As exigências do silêncio, de Anselm Grün
GRÜN, Anselm. As exigências do silêncio. Tradução de Carlos Almeida Pereira. 3a. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2005.
INTRODUÇÃO
Minha modesta pretensão é oferecer um resumo do que Anselm Grün, em seu livro As Exigências do Silêncio, comunicou sobre o entendimento da tradição monástica cristã, cujos primórdios remontam ao século III e a consolidação da vida monástica, ao século VI de nossa Era.
O texto procura ser fiel à fonte já que, caso eu fosse emitir opiniões, falaria apenas de meus anseios, o que não passaria de fútil quebra do silêncio. O pouco que falo tem como ponto de ancoragem os meus contatos com pessoas consagradas, durante os dias maravilhosos que passo eventualmente em comunhão com aqueles bem resolvidos que me oferecem o constrate com a coragem que me falta para abraçar a dor e o êxtase do mergulho cotidiano na espera da visita de Deus. Apreciei muitíssimo o convívio de poucos dias com a Monja Ani Zamba, que trata de erguer com suas mãos e tenacidade um Mosteiro Budista em Mucugê, na Chapada Diamantina. As duas tradições monásticas, budista e cristã, estão sempre cruzando meu caminho e isso me encanta sobremaneira. Mas nesta abordagem aqui, o foco é sobre o monasticismo cristão e pareceu-me apropriado manter a simplicidade da denominação Deus e assim guardar fidelidade à linguagem de Grün. A mescla das duas linguagens, budista e cristã, cria termos como “Consciência Universal” ou, até a mais recente expressão inspirada nas observações da mecânica quântica, “Observador Supremo”, que não conseguem sintonizar de forma limpa a percepção cristã ou budista da transcendência. Confesso que houve momentos em que me senti constrangida e tendente a lançar mão de outros termos menos tradicionais, mas então recusei deixar-me intimidar pela moderna rejeição às espiritualidades antigas e adotei Deus e ponto. Francamente, quanto menos barulho e mais economia de fonemas, mais adequação ao tema proposto.
Afinal, o Mosteiro cristão não é um refúgio para os que queiram se manter livres da “contaminação mundana”. No Mosteiro, a busca consiste em preservar o mundo da impureza dos que ali assumem a condição de prisioneiros de Deus. Em sua cela, o monge não suplica para que, no dia do Juízo Final, o Mosteiro não caia junto com o mundo – roga apenas por uma queda o menos ruidosa possível. Enquanto não chega o último dia, o monge, em seu recolhimento, espera as visitas de Deus e dos homens e mulheres, a quem recebe como se fossem Um. O visitante é acolhido como o Cristo, com ação de graças.
A explanação foi dividida em patamares. O primeiro corresponde ao preparo para a longa subida, quando é preciso desvencilhar-se da bagagem excessiva – os vícios. No segundo se lança mão da bússula para encontrar o rumo certo. No terceiro patamar se descansa na expectativa do alvorecer para se fartar de luz.
PRIMEIRO PATAMAR
A abordagem inicial do silêncio é negativa – um meio para alcançar a “honestidade interior”, que requer evitar os quatro “perigos do falar”: a curiosidade, que conduz à distração, tornando-nos incapazes de acolher em nós a presença de Deus e mantê-la em condições de amadurecimento, induz à superficialidade e à inconstância em proteger os segredos, é indicativo da incapacidade para se aprofundar no mistério que é constantemente atirado para o outro e violado, resultado em que o mistério se esvai de nosso interior e já não o podemos contemplar; o julgamento do outro, pois ao falar do outro mascaramos o verdadeiro tema que é nossa própria pessoa e dificultamos a clareza e sinceridade requeridas à auto-observação; a vaidade, que se revela ao falarmos de nós mesmos visando ser admirados e reconhecidos; o descuido com nossa vigilância interior.
A consciência dos perigos do falar, aos quais constantemente estamos sucumbindo, não deve nos privar do “humor que está radicado precisamente na certeza de sermos aceitos e amados por Deus” de forma que “a experiência da própria fraqueza leva-nos não a um medo escrupuloso da culpa, mas antes a um sentimento de liberdade interior” em que me desincumbo de “identificar-me com minha imagem ideal, eu posso ser quem sou, porque Deus me ama assim como eu sou.” A conclusão de Grün é que “a experiência dos perigos acarretados pelo falar é ao mesmo tempo a experiência de estarmos acolhidos e protegidos no amor e no perdão de Deus.”
Em seguida, as funções positivas do silêncio incluem a via para o auto-encontro, perturbada, em nossos dias, pelos fatores externos – rádio, TV e computador – e desde sempre pelas nossas inquietações que nos impedem de ficar sem fazer nada. Temos a tendência a estar compulsivamente realizando ou planejando tarefas. Tudo isso constitui os meios de evitar ir ao encontro de nosso próprio ser, pois o silêncio não se reduz a deixar de falar, mas importa em renunciar a “todas as ocupações que me desviam de mim mesmo” e enfrentar nosso doloroso caos interior – uma massa revolta de anseios e tensões.
Como apoio para enfrentar a angústia do confronto consigo mesmo, a tradição monástica empregou o falar terapêutico, em que a “confidência como remédio”, hoje muito desenvolvida nas terapias, era o recurso para ordenar o tumulto e lançar luz sobre a escuridão interior. Ao monge era exigida a manifestação confidencial de seus pensamentos a apenas um confrade mais experiente, vedada a divulgação de suas tensões e problemas. Os negligentes nesta prática ficavam sob suspeição de orgulho. Na modernidade a prática do falar terapêutico é corriqueira, mas não vem acompanhada do exercício monástico do “silêncio como remédio” – já que o silêncio na atualidade tem conotação de repressão. Portanto não nos é familiar a função terapêutica do silêncio, que é a segunda função positiva deste e consiste no distanciamento de nossas raivas e rancores, com redirecionamento de nosso foco para nossas próprias faltas. Mantido este foco alcançamos o arrependimento de nossas falhas, colhemos os frutos do silêncio como remédio e alcançamos a correção de nosso rumo.
O “silêncio como remédio” proporciona também o ordenamento das perturbações emocionais e agressividade, que não são reprimidas, mas polidas e domesticadas. O silêncio exterior deve abrir caminho para uma transformação qualitativa interior, fundada na disciplina emocional. Caso isto não seja observado, o silêncio pode se tornar veneno - um instrumento do orgulho que isola do outro a quem não se quer revelar as fraquezas.
A distinção do silêncio como remédio e como veneno é confiada ao discernimento. Grün dá o exemplo da necessidade de “chamar a atenção do outro para sua conduta que nos provoca raiva. Num caso como este o silêncio não passaria de uma piedosa desculpa para nos omitirmos do diálogo com o outro”. Neste caso o silêncio deve ficar restrito a um intervalo para adequar o momento e a maneira de manifestar a raiva ao outro e investigar: “se minha raiva se fundamenta mais em minha insatisfação e sensibilidade do que no comportamento do outro; assim, após o silêncio, minha reação passa a ser mais adequada [...] e num diálogo mais esclarecedor eu posso falar com o outro com mais objetividade e menos emotividade.”
O silêncio é eficaz quando nos sentimos inclinados a reparar e condenar os erros do outro, o que nos desvia de olhar nossos próprios erros – ao nos calarmos percebemos que os erros alheios nos revelam nossos próprios erros. O silêncio então nos liberta dos julgamentos e nos conduz à serenidade interior. E ainda é instrumento de cura do outro como “expressão do amor com que o outro é aceito, com que a pessoa não se eleva sobre o outro mas tem consciência de sua própria fraqueza, por haver-se encontrado consigo mesmo no silêncio.”
O silêncio é ação na luta contra os vícios. Num primeiro momento, o silêncio exterior nos permite o auto-exame por meio da percepção e identificação dos pensamentos que nos acometem, se de gula, cobiça, consumismo, fantasias sexuais, raiva, tristeza, julgamentos, rancores, auto-piedade, desânimo, auto-exaltação, auto-admiração. Num segundo momento, alcançamos a meta do silêncio interior, ao nos vermos libertos dos vícios por meio do empenho no combate. Portanto, o silêncio não age como “uma renúncia passiva às palavras, mas sim um ataque ativo contra emoções e agressões que sentimos em nós.” Não se trata da eliminação de tais emoções para alcançar um nível elevado de silêncio interior, estado inatingível e experimentado apenas eventualmente. A meta de um silêncio interior possível é para os monges “um problema moral, que só pode ser alcançado pela vitória sobre as falhas, e não por técnicas de meditação ou exercícios de descontração”. Em outras palavras, trata-se de uma questão de retificação de conduta que pressupõe humildade e que não se exaure na aplicação de uma metodologia.
A humildade consiste em não se querer “alcançar coisa alguma, nem estados de recolhimento nem a calma absoluta”, mas em “nos abandonarmos inteiramente a Deus”. Humildade aqui implica em uma atitude de resposta “à experiência de Deus e da própria fraqueza e impotência perante Deus”. Trata-se pois de "um presente, que o homem não é capaz de conseguir com suas próprias forças”. Da mesma forma, “a calma e a tranqüilidade, quando se calam todas as minhas falhas interiores e desejos desmedidos, todas as minhas emoções e agressões e onde eu mesmo fico mudo, só pode ser dada por Deus. Posso exercitar-me nela, lutando e combatendo em silêncio contra os meus vícios. Mas ela é sempre apenas uma meta, que nós procuramos alcançar mas que só vez por outra podemos experimentar como um presente de Deus.”
Para São Bento não há polaridade entre a fala e o silêncio: “O que importa é falar de modo a não destruir a atitude do silêncio. [...] Quando tivermos aprendido o silêncio interior, então mesmo ao falar não haveremos de deixar o silêncio.” Este é o falar “impelido pelo Espírito” que sai da boca de quem no silêncio interior “escutou o Espírito”.
Ao galgar os degraus da vitória sobre os vícios atingimos o ápice do primeiro patamar: o “reto falar” que expressa “nosso amor e bondade para com os homens”, que se consolidam quando em nosso falar “não nos colocamos no centro, [...] não queremos não ter nada a ver com o outro” e “nos abrimos para o outro e suas necessidades. Então nossa palavra passa a ser um serviço de amor àquele que espera ser erguido ou alegrar-se por uma palavra”.
Assim o falar “com fé na presença de Deus [...] não interrompe o silêncio mas antes brota dele, não destrói o silêncio mas o divide com o outro.”
SEGUNDO PATAMAR
No segundo patamar, o silêncio se torna ativo e age com a finalidade de criar as condições para o desapego que, por sua vez, quando se concretiza, indica a presença do silêncio interior e independente das palavras pronunciadas ou não.
O silêncio exterior obstinado pode estar relacionado a uma retração ao enfrentamento das vicissitudes da vida que possam estilhaçar nossa auto-imagem ideal ou perturbar nossa permanência, regressiva e irresponsável, no útero materno. É o caso em que o silêncio exterior pode ser sinal de “um obstinado apegar-se a si próprio.” A exposição daquele que fala oferece “um flanco de ataque, suas palavras podem ser criticadas, ridicularizadas”. Ao cometer uma gafe num discurso e agradecer a Deus por isto, “então na verdade eu me desapego de mim. [...] Foi bom para mim ser humilhado, para aprender tuas prescrições’ (Sl. 119, 71) [...] No silêncio é deste desapego que se trata em última análise.”
A ação do silêncio comporta métodos para cultivar o desapego:
* método de combate às idéias e sentimentos que emergem dentro de meu ser silencioso até que se decantem e aquietem;
* método do deixar passar essas idéias e sentimentos por serem considerados irrelevantes - não se trata de se ver livre deles, mas de enfrentá-los e deixar que passem sem que me possuam, ou seja, a “idéia está aí, mas eu não irei ocupar-me com ela. Se ela voltar no momento seguinte, eu não fico zangado por meu deixar-passar não haver obtido êxito, mas deixo-a passar novamente.” . É preciso aceitar minhas idéias, que são minhas, com serenidade e com elas estabelecer convivência sem no entanto me resignar a interiorzar as tensões causadas pela renitência das idéias e sentimentos que, em si mesmos não são ruins – podemos conviver com eles sem a tensão para nos livrarmos deles: é possível “tentar conscientizar-nos destas tensões e dirigir a expriração para ali, de modo a com o ar expirado liberar as tensões. [...] Logo que nos libertamos corporalmente, nós podemos sentir como também interiormente ficamos mais livres. [...] Aquele que deseja empregar a distensão corporal como técnica pra enfim deixar passar as tensões desagradáveis, mas que não quer modificar sua atitude interior, este nada há de conseguir. Seria um mero tratamento de sintomas.”;
* método da pesquisa das causas das tensões – para liberar as tensões é preciso conhecer suas causas. Estas são geralmente causadas por exageros de auto-exigência que nos trazem insatisfações, preocupações, medo de nossa vulnerabilidade que buscamos mascarar com a construção de um “edifício de elevados ideais, por meio do qual pretendemos disfarçar a visão de nossos próprios abismos.” O antídoto para essa angústia é a aceitação do amor de Deus para comigo, com minhas franquezas e falhas. Então o ideal que me impus se desvanece diante da grandeza do que realmente importa: “... que em mim possa agir o espírito de Deus.”;
* método dos irmãos de Taizé, que indica os aspectos interiores que é preciso fazer silenciar e que a psicologia reconhece como necessários ao processo de amadurecimento.
Os aspectos a silenciar são os seguintes: as fantasias (tristezas e frivolidades); a memória (queixas e azedumes, conservando apenas as provas da misericórdia divina); o coração (os desejos, as antipatias, os exageros amorosos) o amor-próprio (auto-condenação ou auto-louvor); o espírito (pensamentos vãos, considerações sutis que interferem na força de vontade e amorosidade); o julgamento (em relação aos outros); a vontade (angústias do coração, sentimentos de abandono); silêncio consigo mesmo (cessação das queixas e auto-consolações, esquecimento e libertação de si mesmo).
Em acréscimo e em consonância com as várias tradições, a meditação sobre a própria morte induz ao morrer para si mesmo – fundamental para o desabrochar do mistério divino da vida eterna em nós.
O desapego facilita a peregrinação por esta vida rumo a outra realidade. Como este mundo não é percebido como nosso lar, as preocupações para corrigi-lo se atenuam com alívio de outro foco de tensões. Ao silenciarmos arrefecemos a comunicação com o mundo a que não pertencemos e que a Deus pertence- confiamos que Ele está no comando. O caminho e o mundo serão passado para o peregrino quando ele chegar ao lar. As recordações do passado não importam ao peregrino que persevera no presente com os olhos no futuro identificado com a eternidade. O peregrino é um estrangeiro neste mundo e silencia para suportar a distância da pátria e não alimentar intimidades com o meio estranho que atravessa provisoriamente.
Desapegado, morto e em trânsito, o monge peregrina e é livre interiormente – todas as dimensões de seu apego estão imobilizadas em Deus: “Se nos ocupássemos com as coisas e as pessoas a partir desta liberdade, nos não haveríamos de viver constantemente sob tensão. Poderíamos trabalhar com mais objetividade, porque não haveríamos constantemente de misturar nossas próprias necessidades e desejos com as coisas e iríamos trabalhar mais, porque não haveríamos de investir uma energia desnecessária em coisas secundárias, como reconhecimento e louvor.”
Trata-se de almejar a inundação de Deus: “Não somos nós, com nossa estreiteza e nossos egoísmos que determinamos a nossa vida, mas sim o próprio espírito de Deus, ao qual no silêncio nos entregamos e em quem depositamos nossa confiança.”
TERCEIRO PATAMAR
“Que sejam um! Meu pai, que eles estejam em nós assim como tu estás em mim e eu em ti.” (Evangelho de João: 17, 21)
No terceiro patamar o silêncio se torno abertura para Deus e evolui para a taciturnidade, que consiste numa atmosfera de recolhimento e não se reduz a apenas evitar pronunciar palavras. No recolhimento o monge vivencia aquela abertura para Deus: “Ele aguça a percepção para a presença de Deus como espaço em que nos movimentamos, e para a palavra de Deus que nos aponta o caminho.”
São Bento considera a humildade como a mãe da obediência e do silêncio: “E este silêncio, assim como a obediência, não é puramente vertical, ele é também horizontal. Aquele que no silêncio está aberto para a palavra de Deus, este também escuta as palavras do abade e dos confrades, este também é capaz de ver no próximo a presença de Deus.”
O silêncio é também o meio para a proteção da percepção de estar totalmente envolvido e perpassado pela presença de Deus: “Nós devemos fazer silêncio a fim de mantermos a abertura para a presença de Deus. [...] O silêncio é a atitude interior em que eu me abro para esta realidade do Deus que me envolve. Portanto ela é mais do que o não-falar.”
A atitude de calar não está fundamentada em um “princípio abstrato” nem direcionada a assumir “artificialmente [...] um certo estado de ânimo” para demonstrar a si mesmo “uma realização ascética.” Os monges “se calam porque experimentaram a Deus e não querem, falando, destruir esta experiência.”
O momento da morte provoca uma radicalização desta disposição de manter o silêncio. C. G Jung, ao envelhecer e se defrontar com a morte, escreveu: “Freqüentemente o falar torna-se em mim um tormento, e muitas vezes eu preciso calar-me vários dias a fim de me recuperar da futilidade das palavras. Eu estou de partida e só olho para trás quando não há outro jeito. Esta partida já é em si uma grande aventura, mas não algo sobre que se desejasse falar extensamente. [...] O resto é silêncio! A cada dia isto se torna mais claro, a necessidade de comunicação desaparece.”
Não se deve considerar o silêncio como invariavelmente recomendável. Ele o é quando não é apenas para meu descanso mas para buscar ativamente escutar a Deus - “quando me envolvo na aventura que me aguarda num honesto silêncio diante de Deus.”
O silêncio como escuta conduz ao silêncio como plenitude da oração. A oração se desdobra em quatro estágios: a leitura dos textos sagrados; a meditação quando se degusta a leitura do estágio anterior com o destaque de uma palavra ou frase que ressoou no íntimo e fica então sendo repetida interiormente; o diálogo silencioso estabelecido pela meditação da palavra que precipita a presença de Deus humanizada em Cristo, um estar Jesus e eu frente a frente; a contemplação em que cessam todas as imagens e o puro silêncio tudo envolve com o puro dom da presença de Deus.
Ess último estágio, a contemplação, não deve ser objeto de cobiça ou ansiedade e não é preciso se esforçar para alcançá-la. Como puro dom de Deus, a contemplação deve ser pacientemente esperada – ela confere ao silêncio o aspecto de “reação ao agir de Deus, e não um método para se rezar melhor.” Basta-nos perseverar nos três outros estágios anteriores da oração e não nos permitir ansiedade ou angústia por atingir o quarto estágio.
A experiência de Deus não é traduzível em palavras; sua expressão é naturalmente o silêncio: “[...] não se pode tagarelar à toa diante dos homens sobre sua experiência de Deus, mas carrega-se consigo a antevisão deste silêncio pleno como se fosse uma flor delicada, que não pode ser exposta aos rigores do vento.”
O silêncio pleno como dom de Deus não se alcança por meio de um treinamento. Antes trata-se de preparar o ambiente para receber a visita de Deus que, embora não esteja agendada, é confiantemente esperada: “Aquele que dia por dia se empenha pela honesta oração coral, por uma boa meditação, leitura e oração pessoal, este de tempos em tempos, como um presente de Deus, experimenta momentos cheios de silêncio.”
Meister Eckehart aborda a vivência do silêncio pleno na intimidade radical de nosso interior: “É na essência mais íntima da alma, na última centelha da razão, que o nascimento de Deus acontece. No que a alma pode oferecer de mais puro, de mais nobre e de mais delicado, é aí que ele deve acontecer: naquele profundo silêncio aonde jamais chegou qualquer criatura nem qualquer imagem.”
Nas idas e vindas de Deus, a alma aguarda serena como o cãozinho que dorme à soleira da porta de seu dono. Ali fica a alma a proteger a casa do dono que não sabe quando vai retornar. Apenas espera silenciosamente e sonha com a alegria da chegada: “Perseverar e esperar, suportar também a não experiência de Deus, desapegar-nos da solidez da terra firme, deixarmo-nos cair no amor de Deus, abrir-nos para a presença de Deus, sem a certeza de dela experimentarmos alguma coisa, é nisto que para os monges consiste o silêncio. É um silêncio ao mesmo tempo de experiência e de não-experiência, um silêncio pleno de sentido para a proximidade de Deus, é um silêncio esvaziado de todos os pensamentos e sentimentos humanos, um silêncio que ultrapassa toda experiência, um silêncio desapegado de toda busca de si mesmo e de toda experiência, um silêncio que se deixa cair confiantemente nos braços de Deus.”
A dificuldade em descrever esta experiência que também é não-experiência remete com muita freqüência à explicação do que o silêncio pleno não é. No último patamar não há mais como identificar o silêncio: aqui tudo se cala diante da visão resplandecente de Deus.