HISTÓRIA VERDADEIRA, de Montesquieu

Charles-Louis de Secondat (1689-1755), mais conhecido como Barão de Montesquieu ou simplesmente Montesquieu, foi político, filósofo iluminista e escritor francês. Ficou famoso pela sua Teoria da Separação dos Poderes defendida no livro O Espírito das Leis e atualmente adotada pela maioria das Constituições, inclusive a brasileira.

O que poucos sabem é que Montesquieu também escreveu livros de ficção em que criticava os costumes, a sociedade, a monarquia absolutista e a religião. Seu romance mais famoso é Cartas Persas. Menos conhecido, História Verdadeira é uma maravilha em originalidade e crítica, apesar de ter apenas 96 páginas. Relata quatro mil anos da vida de um único protagonista em suas várias transmigrações (reencarnações). E de quebra, narra hábitos, costumes e eventos em diversas partes do mundo em diferentes épocas. Eventos cotidianos e particulares, não marcos históricos.

"Resolvi desencaminhar uma jovem. Seu marido descobriu tudo, e matou-me. Como era inteiamente nova e ainda não havia animado outros corpos, minha alma foi transportada repetinamente para uma esfera onde os filósofos deviam julgá-la. Toda a minha vida foi pesada, e a balança pendeu rudemente para o lado do mal. Fui condenado a passar para os animais mais vis, e puseram-me sob o poder de meu mau Gênio, que era um espiritozinho negro, crestado e maligno, que me devia guiar em todas essas transmigrações; eu porém, sem me espantar, sem me afligir, sem me queixar, conservei minha alegria ordinária e caí na risada ao ver as outras sombras apavoradas. Um dos mais eminentes filósofos admirou-me a coragem e tomou-se de amizade por mim: 'Para te mostrar', disse ele, 'que estimo a tua firmeza, vou conceder-lhe o único dom que está em meu poder; é a faculdade de relembrar tudo quanto te acontecer em todas as revoluções do teu ser.'" (pg. 17)

Indiretamente, Montesquieu abre o debate sobre um dos principais dogmas religiosos de todos os tempos, a punição pelos pecados. Deve a alma sofrer eternamente em um inferno de fogo por atos ruins que cometeu em poucos anos (talvez em ignorância) de vida? Ou um sistema kármico de evolução ou retrocesso pelos atos de uma vida repercutindo na próxima seria o mais ideal? Montesquieu apresenta esta segunda opção de maneira sagaz e divertida.

O protagonista não possui nome, pois teria muitos a relatar em suas várias transmigrações, e descreve as partes mais interessantes de suas diversas vidas, desde a original em que se revelou má e resultou no castigo acima mencionado, até a última em que narra todo o seu passado em um livro. Foi inseto, animal, rei, escravo, homem, mulher. Quanto mais desonesto e vil, pior seria sua próxima vida. Quanto mais leal e generoso, melhor era a sua próxima existência. Montesquieu, abordando as dicotomias existentes entre religiões, classes, raças, sexos e espécies consegue criticar as diferenças e preconceitos entre estes opostos. Em uma vida, o personagem foi eunuco que sentia prazer em castigar as mulheres de seu amo, em outra foi mulher que traía o marido para enalterecer o nome da família. Foi touro adorado no Egito e elefante sagrado na Índia. Em todas estas vidas, notou que sempre servia a alguém, seja faraó, rei, amo, esposa, íncubo ou gênio, mesmo quando foi rei era escravo de seus desejos e riquezas. Aprendeu pela experiência, pois inicialmente de espírito mau, foi gradualmente tornando-se sábio, tolerante e bondoso. A experiência corrigiu os seus defeitos, mesmo sem ele o desejar.

"Sendo o ridículo senão aquilo que choca as maneiras de cada país, da mesma sorte que os vícios são o que lhes choca os costumes, o que nos parece ridículo aqui talvez não o fosse tanto nos países onde eu vivia." (pg. 66)

"O crime, perante os Deuses é a ação; o crime, perante os homens, é a maneira de cometê-lo." (pg. 67)

"As riquezas de um homem supõe a pobreza de um número infinito de outros homens, e a grandeza de um mortal, a humilhação de quantos lhe obedecem." (pg. 84)

História Verdadeira é um achado para escritores e os que gostam de refletir. Há passagens para se meditar e formular idéias de contos, histórias e romances. É um livro que estimula a imaginação mesmo após a leitura de sua última página. Enfim, é uma fonte pronta para ser usada por aqueles que dela quiserem beber.

Retirado de www.jefferson.blog.br