Nostalgias canibais - Odorico Leal
Um bom livro com histórias irreverentes, brasileiríssimas, unindo realismo e fantasia, mas nem tanto assim fáceis de se apreciar
Odorico Leal - Nostalgias canibais, Belo Horizonte, Âyiné, 2024, 110 páginas
Nostalgias Canibais é o livro de estreia do piauiense Odorico Leal na ficção e foi considerado por vários críticos literários um dos melhores livros brasileiros de 2024. Ou o melhor de todos, para outros em algumas listas do gênero. Foi por isso que escolhi lê-lo, não sabia nada do autor e do livro antes.
Bem, para mim, a opção de colocar o melhor texto do volume, Paraíso Canibal, um conto longo (ou uma novela curta, se preferir) logo no início, pareceu provocar certo desequilíbrio no todo. Ao prosseguimos com a leitura dos contos restantes vemos que alguns não são tão atraentes quanto o primeiro e nos ressentimos um pouco.
Outra coisa: a ideia de um personagem atravessando séculos de nossa história já foi utilizada em um romance de 1977, o ótimo Os Rios Inumeráveis, de Álvaro Cardoso Gomes. Temos então que, de certa forma, as duas narrativas dialogam entre si um tanto, mas depois se distanciam outro tanto.
No livro de Cardoso Gomes o personagem não mantinha sempre a mesma aparência, como ocorre no conto de Leal, a de um indígena tupinambá. Ele se metamorfoseava em diversos seres (um boto, um escravo negro, um inconfidente, um poeta romântico, uma mulher etc.).
O indígena de Leal seria assim, nas palavras da editora Âyiné (complicado esse nome, hein?) "Um Macunaíma canibal [que] atravessa séculos e estados brasileiros, deixando-se levar pelos arroubos de cada época enquanto tenta saciar sua fome." Uma fome interminável, que não distingue amigos nem inimigos, e lá vão todos para o bucho do canibal.
Depois vem Os Gatos, uma narrativa estranha, a que menos me agradou porque não a entendi muito bem (não me esforcei para isso por preguiça mesmo). Curiosamente, ela gira em torno dos felinos que vivem num apartamento com sua dona e que têm nomes dos heterônimos de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. São mais que gatos: são dois críticos da trajetória de Andressa, a dona deles, arquiteta falida, e tecem especulações sobre o futuro despejo, que se aproxima.
Antes de passar para o terceiro conto, que é sobre feiúra, convém falar um pouco sobre Odorico Leal, reconhecido tradutor e pesquisador nordestino, também músico. Que pelos seus textos, repletos de citações e referências a diversas personalidades e áreas da cultura e do conhecimento, demonstra ser um sujeito bastante culto, erudito mesmo. Que, ainda por cima, toca violão e canta, como se pode ver nalguns vídeos na internet.
Leal é bem apessoado, ao contrário do personagem cearense que vamos encontrar em História da Feiúra. Que é a narrativa sobre um rapaz concurseiro, preocupado não apenas em ser aprovado em algum órgão de governo, fazer carreira ali, também com sua feiúra. Ainda mais depois de ter em mãos o célebre livro de Umberto Eco, de onde Leal tirou o título para o terceiro conto.
Quem seriam os Getulinhos, que são mencionados no quarto conto, A Febre Dioneia, um novo fenômeno político brasileiro? Uma jornalista tem de entrevistar o autor de um livro que ela não leu, um sujeito decadente, ressentido com o Brasil, país que considera impreciso, infernal e safado, em suas próprias palavras. E dioneia é a planta carnívora popularmente conhecida como apanha-moscas: ela pega e digere a presa animal, em geral insetos e aracnídeos. "Canibalismo vegetal"?
E terminamos o volume com O Jardineiro, que nas palavras de Walter Porto, editor de literatura da Folha de São Paulo, "amarra tudo o que veio antes"., as outras histórias. Daí foi que entendi que Paraíso Canibal não poderia ser o último conto, como pensei de início. Para Porto, O Jardineiro mostra "um homem que se vê num cenário de batalha campal entre militantes patriotas na [Avenida] Paulista e uma trupe de teatro orgiástica à la Teatro Oficina." Tudo muito antropofágico, brasileiro, complicado.