A cor da ternura
(memórias - Geni Guimarães)
No Dicionário Aurélio Júnior, temos:
"Romance – Descrição longa das ações e sentimentos de personagens fictícios, numa transposição da vida para um plano artístico." (pág. 773)
"Novela – Narração, usualmente curta, ordenada e completa, de fatos humanos fictícios, mas, em regra, verossímeis." (pág. 618)
Observação nossa: o livro conta a vida da personagem, da infância à juventude – romance, portanto; todavia, fá-lo sem aprofundamentos psicológicos ou longas descrições – logo, novela.
Entendemo-lo como uma novela.
Por quê?
Porque a autora sintetizou fatos e situações, expondo apenas a sua essência, destacando os pontos altos da narrativa. Chamamos a isso resumo, síntese, brevidade, sinopse, sumário, concisão (graças à precisão seletiva das palavras).
Toda abordagem crítica, da exegese solene à mais humilde resenha, parte de reflexões e, se boa tal abordagem, nelas se perde: é o seu melhor, mais legítimo e superior destino.
Narrado em primeira pessoa, em linguagem despretensiosa, focando cenas cotidianas de um ambiente rural, o livro encanta pelas passagens que conduzem uma criança negra da inocência infantil ao entendimento juvenil. Seu amadurecimento, experiência, surpresas, suas enfim conclusões sobre as pessoas e o mundo ocorrem de maneira delicada, porém constante e contundente. Expõem inequivocamente a discriminação explícita, o preconceito velado, as ilusões da menininha e os sonhos da mocinha. Sonhos simples e que, afinal, se realizam.
Destaque para a impressão de que estamos vivendo sua vida, e não apenas lendo sobre ela – tal a naturalidade do estilo e a construção pé-no-chão dos personagens.
A narrativa reflete uma ambiente religioso, notadamente católico: "Foi por isso que me botaram uma correntinha com um crucifixo no pescoço, aconselhado pelo padre da igrejinha local." (35)
A linguagem, posto que comum, coloquial, possui requintes de poesia e sensibilidade artística óbvios, como à página 60, após o elogio da professora e do diretor à sua poesia: "Fui para casa feliz. Sabiás empoleirados na cabeça da alma."
Ou à página 67, após manifestação velada de preconceito coletivo, em sala de aula: "Que se enxugasse o fino rio a correr mansamente. Mas como estancá-lo lá dentro, onde a ferida aberta era um silêncio todo meu, dor sem parceria?'
Ou ainda, à página 69, evocando a mãe: "Eu ouvia sua voz distante, bravadoce. Bálsamo."
...Achamo-nos então na cândida encruzilhada "Macados me mordam!" e "Raios me partam!", ao concluirmos a leitura. O veículo: espanto. O livro é a história de todas as infâncias.
Impressionam a comunicação tão fácil, a singeleza de uma criança se narrando ao narrar fatos de sua modesta, rica, humilde, esplendorosa (porque ímpar) vida.
Impressionam ainda a excelência de seus dez capítulos, a leveza de veludo do estilo e o efeito catalisador do conjunto.
Novela ou poema em prosa? --- Ambos. Por que não?
Com competência e sensibilidade, a narradora-protagonista nos conduz a recantos secretos e repletos de emoções, através de reflexões líricas e delicadas evocações.
Expressando-nos mais objetivamente, verificamos que o enredo se passa num ambiente rural, de plantações e lavouras, onde vivem a jovem e seus familiares. Seu pai e irmãos trabalham na roça, sem muita clareza se são colonos ou proprietários. A pacatez da trama, sem grandes complicações ou maior complexidade, demonstra tratar-se de uma história destinada ao público infanto-juvenil. O que não significa ausência de densidade dramática.
Poderíamos aqui reproduzir "verdades vazias e perfeitas" (verso pessoano), como:
"um permanente nó na garganta"
"história levíssima"
"flores de perpétua emoção"
"reminiscências inolvidáveis"
"vales floridos da adolescência"
e outras tolices, mas humildemente ficamos com João Ribeiro e Rainer Maria Rilke; do primeiro, indicamos um artigo das "Páginas de Estética": 'Acerca da difícil simplicidade' e, do segundo, rememoramos versos das "Elegias de Duíno", que falam em sentimentos de "uma ternura imensa" diante das coisas "para sempre felizes" --- como livros bem escritos, primaveras, estrelas, anjos e Deus.
Impressão gráfica nítida e letras grandes.
Horrível a capa, ou melhor, o rosto da menina. Negro é lindo, e não esse esboço disforme. Choca. Só o rosto, porém.
Pareceram-nos as gravuras bem abaixo da qualidade do texto. Aconselhamos portanto à novelista que convide outro ilustrador, ou exija o melhor da atual --- tal como ela mesma se exige.
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Geni nasceu em 1947, numa fazenda, em São Manuel, interior paulista. Ainda infante, mudou-se para outra fazenda, em Barra Bonita, onde ainda mora e leciona.
Na adolescência, colaborou em jornais locais, publicando poesias, crônicas e contos.
Obras:
"Terceiro filho" (poemas) - 1979
"Da flor o afeto" (poemas) - 1981
"Leite do peito" (contos)
"A cor da ternura" (novela) - 1998.
Já participou de várias antologias poéticas.
Recebeu o Prêmio Jabuti (Autor-revelação), em 1990, e uma Menção Especial da UBE/RJ, em 1991.
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Sobre a ilustradora Saritah Barboza, em suas próprias palavras: "Venho de uma família de músicos, e meu pai é também artista plástico. Já participei de mais de dez exposições de arte. Acabei finalmente chegando até "A cor da ternura", que me traduz com a simplicidade e a negritude mais plenas."
Referências Livrográficas:
A cor da ternura, de Geni Guimarães. 96 pp.
12ª edição. Editora FTD, SP, 1998.
Leite do Peito (contos), de Geni Guimarães.
104 pp. 3ª ed. Ilustrações e Projeto Gráfico
de Regina Miranda. Mazza Edições, Belo
Horizonte, MG, 2001.
Dicionário Aurélio Júnior
Referências Webgráficas: (1)
A cor da ousadia - ET205 Notícias
(Jornal ET205)
http://www.palmares.gov.br/005/00502001.jsp?ttCD_CHAVE=710&btImprimir=SIM
(Perfil e obras de vários escritores negros da Literatura Brasileira)
www.letras.ufmg.br/literafro/
(UFMG – Literatura Afro-Brasileira)
http://www.ceao.ufba.br/livrosevideos/pdf/literatura%20afrobrasileira_cV.pdf
(“Literatura Infanto-Juvenil com Personagens Negros no Brasil”, de Ione da Silva Jovino
http://www.palmares.gov.br/005/00502001.jsp?ttCD_CHAVE=710&btImprimir=SIM
(Perfil e obras de vários escritores negros da Literatura Brasileira)
Notas:
1 – "Referências Webgráficas": termo adotado no ensaio de Maria Aparecida Salgueiro (UERJ – CNPq): “Diálogos com a Cultura Afro-Brasileira”.
2 – Escrito em 18/12/2007.
Modificado 22 vezes, até 14/11/2012.