Em animado fragmento do delicioso texto “A Arte de Escrever” o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) afirmou que “a peruca é o símbolo mais apropriado para o erudito[1]”. A inusitada e emblemática imagem parece-me absolutamente verossímil, especialmente se aplicada à boa parte da literatura jurídica que lemos, citamos, reproduzimos, consumimos e criticamos.

 

A propósito da peruca dos eruditos, Schopenhauer afirmou que esses últimos são “homens que adornam a cabeça com uma rica massa de cabelo alheio porque carecem de cabelos próprios”[2]. Para o filósofo alemão o pensamento do erudito seria muito menos inflexão de ideia própria, genuína, nova, sincera, do que cópia do que já dito, falado, escrito, pensado, discutido.

 

Segundo Schopenhauer, “a erudição consiste num adorno com uma grande quantidade de pensamento alheios, que evidentemente, em comparação com os fios provenientes do fundo e do solo mais próprios, não assentam de modo tão natural, nem se aplicam a todos os casos ou se adaptam de modo tão apropriado a todos os objetivos”[3]. Não se poderia, assim, vincular a erudição ao pensar próprio. E ainda, os fios de cabelo dessa imaginária e hilária peruca não se “enraízam com firmeza, tampouco são substituídos de imediato, depois de utilizados, por outros pensamentos da mesma fonte[4]”.

 

Em muitos textos de sabedoria jurídica, essa constatação é possível. O direito tomou da teologia uma série de conceitos e métodos. Entre eles, a imaginária percepção de corpo doutrinário canônico, que se revela em textos hieráticos, atribuídos a quem denominamos de “doutrinadores”. O doutrinador é personagem oculto, ainda que onipresente e onisciente. Recebe elogios, apupos, é a fonte da sabedoria; é o oráculo que nos revela as minúcias da lei, ainda que preliminarmente discuta consigo mesmo se atenderá o legislador ou a mensagem da norma.

 

Havia uma importante lição nos livros de Introdução ao Estudo do Direito, a propósito do que metafisicamente denominamos de “fontes de direito”. Na referida lição, a “doutrina” é indicada como fonte do direito, ao lado da lei, da jurisprudência e do que então chamávamos de “princípios gerais de direito”. Essa lição precede aos tempos e ventos do neoconstitucionalismo; isto é, a Constituição não detinha ainda (ao menos explicitamente) os foros de referência maior de qualquer sistema normativo.

 

A doutrina é a obra dos eruditos. Ocorre, no entanto, que a proliferação dos meios de expressão, e refiro-me entre outros, a trabalhos acadêmicos, multiplicados a centenas com trabalhos de conclusão de curso, de algum modo, torna a todos, um pouco doutrinadores e eruditos, potenciais, putativos, ainda que sinceros e verdadeiros, muitos deles. Tem-se em extensão idêntica, não obstante em outro campo, o tema da reprodução da arte na era industrial, assunto que tanto impressionou Walter Benjamin, o filósofo da melancolia. Aplicativos de informática multiplicam artistas e estetas, da mesma maneira que multiplicam doutrinadores e eruditos.

 

A nota de rodapé é para o intelectual o que a ostentação é para o novo rico, nos diria Michel Foucault. A multiplicação das citações e das referências torna qualquer texto um simulacro de obra densa. No entanto, qual na imagem da peruca de Schopenhauer, carecemos de cabelos próprios, do mesmo modo que carecemos de ideias próprias. Incluo-me na lista.

 

Não há nada de novo sob o sol; é o que recorrentemente se colhe na sabedoria do Livro de Eclesiastes (1:9). Esse niilismo metodológico sugere compreensão que se aplica, com frequência, a várias instâncias da condição humana.

 

[1] Schopenhauer, Arthur, A Arte de Escrever, Porto Alegre: P&PM, 2005, p. 22. Tradução de Pedro Süssekind.

 

[2] Schopenhauer, Arthur, cit., loc.cit.

 

[3] Schopenhauer, Arthur, cit., loc.cit.

 

[4] Schopenhauer, Arthur, cit., loc.cit.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 04/12/2024
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