vampiro cangaceiro...

QUIXA

Capitão, pra ter tanta certeza, que vai acabar cum nóis, ela deve tá aimada inté os dente...

CARITO

Eu também acho...

VIRGURINO

Deixa de teu avoroço, muié! Qual é a arma que tu tem guardada aí!? Sim, proque nóis já conheceu tudinho, que tu tinha aí guardado...

VALENÇA

Vormiçês num viu nada ainda... Pensa que eu sou burra, é?! Mostrar as novidade antes da hora?! Tanto tempo que eu moro aqui no sertão e num saber cuma é que mata vampiro cangaceiro?! É ser muito jumenta, num é?!

QUIXA

Capitão, vamo imbora daqui, que pelo cu tou veno, esse bode, nem um bataião de vampiro, consegue tira-lo daí...

VIRGURINO

Deixa de ser medroso, Quixa! Eu vou mostrar pra ocês que num vai precisar um bataião não... Só nóis três, já faz todo serviço, sozinho...

VALENÇA

Eu quero ver se vormiçês consegue... (Faz menção que vai sair de cena).

VIRGURINO

(Impede). Espere! Deixa de ser apressada, muié! O que diabo tu tá quereno fazer, pra acabá cum nóis! Tu tá ficano doida, ou o que peste é?! Se tu quer ficar cum teu bode, nóis vai deixar teu bode... Agora eu decidi que nóis vai imbora dessas terra quente pra bem longe daqui... Isso é, se nóis conseguir chegar lá...

QUIXA

Capitão, nóis vai morrer de fome! Eu num quero ir não, eu quero chupar o bode premero...

VIRGURINO

Eu já diche que ninguém toca no bode, antonse ninguém vai tocar no bode e pronto... Nóis pode morrer de fome no caminho, mas nóis vai morrer cum palavra! Vampiro cangaceiro num farrapa! Vamo imbora vampirada...

VALENÇA

E eu vou ficar aqui sozinha, é?! Quer dizer que vormiçês nunca mais vai mexer cum o meu bode!?

VIRGURINO

Isso mermo... Eu posso inté num ser o futuro rei do cangaço, mas posso dizer que sou o chefe dos vampiro cangaceiro... Agora nóis já vai... (Faz menção que vai sair).

VALENÇA

Tá muito longe da cidade mais perto... Ocês vai morrer de fome e sede no caminho...

CARITO

Ela tem razão, Virgurino! Nóis já tá fraco demais...

QUIXA

Eu num vou arguentá sair pra lugar nenhum... Eu vou morrer pro aqui mermo...

VIRGURINO

Nóis consegue... (Transição com a Valença). Agora, é muita covardia, uma muié morrer de fome cum prato de comida perto dela... Vamo imbora...

VALENÇA

(Decidida). Eu vou cum ocês...

CARITO

(Se coça. Espantado). O que?!

QUIXA

Eu num tou acreditano no que eu tou orvino!

VIRGURINO

Eu também não! Eu num tou intendeno mais é nada! Home arrepita pra ver se eu intendo!

VALENÇA

E vormiçê acha que vou ficar aqui sozinha, é?!

VIRGURINO

E o bode num vai lhe fazer companhia?! Nóis agora num quer mais saber desse bode mais não... Arresorvemo viajar cum fome mermo!

VALENÇA

Ah, eu também vou... Nem que a vaca fique tossino, eu vou... (Transição). Tá, eu posso morrer de outra coisa, mas de fome, nunca!

VIRGURINO

Mas eu num quero carregar mais um peso nas minha costa... Prefiro morrer sozinho dentro da caatinga, a ver uma muié gemendo de fome do meu lado...

VALENÇA

Eu posso inté morrer de fome, mas home nenhum nunca vai orvir um gemido meu... Dessa vez eu vou de quarqué jeito... Hoje nem alegria a gente tem mais, nóis só vê fome, misera...(Transição). Isso aqui, tá um deserto só! E o que peste eu vou ficar fazendo num lugar desse, protegeno um bode, que só faz ficar parado o tempo todinho?! Eu quero é um home...

CARITO

Aqui tem logo três... (Se coça).

VIRGURINO

(Repreende). Carito...(Transição com a Valença). E vormiçê baixe seu facho, que num vai pra lugar nenhum cum a gente...

VALENÇA

(Decidida). Eu vou...

VIRGURINO

Num vai...

VALENÇA

Eu já diche, que eu vou e pronto... Ora, mas que peste...

VIRGURINO

E eu tou lhe dizeno que vormiçê num vai... Ora, mas que merda...

VALENÇA

Eu vou sim...

VIRGURINO

Antonse vá sozinha...

CARITO

Deixa ela ir sozinha mermo, Virgurino! Só assim o bode fica todinho pra nóis! (Se coça).

VALENÇA

O Nabé também vai cum eu...

QUIXA

Patrão, a gente tem que arresorver logo isso, pro que daqui a pouco o sol já vai se pôr e a gente tem muito chão pela frente!

VIRGURINO

Nisso vormiçê tem razão!(Transição com a Valença). Fique cum o seu bode e faça dele o que bem querer...

CARITO

Eu num seio proque tanta defendida de bode aí...

VIRGURINO

(Repreende). Carito, num fale do macho dos outro!

QUIXA

Mas o Carito tem razão, patrão! Nóis tá fazeno confusão sem necessidade nenhuma! Esse bode pode ser sarvação da gente...

VALENÇA

O que é que tem haver, meu Nabezinho, cum essa sarvação, que tu tá falano aí?! Oi, exprica dereitinho, que eu num tou intendeno é nada...

VIRGURINO

Pela minha sabiência, eu já tou intendeno é tudo! Eu já tou juntano a coisa, mas eu num seio se é a merma coisa que o Quixa pensou... Exprica, Quixa...

QUIXA

A fome tá começano a aperrear as lombriga! Só tem aqui, nesse sertão, nóis três, essa muié aí e o bode! ...

VALENÇA

E daí?!

VIRGURINO

Fala logo, Quixa...

QUIXA

E se a gente viajasse todo mundo junto?!

CARITO

Vai morrer todo mundo no caminho... É muito longe daqui, pra cidade...

VIRGURINO

E a gente vai morrer aqui, é?! Nóis tem que tentar... (Com a Valença). Vai tentar assim mermo, cum toda fome e sede que nóis tá?!

VALENÇA

E tem outro jeito?

CARITO

(Se coça). Tem...

QUIXA

Eu também acho que tem...

VIRGURINO

Antonse gomita, home!

CARITO

Nóis mata o bode...

VALENÇA

Eu sabia que ia sair merda dessa gomitação...

VIRGURINO

Mas muié, eu tou cum o Carito e num abro... Num vejo outra saída!

VALENÇA

Nóis vai morrer tudinho de fome; mais meu Nabé, ninguém vai matar!

VIRGURINO

Eita muié fia da peste! Mas num larga esse bode nem pelo amor do pade Ciço...

VALENÇA

Oi o respeito! Fia da peste, é quem te pariu!

VIRGURINO

Eu só vou ficar calado, pro que tu ainda num falou de minha mãe!

CARITO

Cum essa confusão, nóis num vai chegar pra lugar nenhum!

QUIXA

Eu já tou cum as tripa dando nó...

VALENÇA

Eu também... Eu já cum as minhas vista anuviada...

VIRGURINO

Toda solução, só tá no bode!

VALENÇA

Tem que existir outra saída! O Nabezinho é o único macho que eu tenho...

CARITO

Nóis sabe que vormiçê é apaixonada pro ele, mas...

VALENÇA

Vormiçê tá ficano besta! Só tem um macho, que eu nunca esqueci! Foi o meu primo virgulino, Lampião... Esse era caba da peste mermo...

VIRGURINO

Mas um motivo pra gente sarvar as nossa vida!

QUIXA

Ela devia se amigar cum o Capitão... O seu nome é bem parecido cum o dele... E também a gente mata o bode, vai chupano o sangue quando dar sede e guarda a carne pra quano dar fome! Só assim a gente vai ter força pra chegar na cidade a arrumar comida e começar a vida de nóis...

VALENÇA

É! Se só tem esse jeito! (Com o bode). Nabezinho, tu vai me descurpar, caba véi, mas a fome tá falano mais arto! Eu num tou quereno fazer isso, mas a fome tá obrigano... Tu num te prorcupa, que eu vou levar o teu chifre de lembrança e um pouco de teu sangue pra dar sorte! Pode ser que ele num dê sustança, mas vai dar sorte pra nóis! Eu tenho certeza que macho igual a tu, eu num vou encontrá nunca mais, Barnabé... Eu vou sentir a tua farta! Inté, meu bodinho!(Com os vampiros). O que tem de ser fazido... Vamo fazer logo, que o dia já tá clareano...

VIRGURINO

É, e a viage vai ser muito dura! Tem pedra e muita areia! Nóis vai infrentá um monte de perigo na estrada!(O Virgurino vai preparar o bode para a matança).

VALENÇA

(Vai saindo cantando em como se fosse um reza).

Oi que, caminho tão longe

Tão cheio de pedra e areia

Valei-me meu padinho Ciço

E a mãe de Deus da candeia...

CARITO

Pro cima de muita pedra

Cantano cum alegria

Num creio em outro santo

Só nele e na virge Maria

QUIXA

Nóis vai sair dessa terra

Pra tentar a vida lá fora

Cum o meu padinho Ciço

E a virge nossa senhora...

VIRGURINO

(Fazendo menção que tá puxando bode).

E vamo logo bodinho

Que o dia já tá terminando

Em nome do padinho Ciço

Que logo nóis tá viajano...

(A cena escurece e a sonoplastia libera som de pegadas em cascalhos e logo em seguida uma pancada forte e o berro do bode. A luz vai clareando em resistência gradativamente. Vem entrando em cena de um por um, com uma caneca de ágata nas mãos, meladas de sangue).

VALENÇA

Tive pena de meu Nabezinho...

VIRGURINO

Também, mas ele vai sustentá a gente inté lá...

VALENÇA

E quano chegar lá, nóis vai fazer o que?!

CARITO

Boa progunta...

QUIXA

Lá a gente se vira...

VALENÇA

Eu tenho uma idéia... (Transição). A gente monta uma banda de pife, em homenage ao Nabezinho... E banda de pife dar dinheiro...

VIRGURINO

Mais nóis num sabe tocar pife...

VALENÇA

Num pobrema... Eu ensino pra ocês... Eu já toquei aquilo lá, quano eu era moça... E nóis tá cum a banda compreta... Virgurino toca pife, Quixa, toca no prato e a Carito toca no bumbo... Nóis vai pedir irmola pra comprar os estrumento...

VIRGURINO

Antonse vamo imbora que nóis tá se atrasano! Vamo aproveitar que a noite é de lua... E essa noite tá fazeno frio... (Todos saem de cena. A cena escurece e estoura na platéia uma banda de pífano. O Virgurino no pífano, o Carito no bumbo, Quixa no prato e a Valença, segurando um quadro com a imagem do bode Barnabé. O quadro está todo enfeitado, com fitas coloridas. A Valença pede esmolas a platéia. Chega no palco, eles esperam a música terminar. A música termina bruscamente e eles ficam parado como estátuas. As cortinas começam a fechar, chegando o fim da peça: SANGUE DE BODE NUM DÁ SUSTANÇA).

PEÇA: SANGUE DE BODE NUM DÁ SUSTANÇA

AUTOR: FLÁVIO CAVALCANTE.

MÊS: JUNHO

ANO: 1996

Toda obra deste autor é totalmente fruto de imaginação; porém, qualquer semelhança é mera coincidência.

Flavio Cavalcante
Enviado por Flavio Cavalcante em 23/03/2009
Código do texto: T1501976