Um sonho no caroço do abacate
Está pequena ‘novela’ de Scliar foi publicada no mesmo ano em que ele ingressou na ABL – Academia Brasileira de Letras. O livro fazia parte das obras indicadas pelo MEC para o PNBE e tinha como público os alunos da 8ª ano, última série do ensino fundamental à época.
A ficção parece refletir alguns aspectos da vida do próprio autor, e logo no início do livro ele comenta que todo escritor no começo de sua carreira, quase sempre inicia contando a ‘sua própria história’, e somente com o amadurecimento essa realidade vai sendo superada.
Destaco então algumas semelhanças entre a história pessoal de Scliar e os personagens e acontecimentos presentes no livro.
Scliar, tal como o personagem Mardoqueu, é judeu e filho de imigrantes da Europa do Leste. A família pobre, com pouquíssimos recursos e distante de parentes ou amigos ao chegar ao Brasil passa por inúmeras dificuldades, mas encontra apoio na comunidade judaica. Seja em Porto Alegre – para onde foi a família de Scliar, seja em São Paulo - onde se instalou a família de Mardoqueu.
Scliar, iniciou seus estudos numa escola judaica e nela permaneceu por quase 6 anos. Esse era um comportamento típico e esperado pela comunidade judaica local. O mesmo ocorre com Mardoqueu – sem precisar quanto tempo ele de fato esteve na escola judaica. De certo modo essa era uma forma de resistência à perda da identidade e, também uma proteção diante do preconceito e das violências vividas pelos judeus em vários lugares do mundo. Os ‘goi’ (não judeus) não eram confiáveis!
Scliar, ainda adolescente, transferiu-se para o Colégio Rosário, um educandário da Congregação dos Irmãos Maristas e, assim, continuou seus estudos numa escola renomada, ainda que cristã. Esse fato contribuiu para seu ingresso na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no curso de medicina. Lá ele se especializou como médico sanitarista.
Na ficção Mardoqueu, por insistência de seu pai deixa a escola judaica e passa a frequentar uma rigorosa escola católica o Colégio Padre Juvêncio (o Juva). Boa parte do livro descreve as agruras vividas por Mardoqueu e Carlos nesta escola. Os dois viviam cotidianamente racismo e preconceito religioso, um por ser judeu e o outro por ser negro e de origem baiana.
O livro começa com uma frase lapidar: “meus filhos não vão passar pelo que eu passei”. E a havia boas razões para que a família de Mardoqueu deixasse a Lituânia em 1939, além das costumeiras dificuldades vividas pelos judeus pobres (fome, precariedade) havia também o antissemitismo que não raro virava um pogrom (violência massiva contra judeus, destruição de casas, comércios e até sinagogas). Acrescenta-se a isso a chegada das nazistas ao poder na Alemanha.
Mesmo em meio a essa situação os familiares e parentes mais próximos preferiram permanecer na Europa, na esperança de que tudo brevemente iria voltar ao normal. Mas por lá quase ninguém sabia alguma coisa sobre o Brasil, a não ser que era um país tropical, e, para alegria da mãe de Mardoqueu, produtor de banana e abacate.
As frutas tropicais na Lituânia eram muito caras – e até hoje isso não mudou na Europa do leste – e o abacate fazia parte do sonho de consumo da mãe de Mardoqueu, e também de sua expectativa de dias melhores.
A maioria dos judeus, de origem pobre e que viviam nas grandes cidades do Brasil, eram mascates (vendedores ambulantes) ou, quando melhoravam de vida, abriam um pequeno comércio. Foi esse o caminho percorrido pelo pai de Mardoqueu: primeiro vendedor de gravatas, depois adquiriu um ponto de venda e montou sua ‘loja’, agora negociando também cuecas, meias, camisas...
O autor detalha os motivos que levaram a família a depositar em Mardoqueu suas diversas esperanças. O fato é que se esperava dele que fosse um bom judeu, piedoso e seguidor do judaísmo, que se casa-se com uma jovem judaica e, que prosperasse entre os seus. Quando seu pai o matricula num colégio católico instala-se um conflito e a incerteza quanto ao futuro.
No Juva (o colégio católico) a intolerância racial ocorre, não por parte da direção ou dos professores, mas a partir dos alunos. Hoje em dia ninguém teria duvidas em chamar a isso de bullying. Mardoqueu sofre preconceito racial – pois é judeu -, mas também religioso, já que os ‘judeus condenaram Jesus e o levaram a morte. Em mais de uma ocasião o autor ressalta que nem todos os alunos concordavam com o que estava ocorrendo.
Para completar a ‘decadência’ daquela escola, pouco tempo depois da entrada de Mardoqueu, os padres admitiram um aluno negro (baiano). Agora os dois são o alvo preferencial de chacotas, agressões físicas e assédio moral.
Com todos os elementos de uma boa ‘novela’, o autor aprofunda a trama ao inserir outras temáticas interessantes na vivência da amizade entre Mardoqueu e Carlos e, também na sanha de seus agressores: um concurso de pintura, o primeiro amor, uma crise familiar profunda, o preconceito e seu enfrentamento, mudanças estruturais na educação.
Assim, numa escrita leve e agradável Scliar conduz o leitor a perceber uma realidade que foi mudando no Brasil, e felizmente para melhor. Na educação colégios mistos (com meninos e meninas), na questão religiosa (maior tolerância e diálogo entre as religiões), na questão étnico-racial a superação de preconceitos (e até mesmo a criminalização do racismo).
O curioso é que somente quase no final do livro, o autor retoma o abacate – a fruta que de certa maneira convenceu a mãe de Mardoqueu a aceitar vir morar no Brasil –, agora na forma de sorvete e outras iguarias.
A mãe de Mardoqueu protagoniza a aceitação de mudanças em na sua vida: se permite conviver com Carlos e sua família (afrodescendentes), e, de modo geral diminui suas restrições aos ‘goi’. Uma certeza nos é dada pelo autor: “meus filhos não vão passar pelo que eu passei, dizia meu pai, e estava certo”. O final da narrativa não chega a ser um ‘e viveram felizes para sempre’, mas acena para realizações pessoais e coletivas e tudo isso embalado por algo que começou como ‘um sonho no caroço do abacate’.
É um livro pequeno (apenas 80 páginas), mas denso e de leitura prazerosa. Me recordei de situações que vivenciei na infância e adolescência. Venho de uma família que migrou de Minas para Brasília, sem parentes próximos e vivendo numa periferia. Além é claro dos dramas do primeiro amor, da violência e de outras dificuldades ao crescer em meio à pobreza.
Recomendo sua leitura não só para os anos finais do ensino fundamental, mas também para o Ensino Médio. O livro pode ser um ótimo subsídio ao debate e para trabalhos em grupos.
** Global. São Paulo. 2003. Coleção Literatura em minha casa. Vol. 3