Em 1967 o livro Cem Anos de Solidão foi publicado em Buenos Aires. A tiragem, cerca de 8 mil exemplares, não antevia o imenso sucesso que a obra carregaria ao longo dos anos, ainda que todas as cópias foram vendidas, logo na primeira semana da edição. Cerca de 30 milhões de exemplares saíram das livrarias, nesses quase 40 anos da publicação desse desconcertante livro.

 

Seu autor, o colombiano Gabriel García Márquez, seguia os passos da  renovação literária sul-americana, linha à qual também pertenciam os argentinos Julio Cortazar e Jorge Luís Borges e o cubano Alejo Carpentier. Alguns matizam o grupo com as tintas de um modo realista fantástico de compor prosa moderna. Cem Anos de Solidão, na opinião de Pablo Neruda, poeta chileno, perderia em estatura e alcance, em lingua espanhola, tão somente, para o Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, o imortal escritor castelhano. Essas linhas e informações estão em todos os grandes jornais desta semana, nas notas e textos que tratam da morte de Gabriel García Márquez.

 

Barack Obama, Dilma Rousseff, Lula, Dona Marisa Letícia, Juan Manuel Santos, Luis Fernando Veríssimo, Roberto DaMatta, Nélida Piñon, Gilberto Gil, e tantos outros, lamentaram a morte do escritor colombiano, pranteando sua obra e influência em nossa literatura e visão de mundo. Lamentou também a morte do colega escritor o peruano Mario Vargas Llosa, que teria esmurrado García Marquéz, por acreditar que o inventor de Macondo teria se insinuado para sua esposa (ou por uma divergência política, segundo outros). Para Vargas Llosa, a propósito de García Márquez, “morreu um grande escritor cujas obras deram grande difusão e prestígio à literatura da nossa língua”. A indicação e o recebimento do Nobel de Literatura em 1982 confirma a assertiva. Gabriel García Marquéz é um dos consolidadores da prosa espanhola contemporânea, truísmo que se reproduz como homenagem a uma obra singular e a um escritor genial.

 

García Marquez estudou Direito e Ciência Política em Bogotá. Não concluiu os cursos. Dedicou-se ao jornalismo e à literatura de ficção. Memorialista também, aproximou passado e presente, mediando o encanto de uma prosa simples e ao mesmo tempo hermética, com raízes e lembranças que se perdem e que remontam à Guerra dos 1000 Dias, travada intestinamente na Colômbia entre 1899 e 1902.

 

García Marquez remete-nos, assim, aos tempos de Rafael Nuñez, Miguel Antonio Caro, Manuel Antonio Sanclemente, José Manuel Marroquin e outros personagens da República Granadina. Liberais e conservadores reproduziram na Colômbia a saga dos tories e whigs, porque os há em todos os lugares, inclusive no Brasil dos saquaremas e luzias. Os conservadores colombianos assimilaram as ideias do tradicionalismo europeu. Juan Donoso Cortés e José de Maistre foram os heróis intelectuais dos publicistas colombianos que se reuniam em torno do jornal La Civilización. Contra eles, os liberais, que compunham a troupe do jornal El Aviso, ideário que circundou em torno de nomes como Ezequiel Rojas e Vicente Azuero.

 

É nesse mundo que viveu o avô de García Márquez, o coronel Nicolás, que lutou ao lado do caudilho Uribe. O avô é alguma inspiração a José Arcadio Buendía, fundador de estirpe de personagens, que confunde o leitor menos atencioso, ao lado da não menos real e ao mesmo tempo imaginária Úrsula Iguarán. Não por acaso a avô de Gabriel chamava-se Tranquilina Iguarán.

 

Nos Cem Anos de Solidão, o medo que circundava a união entre primos, José Arcádio e Úrsula, se revelava na apreensão e na premonição de que a descendência nasceria com rabos de porco... O cigano Malquíades, doublê de profeta e de sábio, previu um pouco do que viria. Remédios, a mais bela entre as mulheres, que está em todas as Erêndiras, é encantador caráter que transita solitária e esquisita entre tantos outros personagens de Cem Anos de Solidão. A matriarca Úrsula, que por volta de 120 anos viveu, a todos conheceu. A terra natal de García Márquez, Aracataca, é a topografia inspiradora de Macondo, ao que se acrescenta uma imaginária cidade de William Faulkner, a quem o escritor colombiano tanto admirava. O Amor nos Tempos do Cólera, outro livro singular de García Marquéz, remete-nos a Florentino e Firmina, transposições literárias dos pais do escritor que faleceu esta semana.

 

Literatura e realidade, reminiscências e referências, ideias e fatos, são instâncias que se confundem e que se apartam nas páginas de literatura de primeiríssima qualidade que nos legou García Márquez. Ativista político, amigo de Fidel Castro, de Jorge Amado, elogiado por Bill Clinton (que o comparou a William Faulkner), Gabriel García Marquéz é o intelectual latino-americano que transcendeu o trauma do europeu colonizador, a quem se culpou pela espada, pela cruz e pela fome, que dizimaram as famílias selvagens.

 

A América Latina está de luto.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 05/12/2024
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