O acesso à cultura é um direito fundamental. E a premissa que orienta as reflexões vindouras decorre menos de formulação constitucional de feição presentemente dogmática do que de percepção pretensamente mais sofisticada, que vincula o direito à arte e a todas as manifestações que matizam a elevação do espírito humano. Neste último caso, tem-se instigante tese elaborada por Vasco Pereira da Silva, investigador português que leciona na Universidade de Lisboa[1]. Para o professor Vasco o direito à cultura tem natureza potestativa.
Naquele primeiro caso, cultura como expressão de direito fundamental, constitucionalmente fixada, a dicção do art. 215 da Constituição Federal, no sentido de que o “Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. E não se trata de norma meramente programática, a valer-me de uma nomenclatura em desuso, e que antecede à obra de Konrad Hesse[2], para quem a Constituição tem uma força normativa que lhe confere vitalidade.
E ainda, especialmente em nicho de direitos e deveres individuais e coletivos — inciso IX do artigo 5º — disposição dando conta de que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Mais uma vez, tem-se norma constitucional de eficácia também plena.
Há uma antiga prescrição de breviário de principiologia jurídica no sentido de que a outorga de fins garante a entrega dos meios. Orientação constitucional que prestigie e que garanta a todos o pleno exercício dos direitos culturais é cláusula de direito político cuja realização no plano concreto exige miríade de ações por parte do Poder Público. Isto é, assumindo-se que a cultura seja direito fundamental, até pela obviedade que a afirmativa enceta, enquanto ponto de partida para a argumentação, o chamado acordo entre fatos e verdades[3], tem-se que toda construção hermenêutica decorrente deva ser orientada para prestigiar a hipótese. No caso concreto, imunidade do livro eletrônico, qualquer linha interpretativa em âmbito de fomento de cultura deve, necessariamente, ter como pressuposto, e como meta, a realização superlativa e absoluta dos valores culturais[4].
É neste ambiente discursivo que se desdobra questão a propósito da imunidade tributária do chamado livro eletrônico. Há hipótese de não incidência constitucionalmente qualificada, imunidade, em relação a impostos eventualmente incidentes sobre livros, jornais, periódicos e papéis destinados a sua impressão.
A circunstância suscita dois caminhos, que definem uma opção hermenêutica. Pode-se aferrar literalmente ao conteúdo da norma constitucional, no sentido de que a prerrogativa alcançaria apenas o papel destinado a impressão de livros, jornais e periódicos, tal como enunciado. Ou pode-se ainda centrar-se na proteção da cultura, nada obstante os meios de divulgação. Esta última hipótese parece-me a mais razoável. E efetivamente é a única que fomenta opção pela cultura, enquanto direito fundamental.
Ao longo dos anos formatou-se jurisprudência relativamente ampliativa da dicção literal do dispositivo. Assim, garantiu-se a imunidade fiscal dos filmes destinados à produção de capas de livros[5], aos álbuns de figurinhas[6], ao papel fotográfico consumido no processo produtivo do jornal[7], aos filmes não impressionados[8], às listas telefônicas[9], entre outros. Por que não se dar continuidade a esta volatibilidade interpretativa?
O Supremo Tribunal Federal firmou posição no sentido de que a imunidade sobre o livro não pode ser estendida a outros insumos, que não compreendidos no sentido unívoco de papel destinado à impressão[10]. De igual modo, em outro julgado, no qual se discutiu a imunidade de chapas de gravação utilizadas na produção do jornal equivalem a papel fotográfico[11].
Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu também, embora a contrário senso, a proteção da cultura e da educação seria elemento preponderante na contextualização do regime de imunidades, atinentes ao livro[12]. Deve-se levar em conta também que há uma política nacional do livro, consignada em lei — refiro-me à Lei 10.753, de 30 de outubro de 2003 que, entre outros, define o que se deva entender efetivamente por livro.
Verifica-se, infelizmente, que se considera como livro, tão somente, os livros em meio digital, magnético e ótico, para uso exclusivo de pessoas com deficiência visual. O conceito de livro seria, em princípio, derivado de uma percepção clássica, isto é, o livro é texto escrito em ficha ou folha, não periódica, grampeada, colada ou costurada, em volume encadernado ou em brochura, como acima já reproduzido.
Por outro lado, dispôs-se também que cabe ao Poder Executivo criar e executar projetos de acesso ao livro e incentivo à leitura, ampliar os já existentes e implementar, isoladamente ou em parcerias públicas ou privadas, várias ações em nível nacional[13]. Intui-se, então, que apenas interpretação extensiva desta última regra é que poderia matizar o livro eletrônico enquanto tal, dado que esta modalidade de expressão é definida como livro, apenas na medida em que seja de uso exclusivo de quem quer que porte deficiência audiovisual.
Porém, é justamente neste ponto que se pode fixar o problema, e dele extrair-se a solução. Explico-me melhor. Todo o debate centra-se na definição de livro. E é justamente neste contexto que a discussão perde vigor. A interpretação jurídica sugere uma dimensão valorativa[14].
Pode-se constatar a inoperância da regra constitucional[15], na medida em que a valoração da cultura possa substancializar dimensão mais superlativa, comparada com regra constitucional originária que protege o papel destinado à impressão de livros. Deixemos de lado a discussão supostamente orientada para a ontologia do livro, e centremos o pensamento na axiologia da cultura. Pode-se ter um ganho que decorre de uma leitura prospectiva do direito.
A revolução tecnológica dos meios de informação[16] ensejou também uma nova concepção dos meios de veiculação da cultura. À concepção clássica de livro emerge, para todos os gostos, outras formas de expressão. E se é certo que a mensagem é mais importante do que o meio que a veicula, não se pode discriminar o meio, pena que se limitem as possibilidades de divulgação das mensagens.
Neste sentido, quer gostemos ou não, há um amplo mercado florescente de veiculação do conteúdo de livros, por meio cibernético. E sem que invoquemos questões óbvias de feição ambiental (livros de papel sacrificam mais o meio ambiente do que mensagens eletrônicas ou mídias de fácil manuseio), é chegado o momento para se repensar a imunidade tributária do papel destinado a impressão de livros, avançando, com a fixação da imunidade fiscal também para o livro eletrônico.
Tem-se que “nenhuma ordem institucional (...) pode ser neutra entre formas de vida; ela pende a balança numa direção ou noutra”[17]; no problema da imunidade do livro eletrônico não há neutralidade exegética que despreze o valor superior que a cultura representa.
Negar-se a imunidade aos livros em formato outro que não o papel convencional pode ser gravíssimo equívoco que revela desprezo para com a inovação institucional, bem como caprichosa atitude para com as várias manifestações que há, em nicho de revelação das produções culturais.
E porque a cultura é indubitavelmente um direito fundamental é que a imunidade relativa ao livro eletrônico deve ser reconhecida. Não se trata de mutação constitucional. Cuida-se, tão somente, de atitude realista que acomoda a dicção constitucional nos exatos limites dos superiores valores que a Constituição substancializa.
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Bibliografia
Castells, Manuel. The Rise of Network Society, Oxford: Blackwell, 2004.
Hesse, Konrad. A Força Normativa da Constituição, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes.
Nino, Carlos Santiago. Introdução à Análise do Direito, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. Tradução de Elsa Maria Gasparotto.
Perelman, Chaïm e Olbrechts-Tyteca, Lucie. Tratado da Argumentação- A Nova Retórica, São Paulo: Martins Fontes, 1996. Tradução para o português de Maria Ermantina Galvão G. Pereira.
Mangabeira Unger, Roberto. O Direito e o Futuro da Democracia, São Paulo: Boitempo. Tradução de Caio Farah Rodriguez e de Marcio Soares Grandchamp.
Silva, Vasco Pereira. A Cultura a que Tenho Direito- Direitos Fundamentais e Cultura, Coimbra: Almedina, 2007.
Soares, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e Interpretação Jurídica, São Paulo: Saraiva, 2010.
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[1] Silva, Vasco Pereira, A Cultura a que Tenho Direito- Direitos Fundamentais e Cultura, Coimbra: Almedina, 2007.
[2] Hesse, Konrad, A Força Normativa da Constituição, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991. Tradução para o português de Gilmar Ferreira Mendes.
[3] Perelman, Chaïm e Olbrechts-Tyteca, Lucie, Tratado da Argumentação- A Nova Retórica,São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 75. Tradução para o português de Maria Ermantina Galvão G. Pereira.
[4] A questão torna-se um dilema decisório reconhecido em núcleo de aparente choque de prescrições, o chamado conflito entre normas constitucionais. É o caso, entre outros, de interessante discussão a propósito das rinhas ou brigas de galo, na ADI 3776, relatada pelo Ministro Cézar Peluso, em julgamento de 14 de junho de 2007.
[5] AI 597.746-AgR, relatada pelo Ministro Sepúlveda Pertence.
[6] AI RE 178.893, relatada pelo Ministro Menezes Direito.
[7] RE 276.842-ED, relatada pelo Ministro Carlos Velloso.
[8] RE 203.859, relatado pelo Ministro Carlos Velloso.
[9] RE 101.441-RS, relatado pelo Ministro Sydney Sanches.
[10] RE 324.600- AgR, relatado pela Ministra Ellen Gracie.
[11] RE 244.698-AgR, relatado pela Ministra Ellen Gracie.
[12] RE 213.094, relatado pelo Ministro Ilmar Galvão.
[13] Art. 13 da Lei nº 10.753, de 30 de outubro de 2003.
[14] Cf. Ricardo Maurício Freire Soares, Hermenêutica e Interpretação Jurídica, São Paulo: Saraiva, 2010, p. 160.
[15] Cf. Nino, Carlos Santiago, Introdução à Análise do Direito, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, pp. 342 e ss. Tradução de Elsa Maria Gasparotto.
[16] Cf., por todos, Castells,Manuel, The Rise of Network Society, Oxford: Blackwell, 2004.
[17] Mangabeira Unger, Roberto, O Direito e o Futuro da Democracia, São Paulo: Boitempo, p. 31. Tradução de Caio Farah Rodriguez e de Marcio Soares Grandchamp.