O jurista alemão Rudolf von Ihering[1] (1818-1892), doutor pela Universidade de Berlin, convidado para lecionar em Leipzig e em Heildelberg, professor catedrático de Direito Romano em universidades da Suíça (Basiléia), da Alemanha (Kiel) e da Áustria (Viena)[2], proferiu memorável conferência nesta última, no ano de 1872. Esta conferência foi posteriormente publicada com o título de A Luta pela Direito- Der Kampf um’s Recht[3]; trata-se de um dos mais lidos e debatidos opúsculos jurídicos na tradição ocidental.
Nesse texto, curto, porém monumental, Rudolf von Ihering defende o afastamento do idealismo em favor de um certo naturalismo, culturalista, transitando da preocupação com o que se sonha para a obsessão com o que se realiza[4]. Rudolf von Ihering foi entusiasta da ideia de direito a partir de propósitos e de interesses, revelando-se um realista[5], em um contexto cultural muito influenciado por Charles Darwin[6] e por Herbert Spencer[7]. Tobias Barreto, e a Escola do Recife, mostraram-se como a versão brasileira desse modo de pensar.
Para Rudolf von Ihering, Direito e força se confundiam, porquanto o Direito se tornaria vazio, na medida em que desprovido de força[8]. Jurista de sólida formação romanística, que percebia no Direito alemão de seu tempo um Direito Romano atualizado, von Ihering deixou grandes contribuições para o Direito Privado (a exemplo do conceito de culpa in contrahendo – e consequente alargamento da responsabilidade contratual), bem como para o Direito Público (a exemplo de distinção entre infração jurídica objetiva e culpa)[9].
Ao longa de A Luta pelo Direito Ihering destaca e defende que a defesa do direito é um dever do interessado para consigo próprio (tema da primeira sessão ou, do primeiro capítulo) ou, de um modo mais abrangente, é também um dever para com a sociedade (tema da segunda sessão ou, do segundo capítulo). A frase de abertura da conferência (publicada em livro) é emblemática na caracterização de Ihering: “A paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para o conseguir”[10]. Isto é, o Direito busca a paz, fazendo-o por intermédio da luta. A premissa é válida para o indivíduo, sua classe e para o próprio Estado: “A vida do direito é uma luta: luta dos povos, do Estado, das classes, dos indivíduos”[11].
Luta e firmeza são as condições para a construção e a manutenção de direitos, que não são dados espontaneamente pela natureza; direitos são duramente conquistados e mais duramente ainda mantidos: “Todos os direitos da humanidade foram conquistados na luta: todas as regras importantes do direito devem ter sido, na sua origem, arrancadas àquelas que a elas se opunham, e todo o direito, direito de um povo ou direito de um particular, faz-se presumir que se esteja decidido a mantê-lo com firmeza”[12]. O Direito não se teoriza, se vive, é alcançado mediante força e luta: “O Direito não é uma pura teoria, mas uma força viva”[13]. É também de Ihering mais uma referência à conhecida metáfora da balança da Justiça, no sentido de que; “(...) a Justiça sustenta numa das mãos a balança e que pesa o Direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força brutal; a balança sem a espada é a impotência do Direito”[14].
A conferência é um convite à luta e à vigilância; para Ihering, “A paz sem luta, o gozo sem trabalho, nunca existiram senão no paraíso terrestre; a história só os conhece como o resultado de incessantes, de laboriosos esforços”[15]. De tal modo, a luta está para o Direito na mesma medida em que o trabalho está para a propriedade[16]. Diferenciando o Direito objetivo (como “conjunto de princípios jurídicos aplicados pelo Estado à ordem legal da vida”[17]) de direito subjetivo (como “a transfusão da regra abstrata no direito concreto da pessoa interessada”[18]), Iehring define que o objeto de seu estudo seja este último, o direito subjetivo, ainda que o Direito objetivo não fragilize a asserção feita, relativa à compreensão de que o direito seja na essência luta[19].
Ihering impugnava Savigny e Putcha, defensores do historicismo, que pregava o Direito como expressão viva da história, revelado também pela linguagem; Ihering defendia o Direito posto na lei, resultante de intensa luta, por parte dos interessados na fixação do Direito em norma que seria por toda a gente conhecida. Segundo Ihering, as convicções de Savigny e Putcha indicavam que a “(...) a formação do direito faz-se tão sutilmente, tão livre de dificuldades como a formação da linguagem; nem exige esforço, nem luta, nem sequer lucubrações – é a força tranquilamente ativa da verdade que sem esforço violento, lentamente, mas seguramente, segue a sua derrota; é o poder da convicção à qual se submetem as almas e que elas exprimem pelos seus atos”[20]. Ihering contestava essa visão idílica do direito, indicadora de que direito e linguagem seriam instâncias meramente históricas, concepção que recebera quando havia se formado em direito[21]; porém, a propósito dessa concepção romântica, pergunta
“É ela verdadeira? É preciso confessar que o direito, à semelhança da linguagem, admite um desenvolvimento, de dentro para fora, imperceptível, inconsciente, ou melhor; orgânico, para me servir de expressão tradicional. É a este modo de desenvolvimento que se ligam todas aquelas regras de direito que confia às relações civis a conclusão autônoma e uniforme dos atos jurídicos, da mesma maneira que todas aquelas abstrações, conclusões e regras que a ciência descobre pelo processo analítico nos direitos existentes e revela à sua consciência”[22].
À concepção de Savigny, centrada no direito como resultante da convivência e da contínua e pacífica formação da vida social, Ihering opunha visão realista, que de certa forma se identificava com a própria percepção que os alemães faziam de si mesmos, na parte final do século XIX[23], e logo após à guerra franco-prussiana:
“Todas as grandes conquistas que a história do direito registra: - a abolição da escravatura, da servidão pessoal, liberdade da propriedade predial, da indústria, crenças, etc., foram alcançadas assim à custa de lutas ardentes, na maior parte das vezes continuadas através dos séculos; por vezes são torrentes de sangue, mas sempre são direitos aniquilados que marcam o caminho seguido pelo direito. O direito é como Saturno devorando os seus próprios filhos; não pode remoçar sem fazer tábua rasa do seu próprio passado”[24].
No debate vivo entre os defensores da legislação e os defensores da revelação do direito como experiência e costume, Ihering defendia o direito legislado, o qual, afinal, também tinha como fonte a consciência nacional[25]; para Ihering, Savigny e seus seguidores ficavam apenas na época pré-histórica, sobre a qual não havia muitas informações[26]. O direito seria o resultado direto da luta, isto é, segundo Ihering, “pode afirmar-se sem rodeios: - a energia do amor com que um povo está preso ao seu direito e o defende, está na medida do trabalho e dos esforços”[27]. De tal modo, prossigo com Ihering, “a luta que exige o direito para desbrochar não é uma fatalidade mas uma graça”[28].
A medida certa decorre da reação que se tem quando se tem um direito próprio lesado. Pode-se se lutar pelo direito lesado, resistindo-se ao adversário, pode-se também covardemente entregá-lo ao opoente[29]; operação que decorre de um cálculo prévio, que aproxima e relaciona custos e benefícios:
“Qualquer que seja, afinal, a decisão, implica ela sempre um sacrifício. Num caso, o direito é sacrificado à paz; no outro, a paz é sacrificada a direito. A questão parece reduzir-se desde então, definitivamente, a saber qual é o sacrifício mais suportável, segundo as circunstâncias do fato e as condições individuais da pessoa. O rico renunciará, no interesse da paz, ao valor total do litígio que para ele é insignificante; pelo contrário, o pobre para quem esta quantia é relativamente mais importante, renunciará de preferência a paz. A questão da luta pelo direito reduzir-se-ia assim a uma pura operção matemática, na qual deveriam estabelecer-se por hipótese de uma e de outra parte as vantagens e os incovenientes, para se conformar qualquer decisão com o resultado”[30].
Constata-se alguma semelhança com o núcleo da chamada análise econômica do direito, e com a típica preocupação com o cálculo de custos e benefícios. Nesse sentido, “aquele que deixou cair um franco na água não despenderá nunca dois para o reaver; para ele a questão de saber quanto gastará nisso é um puro cálculo de aritmética[31]. Na semana que vem tratarei da aproximação entre Ihering e o darwinismo.
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[1] A grafia Ihering, com “I” é resultado da influência dos tradutores espanhóis do mestre alemão. O próprio Ihering escrevia seu nome com “J”, como, aliás, lê-se em sua certidão de nascimento. Conferir estudo introdutório em Iehring, Rudolf von, É o Direito uma Ciência? São Paulo: Rideel, 2005. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Conferir o prefácio de Diógenes Madeu.
[2] Cf. Sosa Wagner, Francisco, Maestros Alemanes del Derecho Público, Madrid e Barcelona: Marcial Pons, 2005, pp. 143 e ss.
[3] Entre as várias traduções que há para o português, destaco as versões de José Tavares Bastos (Porto: Livraria Chardron, 1810), também publicada no Brasil, Canoas: Livraria Vendramim, s.d., há também a de João Vasconcelos, São Paulo: Forense, 2006. A primeira edição da traudução de João Vasconcelos é de 1967.
[4] Cf. Stolleis, Michael, Public Law in Germany, 1800-1914, New York e Oxford: Berghahn Books, 2001, p. 429.
[5] Cf. Stolleis, Michael, cit., loc. cit.
[6] Conferir, em Darwin, o capítulo da Origem das Espécies no qual se trata da luta pela existência relacionada à seleção natural, especialmente no tópico da luta pela vida travada de modo mais feroz, quando a disputa se dá dentro da mesma espécie. Darwin, Charles, A Origem das Espécies, São Paulo: Martin Claret, 2004, pp. 89-106. Tradução para o português de John Green.
[7] Conferir, especialmente, o excerto O Homem versus o Estado, em Spencer, Herbert, Political Writtings, (ed. John Offer), New York: Cambridge University Press, 2001, pp. 59 e ss.
[8] Sosa Wagner, Francisco, cit., p. 143.
[9] Cf. Sosa Wagner, Francisco, cit., p. 145.
[10] Ihering, Rudolf von, São Paulo: Forense, 2006, p. 1. Tradução de João Vasconcelos.
[11] Ihering, Rudolf von, cit. loc. cit.
[12] Ihering, Rudolf von, cit. loc. cit.
[13] Ihering, Rudolf von, cit. loc. cit.
[14] Ihering, Rudolf von, cit. loc. cit.
[15] Ihering, Rudolf von, cit. p. 3.
[16] Cf. Ihering, Rudolf von, cit. loc. cit.
[17] Ihering, Rudolf von, cit. p. 4.
[18] Ihering, Rudolf von, cit. loc. cit.
[19] Ihering, Rudolf von, cit. loc. cit.
[20] Ihering, Rudolf von, cit. p. 5.
[21] Cf. Ihering, Rudolf von, cit. loc. cit.
[22] Ihering, Rudolf von, cit. loc. cit.
[23] Para uma abordagem dessa época, conferir Kent, George O., Bismarck e seu tempo, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982. Tradução de Lucia P. Caldas de Moura.
[24] Ihering, Rudolf von, cit. p. 7.
[25] Cf. Ihering, Rudolf von, cit. p. 9.
[26] Cf. Ihering, Rudolf von, cit. p. 9.
[27] Ihering, Rudolf von, cit. p. 11.
[28] Ihering, Rudolf von, cit. p. 12.
[29] Cf. Ihering, Rudolf von, cit. p. 14.
[30] Ihering, Rudolf von, cit. loc. cit.
[31] Ihering, Rudolf von, cit. loc. cit.