A chamada Era Militar alastra-se de 1964 a 1985, época difícil, truculenta, os chamados anos de chumbo, cujo ponto mais significativo dera-se com a edição do Ato Institucional 5.

 

Outorgou-se uma nova Constituição em 24 de janeiro de 1967. Quanto ao presidencialismo, dispôs-se que Poder Executivo seria exercido pelo presidente da República auxiliado pelos ministros de Estado. Extinguiu-se o voto direto e popular para indicação da chefia do Executivo. Dispôs-se que o presidente seria eleito por um colégio eleitoral, “em sessão pública e mediante votação nominal”.

 

O colégio eleitoral seria composto por membros do Congresso Nacional e por delegados indicados pelas assembleias legislativas estaduais. Cada assembleia estadual indicaria três delegados e mais um por 500 mil eleitores inscritos no Estado. No entanto, nenhuma unidade da Federação poderia indicar menos do que quatro delegados. Mantinham-se as atribuições presidenciais clássicas.

 

No entanto, em 1968, como reação do governo a uma negativa do Congresso a requerimento para que se processasse o deputado Márcio Moreira Alves, revidou-se com a suspensão das garantias democráticas: editou-se o Ato Institucional 5, de 13 de dezembro de 1968. Trata-se do mais autoritário documento político que se tem conhecimento na história do Brasil, em termos de hipertrofia do Executivo central. É o extrato mais agressivamente concentrador de poder em mãos do presidente da República.

 

Assinado por Costa e Silva, Gama e Silva, Augusto Rademaker Grünewald, Aurélio de Lyra Tavares, Magalhães Pinto, Delfim Netto, Mário Andreazza, Ivo Arzua, Jarbas Passarinho, Leonel Miranda, Costa Cavalcanti, Edmundo Soares, Hélio Beltrão, Afonso Lima, e Carlos de Simas, o AI-5 retoricamente se baseia numa série de consideranda apocalípticos.

 

Manteve-se a Constituição de 1967. Ao presidente se concedia o poder de decretar o recesso do Congresso Nacional, das assembleias legislativas e das câmaras de vereadores, por Ato Complementar, em estado de sítio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados por ele próprio.

 

Poderia o presidente também, em nome de um imaginário interesse nacional, decretar a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição então vigente. O presidente estava autorizado a nomear também interventores estaduais. Autorizava-se também ao presidente a suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

 

E ainda, mediante decreto, o presidente poderia demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade servidores públicos, assim como empregados de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando fosse o caso, vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço. Usou-se muito da prerrogativa.

 

A autoridade presidencial era intocável. Pelo AI-5, o presidente ganhava competência para decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo[1]. E ainda, o presidente poderia, após investigação, decretar o confisco de bens de todos quantos tivessem enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública, inclusive de autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem prejuízo das sanções penais cabíveis, na exata expressão do documento de exceção aqui analisado.

 

Suspendeu-se a garantia do Habeas Corpus, nos casos de crimes políticos, de crimes contra a segurança nacional, bem como nos casos de crimes contra a ordem econômica e social e contra a economia popular. Por fim, o ato excluía de qualquer apreciação judicial tudo o que em seu nome praticado.

 

A ditadura esgotou-se pela própria seiva e pela incapacidade de gerir os graves problemas que agitaram o país. Operou-se uma distensão “lenta, gradual e segura”, na expressão de um historiador e testemunha ocular:

 

“Após o governo Médici, ocorre forte inflexão da trajetória política e econômica do Brasil. Na economia, a nova realidade mundial decorrente da crise do petróleo obriga o país a substituir o dinâmico modelo econômico que vigorara até 1967. A velha restrição do balanço de pagamentos sobre o desenvolvimento da economia volta a se impor. O país vai enfrentar longo período de ajustamento, redefinição de prioridades, grave endividamento externo, flutuações de desempenho, dificuldades inflacionárias e, mais tarde, recessão. No campo político, a inflexão é no sentido de liberalização, processo que começa no Governo Geisel e se arrasta por doze anos, até o final do governo Figueiredo, em 1985, quando o país volta à democracia política, sob governo civil[2]”.

 

Ao fim do governo Figueiredo o colégio eleitoral que ainda operava (uma campanha em favor de imediatas eleições presidenciais com voto direto fracassou) elegeu o mineiro Tancredo Neves como presidente que, por complicações de saúde, não tomou posse, falecendo logo em seguida. Seu vice, o maranhense José Sarney, no entanto, leu ao Ministério um manifesto redigido pelo presidente eleito, mas não empossado, e ainda hospitalizado, no qual se retoma uma percepção positiva de unidade:

 

“O Povo brasileiro terá o Governo que exigiu e que não se teria viabilizado sem o seu apoio inequívoco. E sabem os seus Ministros que este será um só governo, que o Presidente não admitirá que se divida, que se desuna, que se descoordene e assim reduza a sua capacidade de agir na busca das soluções para os grande problemas nacionais. Como Presidente da República não fugirei a meu dever de estabelecer as diretrizes que presidirão os esforços da administração pública no cumprimento de sua missão (...) Os Ministros serão meus colaboradores na formulação dessas diretrizes e dessas políticas e, uma vez decididas, serão responsáveis por sua implementação, em um esforço para o qual não lhes faltarão jamais o apoio e o respaldo presidencial[3]”.

 

Esse fragmento de Tancredo Neves identifica os termos exatos de um presidencialismo de articulação institucional, aqui defendido. Falava-se de “um só governo”, que o “presidente não admitirá que se divida, que se desuna, que se descoordene’, o que reduziria “sua capacidade de agir na busca das soluções para os grandes problemas nacionais”; menciona-se que o presidente iria “estabelecer as diretrizes”, que os ministros seriam responsáveis pela formulação. Esse modelo não caracteriza autoritarismo, rigor ou qualquer ação de enfrentamento para com os demais poderes da República.

 

José Sarney governou, com a morte de Tancredo. Forte pressão popular redundou também na convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. O debate em torno da opção presidencialismo ou parlamentarismo foi retomado. Os constituintes optaram por um plebiscito, mais tarde realizado, e que apontou a definitiva vitória do sistema de governo presidencialista.

 

O presidencialismo, em princípio, realiza, na essência, o modelo de tripartição dos poderes, na medida em que isola o Executivo de um imediato controle do Legislativo. No modelo parlamentarista, por outro lado, os sistemas Executivo e Legislativo atuam conjuntamente, quando este último indica o chefe daquele primeiro. Porém, a fórmula de iniciativa privativa de algumas matérias de lei, em favor do presidente, subverte novamente o modelo, bem como na hipótese de medidas provisórias, mesmo depois da promulgação da Emenda Constitucional 32, de 11 de setembro de 2001. É este o modelo atual.

 

O presidente possui hoje mais poderes do que detinha, por exemplo, na Constituição de 1946; exemplifica-se com a possibilidade que tem, no sentido de solicitar urgência na apreciação de algumas matérias. E assim,

 

“O procedimento de urgência tem papel proeminente no processo legislativo brasileiro. A Constituição de 1988 fornece ao presidente o poder de conferir unilateralmente status de urgência a projetos de sua própria iniciativa, implicando que a Câmara e o Senado têm, sucessivamente, 45 dias para votá-los, período após o qual o projeto é automaticamente incluído na ordem do dia e a deliberação sobre outras leis é suspensa, de modo que a votação possa ser concluída (...)[4]”.

 

Roberto Mangabeira Unger apresentou convincente justificação para o fato de que houve a definitiva opção pelo presidencialismo, por parte do eleitorado brasileiro:

 

“Há muitos argumentos pseudo-eruditos em favor da implantação do regime parlamentarista no Brasil. O motivo mais forte do interesse, porém, é que a eleição presidencial faz a elite brasileira sofrer periodicamente susto intolerável. É o conflito eleitoral menos controlado e mais imprevisível, sobre o poder mais importante. Eles não aguentam mais. Melhor concentrar o poder na classe política e negociar soluções consensuais de governo, sem ter de contar com a possibilidade de surpresas desagradáveis nem ter de trabalhar para contê-las. O eleitorado rejeitou o parlamentarismo porque nele percebeu, tentativa de confisco da soberania popular[5]”.

 

O presidente enfrenta, às vezes, Congresso hostil, de quem deve se aproximar, de onde se origina o presidencialismo de coalização, na tipologia conceitual de Sérgio Abranches. E pode enfrentar também resistência interna, por setores ministeriais que defendem agendas distintas, e não conciliáveis, a exemplo de questões afetas a desenvolvimento sustentável e que dividem, de algum modo, o Ministério das Minas e Energia do Ministério do Meio Ambiente. E ainda enfrenta miríade de compreensões diversas, de um mesmo problema, o que aqui se denomina de vontades corporativas, com base em expressão e em conceito formulado por Rousseau.

 

Não se trata da defesa de um presidencialismo imperial. O que se vê, ao longo da experiência presidencialista brasileira é um quadro nítido. De 1889 a 1894 havia muita incerteza e muita cizânia interna. De 1894 a 1930 grupos agroexportadores fizeram da presidência instrumento de projetos localizados, de acumulação capitalista. De 1930 a 1946 viveu-se brutal ampliação da atuação presidencial, camuflada na divisão de benefícios trabalhistas e assistenciais.

 

De 1946 a 1964 a presidência tornou-se refém de projetos populistas, ainda que indicativos de algum nacionalismo e de um incipiente desenvolvimentismo. De 1964 a 1985 a presidência retomou um sentido de hipertrofia, sustentado na distribuição de benesses a um mandarinato. De 1985 a 1988 viveu-se intensa transição, marcada pela retomada de rumos.

 

De 1988 até os dias de hoje tenta-se definir um modelo presidencialista brasileiro que possa deter agilidade e instrumentos para atender às promessas feitas, e sagradas nas urnas. 

 

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[1] Ato Institucional nº 5, de 1968, art. 7º.

[2] Couto, Ronaldo Costa, História Indiscreta da Ditadura e da Abertura. Brasil: 1964-1985. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 1999, p. 133.

[3] Manifesto de Tancredo Neves, lido por José Sarney, na primeira reunião de Ministros do governo então empossado, in Bonfim, João Bosco Bezerra, cit., p. 345.

[4] Santos, Fabiano e Almeida, Acir, Fundamentos Informacionais do Presidencialismo de Coalizão, Curitiba: Aprris, 2011, p.44.

[5] Unger, Roberto Mangabeira, A Segunda Via – Presente e Futuro do Brasil, São Paulo: Boitempo Editorial, 2001, p. 124.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 05/12/2024
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