Resenha Crítica do Capítulo Sete do livro da "Monarquia à República
O TRÂNSITO DO TRABALHO ESCRAVO
PARA O TRABALHO LIVRE
O livro é de autoria da professora e historiadora Emilia Viotti, e aborda sobre a Historia do Brasil, período de transição entre a Monarquia e a República; contém 496 páginas que se divide em 11capítulos com temas diversos. Está na 6ª edição e o ano é 1999.
A autora nasceu em São Paulo, é formada pela Faculdade de Filosofa, Letras e Ciências Humanas de São Paulo, sendo livre docente pela mesma Universidade. Aposentou-se em 1969 pelo AI-5; lecionou em muitas Universidades dos Estados Unidos. É autora de diversas obras como: A Abolição, Da Senzala à Colônia, Interpretações Contraditórias, Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue, Rebelião de Escravos de Demerara, além de diversos artigos em revistas especializadas.
Nesse livro da Monarquia à República um clássico da historiografia brasileira
percebe-se claramente um conjunto de temas interligados que dão unidade à obra, relativos a História do Brasil. São revelados os motivos da fraqueza das instituições democráticas, assim como, a fragilidade da ideologia liberal, fazendo uma analise dos vários momentos que definiram a instauração do Brasil republicano, tentando compreender a origem do processo de marginalização de grandes setores da população do Brasil e esclarece os fatos históricos decorrentes da transição do regime monárquico ao republicano.
Debruça-se também sobre os problemas básicos do Brasil contemporâneo, como a marginalização política, econômica e cultural de grande parte da população brasileira em determinados momentos decisivos da nossa história. Revela que no período de 1822 a 1889, ocorreram muitas transformações que efetivamente não conseguiram provocar conflitos sociais mais amplos e significativos; ao contrário, o que se viu foi à perpetuação de valores tradicionais elitistas antidemocráticos e autoritários. Dessa forma a sobrevivência de estruturas de mando acabaram implicando na marginalização de imensos setores da população.
O capítulo determinado para essa resenha, O escravo na Grande Lavoura trata especificamente do escravo como principal força de trabalho desde o remoto tempo da colonização, as complexidades da relação senhorial e escravista, a escassez de mão de obra, o alto custo dos escravos, o sistema de parcerias, o fim do tráfego... E a gradual transição do trabalho escravo para o trabalho livre, iniciada no capítulo sete e abordada com especificidade no capítulo 8. Aliás, percebe-se em sua obra, certa alusão a determinado assunto, sendo o mesmo melhor detalhado no decorrer da leitura sob outro tópico. Dessa forma o leitor só precisa ter um pouco de paciência para continuar lendo até encontrar as respostas que irão fazer a complementação do que foi dito anteriormente. Para exemplificar, citemos sobre a imigração chinesa, no tópico, O tráfico interno e o deslocamento de escravos do norte para o sul do país, onde ela diz que,houve mesmo quem alvitrasse a utilização de coolies (1999). Já no tópico Tentativas Frustradas de Imigração chinesa, a autora retoma esse assunto de forma especifica.
Utiliza-se de outros autores para fundamentar a sua argumentação nos diversos tópicos. A sua narrativa não é linear, retoma a discussão anterior sempre que necessário sobre os acontecimentos históricos temporais da sociedade brasileira enfatizando: a crise do sistema colonial, o desenvolvimento das novas formas de capitalismo, o processo de emancipação política das colônias das Américas e o avanço das idéias liberais.
No início do século XIX, as antigas técnicas de domínio e exploração nas relações entre as colônias e as metrópoles foram substituídas. Estabeleceu-se um novo paradigma para os países onde se processou a revolução industrial, inicialmente na Inglaterra, pioneira desse processo e que, desejosos em vender seus produtos industrializados influenciaram a política e condenaram a escravidão. Para tanto, o sistema escravista passou realmente a ser condenado no momento em que os novos grupos desvinculados da Grande Lavoura apontavam todos os aspectos desfavoráveis da escravidão.
Sob a ótica de Emilia Viotti o escravo continuou em muitas partes, sendo a principal mão - de - obra, isso porque naturalmente, haviam importantes interesses ligados à escravidão, a exemplo da América do Norte que apesar da independência de suas colônias não obteve uma ruptura imediata, ou brusca mudança na sua economia até então tradicional. Afirma ainda, que o desenvolvimento da Grande Lavoura e o incremento do tráfego de escravos, foram favorecidos de certa forma, em alguns casos, devido ao desaparecimento dos antigos monopólios comerciais e, sobretudo, da incorporação dessas regiões ao mercado europeu.
A autora não faz aprofundamento detalhado e minucioso de pormenores, preferindo utilizar o termo alguns casos pensava-se... para substituir lugares, países, regiões..., pois não os situa, preferindo conduzir o leitor para o desenrolar dos acontecimentos que culminam por fim, no processo de abolição.
O longo percurso do processo de desagregação do sistema escravista foi bastante difícil. Na América ele foi diferenciado, realizado em algumas regiões de forma pacífica, e em outras, no entanto, as lutas sangrentas foram inevitáveis. Houve também diferenciação no seu processo evolutivo, haja vista, cada lugar, cada local especifico, possuir peculiaridades inerentes às condições econômicas, políticas, ideológicas e sociais próprias.
Portanto, sendo assim, a evolução para um trabalho livre foi dificultada, principalmente no Brasil, com a cultura do café.
No momento em que o país se organizava como nação independente, muitas contradições foram detectadas, evidenciando o distanciamento entre a teoria e a realidade. O direito à propriedade, por exemplo, demonstra claramente o absurdo dessa situação, visto que, em nome desse direito o país mantinha escravizado mais de um milhão de homens. Concomitante com essa situação incluía-se na Carta Constitucional de 1824, as fórmulas que a Declaração dos Direitos do Homem consagrava. As revoluções em nome da liberdade contradiziam-se com a permanência da escravidão e o direito à propriedade.
O sistema escravista foi criticado após a Independência pelos líderes, que formados pela educação européia, acompanhavam de perto os debates do parlamento britânico a favor do fim da escravatura. Esses senhores, influenciados pelo movimento iluminista francês (Ilustração), acreditaram na racionalidade, na eficácia da razão, pensavam que esclarecendo a opinião pública, se poderia dar um final à escravidão. Não tiveram sucesso imediato, pois a escravidão continuou por mais um período de cinco anos. O povo não conseguia se sensibilizar com o sofrimento do escravo, somente tempos depois isso veio a acontecer principalmente por alguns escritores mais ousados, lançaram propostas emancipatórias, com cláusulas de indenização, que consistia no reembolso dos prejuízos que o emancipador pudesse acarretar. A idéia de abolição foi assim, aceita pelo povo, e a coletividade antes apática, agora se tornava participativa. As palavras que até meados do século ressoavam em espaços vazios comoviam multidões e provocavam debates efervescentes entre os parlamentares. Estas ganharam força e poder capazes de proporcionar profunda mudança na estrutura social e econômica do país.
As condições criadas pela escravidão não permitiram a sobrevivência da estrutura familiar africana. A sexualidade tinha caráter livre dentro das senzalas, com a participação às vezes de brancos, oportunizando o aparecimento de uma população mestiça, que vivia em cativeiro. Nessa época, após a lei do ventre livre, um acórdão proibia ao senhor a venda dos seus filhos naturais obrigando-o a continuar com a mãe e os filhos como escravos.
Segundo Viotti, não houve suavidade no sistema escravista no Brasil, muito menos paternalismo por parte dos fazendeiros. Ao contrário:
A escravidão como instituição, possibilitava, exigia até, o domínio, a exploração do homem pelo homem, a violência e o arbítrio (...) a sorte do cativo dependeu sempre da riqueza e prosperidade do senhor, de sua maior e menor benevolência e humanidade. Que a vida dos escravos nas cidades era mais amena do que no campo, e núcleos urbanos, eles encontravam maiores possibilidades de emancipação e convívio. No campo, o arbítrio do senhor era lei, a as condições de trabalho mais penosas. (VIOTTI,1999, p.298)
Havia, portanto, diferenciações e particularidades entre os escravos dependendo de região para região, como ela mesma revela nessa mesma página, no quinto parágrafo, variava de região para região, e de fazenda para fazenda. Dizia-se que era melhor no Rio de Janeiro do que no maranhão e que em Campinas encontrava-se os piores senhores (1999). Percebe-se então certa contradição nesse aspecto e me pergunto: haveria em alguns casos particulares suavidade e benevolência? Pode-se generalizar dizendo-se que: os retratos do escravo fiel e do senhor benevolente que acabam fixando-se na literatura e na história, não passam de mitos forjados pela sociedade escravista para defesa de um sistema que julgava imprescindível? (1999).
O escravo do campo, vivia em situações precárias de alimentação, vestuário e assistência médica. Muitos senhores abandonavam os doentes, que passavam a mendigar pelas estradas e cidades. Os escravos domésticos viviam em melhores condições de vida. Seria essa uma forma de suavidade?
O nordeste passou a ser o maior fornecedor de escravos para as regiões cafeeiras, o que elevou o preço do escravo e se pensou na utilização da população livre, o que foi descartada, pelo fato do povo brasileiro ser considerado preguiçoso. Pensou-se então no sistema imigratório (parcerias), sendo que este não deu certo. Os colonos se sentiram explorados e os conflitos se acentuaram, deixando os senhores sem saberem como lidar com a mão de obra livre, desde quando só tinham aprendido a mandar. Ainda assim, a escravidão passou a ser vista como um verdadeiro entrave para promoção da desejada corrente imigratória. A posição de um grupo de fazendeiros, tanto do Nordeste como do Sul, totalmente desvinculado do sistema escravista e adeptos do abolicionismo, possibilitou a vitória final do deste, ao aderir às idéias de trabalho livre e se posicionarem contra a escravatura. No entanto, houve ainda resistências, a Grande Lavoura rotineira, tradicional, se opôs ao abolicionismo e como afirma Viotti,a abolição representou uma etapa do processo de liquidação da economia colonial do país, envolvendo uma ampla revisão dos estilos de vida e de valores da nossa sociedade (1999).
O livro é de grande valia para a historiografia brasileira, o capitulo resenhado especificamente, mostra toda a complexidade do sistema escravista, enigmas e evolução para o trabalho livre e o fim da escravidão. Considero esse assunto complexo, mediante visões diferenciadas, principalmente quanto à relação senhor x escravo no contexto do sistema escravista. Há controvérsias.
A última análise do capítulo remete ao processo abolicionista. É muito importante a afirmação da autora quando diz que não houve ruptura definitiva com o passado, além do mais, um novo modelo de colonização passou a surgir proveniente do desenvolvimento da economia cafeeira, vinculada às correntes industriais e capitalistas internacionais.
A leitura é estimulante, pois, trava constantemente um diálogo com o leitor, levando-o a reflexões e discordâncias, demonstrando abertura para releituras e redescobertas dentro do processo histórico. Não é uma obra fechada. E como diz a própria autora, a transição da sociedade senhorial para a empresarial, a melhoria das condições de vida do trabalhador rural, a emancipação real do país fazem parte de um processo em curso (1999).
Não há verdade absoluta, tudo pode ser mudado, mediante a visão do historiador, sua interpretação dos fatos, novas leituras, evidências, certezas, novos paradigmas.