A expansão totalitária em escala global[1] provoca preocupações para com a continuidade do estado de exceção, que se faz regra, justamente porque se tornou permanente e autojustificativo. A política dos Estados Unidos da América ao longo do combate ao terrorismo, conceitualmente sustentada por John Yoo, professor em Berkeley, é da premissa um emblemático exemplo. O tema do estado de exceção, explorado por Carl Schmitt, para quem é no estado de exceção que se define um soberano, porque é este quem diz o direito, é assunto com o qual também se ocupou Giorgio Agamben, filósofo italiano, que já lecionou nos Estados Unidos. Para Agamben, o estado de exceção fez-se um paradigma de governo[2], no sentido que a expressão sugere na língua grega: um modelo. O assunto é explorado, direta ou indiretamente, por copiosa literatura[3].

 

Agamben reconhece a falta de uma teoria do estado de exceção objetivamente consistente no direito público contemporâneo[4]; não se definiu, ainda, se o estado de exceção seria questão de fato, ou problema jurídico, ainda que se compreenda que a matéria encontra-se em área de intersecção entre o jurídico e o político[5]. Transita-se em uma “terra de ninguém”, onde há a presença (e também a ausência) do direito público e do fato político[6]. O estado de exceção, prossegue Agamben, relaciona-se estreitamente com a guerra civil, com a insurreição e com a resistência[7]. Haveria, assim, um perigoso e impreciso contexto ideológico, de satanização, e ao mesmo tempo de canonização do estado de exceção.

 

O estado de exceção também resulta, segundo Agamben, da erosão dos poderes legislativos do parlamento[8], passivo e impotente, o que possibilita o ativismo da magistratura. No estado de exceção o executivo veste-se na qualidade de guardião da Constituição, na intuição de Carl Schmitt[9], situação que se realizou de modo fático na Alemanha do entre guerras, por força da aplicação do art. 48 da Constituição de Weimar[10].

 

Para Agamben o estado de exceção encontra raízes conceituais na figura do “institutos” do direito público romano clássico. Nessa situação, dois cônsules governavam com base em um decreto baixado pelo Senado[11]. Suspendiam-se direitos, uma vez reconhecida uma transitória situação que exigia enfrentamento, e que a refinada nomenclatura da casuística juspublicista romana denominava de tumultus, expressão mantida pelas línguas neorromânicas, com o mesmo sentido originário. Legalizava-se a ditadura[12].

 

O estado de exceção, assim, seria instrumento de combate a uma necessidade[13]. E é justamente aí que reside o perigo. Ainda que em sua feição contemporânea decorra da teorização do direito público da tradição democrático-revolucionária, e não da tradição absolutista[14] - - é um tema de Robespierre, e não de Hobbes - -  o estado de exceção, “impunemente, mediante a violência governamental, afasta o aspecto normativo do direito, eliminando-o”[15]. Assim, para Agamben, o totalitarismo faz do estado de exceção uma situação que apresenta um conteúdo aparente de legalidade[16]. Por isso, assusta-nos a passagem de Agamben, para quem, “o estado de exceção apresenta-se (...) como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo”[17].

 

Constata-se o oximoro da “ditadura constitucional”, formulado por Carl Schmitt; o estado de exceção permite que o executivo detenha plenos poderes, expressão que segundo Agamben decorre do “verdadeiro laboratório da terminologia jurídica moderna do direito público: o direito canônico”. No estado de exceção decretos são promulgados com força de lei[18]. Regula-se por lei o que não pode ser normatizado[19].

 

O estado de exceção revela-se, em seu sentido formal, como um espaço jurídico vazio[20], o que o descaracterizaria como instrumento de ditadura. Porém, as teorizações com as quais contamos não explicitam se o estado de exceção estaria dentro ou fora do ordenamento[21]. A suspensão do ordenamento vigente, para a garantia de sua sobrevivência, acentua Agamben, não suscita uma resposta a uma lacuna normativa; o estado de exceção “apresenta-se como a abertura de uma lacuna fictícia no ordenamento, com o objetivo de salvaguardar a existência da norma e sua aplicabilidade à situação normal”[22].

 

O estado de exceção revela-se como absolutamente perigoso, na medida em que anula o estado jurídico do indivíduo, a exemplo do que ocorrera com aquelas que foram alcançados por medidas de exceção norte-americanas[23]. Nesse sentido, anulando a “potestas”, isto é, o elemento normativo e jurídico da política, em favor da “auctoritas”, nomeadamente, o elemento anômico e metajurídico dos arranjos institucionais[24], o estado de exceção é o instrumento que denuncia a suspeita matriz comum entre democracia e totalitarismo, instâncias que o provocativo Agamben concebe em um contexto de íntima solidariedade[25]. 

 

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[1] A expressão é de Flávia Costa, em entrevista a Giorgio Agamben, publicada na Revista do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, vo. 18, nº 1, janeiro-junho 2006.

[2] Cf. Agamben, Giorgio, Estado de Exceção, Rio de Janeiro: Boitempo, 2004. Tradução de Iraci Poletti.

[3] Conferir, entre outros, Bercovici, Gilberto, Constituição e Estado de Exceção Permanente-Atualidade de Weimar, Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004. Em tema conexo, o estado de exceção particularmente no contexto da história constitucional alemã, Caldwell, Peter C., Popular Sovereignty and the Crisis of German Constitutional Law- The Theory and Practice of Weimar Constitutionalism, Durham: Duke University Press, 1997. Schmitt, Carl, Teologia Política, Belo Horizonte: Del Rey, 2006. Tradução de Elisete Antoniuk. Macedo Jr., Ronaldo Porto, Carl Schmitt e a Fundamentação do Direito, São Paulo: Max Limonad, 2001. Conferir também, Agambem, Giorgio, Homo Sacer- Sovereign Power and Bare Life, Stanford: Stanfor University Press, 1998. Tradução de Daniel Heller-Roazen. Durantaye, Leland de la, Giorgio Agambem- A Critical Introduction, Stanford: Stanford University Press, 2009, especialmente pp. 335-365.  

[4] Cf. Agamben, Giorgio, cit., p. 11.

[5] Cf. Agamben, Giorgio, cit., loc. Cit.

[6] Cf. Agamben, Giorgio, cit., p. 12.

[7] Cf. Agamben, Giorgio, cit., loc. cit.

[8] Cf. Agamben, Giorgio, cit., p. 19.

[9] Cf. Agamben, Giorgio, cit., p. 29.

[10] Cf. Agamben, Giorgio, cit., p. 23.

[11] Cf. Agamben, Giorgio, cit., p. 27.

[12] Cf. Agamben, Giorgio, cit., p. 75.

[13] Cf. Agamben, Giorgio, cit., p. 41.

[14] Cf. Agamben, Giorgio, cit., p. 16.

[15] Agamben, Giorgio, cit., p. 131.

[16] Cf. Agamben, Giorgio, cit., p. 13.

[17] Agamben, Giorgio, cit., loc. cit.

[18] Cf. Agamben, Giorgio, cit., p. 17.

[19] Cf. Agamben, Giorgio, cit., p. 22.

[20] Cf. Agamben, Giorgio, cit., p. 78.

[21] Cf. Agamben, Giorgio, cit., p. 38.

[22] Agamben, Giorgio, cit., p. 48.

[23] Cf. Agamben, Giorgio, cit., p. 14.

[24] Esses conceitos estão em Agamben, Giorgio, cit., p. 130.

[25] Essa percepção é encontrada em pergunta de Flávia Costa feita a Giorgio Agamben na entrevista acima citada. 

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 06/12/2024
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