Em 1954 o Ministério do Trabalho deferiu, com fundamento na equidade, pedido de procurador que atuava na Justiça do Trabalho, e que pretendia promoção na carreira. A questão chegou ao então Consultor-Geral da República, Themístocles Brandão Cavalcanti, que entendeu que naquele caso o princípio da equidade fora erroneamente aplicado. Escreveu esse notável jurista “que não se pode conceder por equidade aquilo que é contrário ao direito”[1]. Isto é, “a equidade supre um direito, humaniza a letra da lei, e, portanto, não se pode negar por direito e conceder por equidade”[2] .

 

Havia lei que vedava o benefício, que fora concedido por equidade, pelo que, concluiu Themístocles, não se poderia conferir por equidade o que a letra da lei negava em sua bruta literalidade. Essa construção lógica, seca até, é uma das características do pensamento de Themístocles Cavalcanti.

 

Sobrinho do diplomata e escritor Graça Aranha, Themístocles nasceu no Rio de Janeiro, em 14 de outubro de 1899[3]. Formou-se em Direito em 1922, na Faculdade de Direito do Catete, na mesma turma de Anísio Teixeira, Ari Franco, Vicente Falconi[4]. Ao longo da década de 1920 advogou intensamente para os tenentes, jovens oficiais do Exército que fizeram forte oposição a Epitácio Pessoa e a Artur Bernardes, principalmente.

 

Ativo na oposição, Themístocles aderiu às forças da Aliança Liberal em 1930, posicionando-se ao lado de Getúlio, na pregação e na ação contra os vícios da República Velha, que Washington Luís tanto encarnava. Com a vitória, Themístocles foi nomeado procurador de um tribunal especial que então se organizou, e que tinha por objetivo julgar eventuais irregularidades cometidas no governo de Washington Luís, último presidente da República do Café com Leite.

 

Foi o início de uma ascensional carreira pública, alavancada no ano seguinte, em 1931, quando Themístocles foi por Getúlio nomeado Procurador da República. Para isso, provavelmente, contribui a amizade de Themístocles com o brigadeiro Eduardo Gomes e com Pedro Ernesto, que foi prefeito no Distrito Federal. Em 22 de maio de 1945 Themístocles foi nomeado Consultor-Geral da República, substituindo a Hahnemann Guimarães, que fora para o Supremo Tribunal Federal, a quem lá substituirá mais de 20 anos depois. Esteve à frente da Consultoria-Geral por pouco tempo. Em 20 de fevereiro de 1946 foi substituído pelo jurista potiguar Miguel Seabra Fagundes. Voltará mais tarde.

 

No ano seguinte, em 1947, foi nomeado Procurador-Geral da República pelo Presidente Eurico Gaspar Dutra, também por um pequeno interregno: ficou até 1947. Tratou de vários temas eleitorais, ficando, inclusive, à frente da Procuradoria-Geral Eleitoral. À época, manifestou-se contrariamente à cassação do Partido Comunista do Brasil, ainda que o PCB tenha sido mais tarde cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral.

 

Em 1955 voltou à Consultoria-Geral da República, como Consultor-Geral, nomeado por João Café Filho. Data desse época, entre outros, substancial parecer sobre providências que deveriam ser tomadas a propósito da mudança da capital para o Planalto Central[5]. Respondia-se a um ofício do governo do estado de Goiás e dos integrantes da bancada goiana do Senado e da Câmara. Pretendiam os requerentes que se homologasse, por intermédio de um decreto executivo, o local da futura capital. Ato do Congresso Nacional já havia fixado a região da sede do governo. Concluía que, uma vez de que decretada a utilidade e necessidade pública da área fixada, deveria o governo pedir os necessários créditos ao Congresso Nacional, bem como autorização para entrar em acordo com o estado de Goiás.

 

Há também registro de parecer que fixou o conceito de imunidade fiscal, a propósito de uma análise de incidência de contribuição de melhoria, por parte da prefeitura municipal de Porto Alegre, em relação a hospital federal que funcionava na capital do Rio Grande do Sul[6]. Concluiu que a contribuição de melhoria se assemelhava às taxas, que não era imposto, e que, assim, não era alcançada por regra de imunidade. De tal modo, fixou que a imunidade fiscal que a Constituição contemplava reciprocamente às pessoas jurídicas de direito público, e respectivos órgãos e entes, não se referia a taxas e a contribuições de melhoria. Somente tocava aos tributos não vinculados, uti universi, isto é, aos impostos. É o entendimento até hoje prevalecente.

 

Themístocles Cavalcanti revelou-se também como adiantado estudioso de nosso federalismo, o que se comprova com parecer relativo à concessão de terras pelos governos estaduais, no que se consignavam os limites de interferência do governo federal[7]. Concluiu que a União detinha competência “bastante ampla em matéria econômica para reduzir os efeitos de determinada política econômica dos estados que prejudiquem a política econômica do país, sem que para isso seja [fosse] preciso ferir as autonomias estaduais”.

 

A partir do golpe de 1964, participou de uma comissão responsável pela concepção de uma nova Constituição, ocasião em que trabalhou ao lado de Gama e Silva, Random Pacheco, Hélio Beltrão, Carlos Medeiros Silva e Miguel Reale[8]. Ao longo do governo Costa e Silva trabalhou em projeto semelhante, com Levi Carneiro, Orozimbo Nonato e Miguel Seabra Fagundes[9]. Nesse sentido, há alguma alusão, especialmente em Elio Gaspari, da fixação de Themístocles Cavalcanti com o regime militar, do qual, nessa superficial alusão, poderia ter sido um dos mais expressivos juristas.

 

Em 1967 foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal. Foi uma época difícil, de fortíssima pressão política, e de distanciamento do STF com uma agenda mais democrática. Sua nomeação foi feita em 6 de outubro de 1967, pelo então presidente Costa e Silva. Sucedera a Hahnemann Guimarães, que naquele ano se aposentou. Themístocles foi ministro do STF até 14 de outubro de 1969, quando, aos 70 anos, foi atingido pela compulsória. À época, Oswaldo Trigueiro presidia o STF. O AI-5 expurgou do STF Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Em sinal de protesto por essa intromissão do Executivo demitiram-se Antônio Gonçalves de Oliveira, então presidente, e seu vice, Antônio Carlos Lafayette Andrada[10].

 

Professor no Rio de Janeiro, Themístocles nos deixou importantes obras jurídicas, com profundos estudos sobre o mandado de segurança (1934), estatuto dos funcionários públicos (1940), bem como um precioso Curso de Direito Administrativo[11]. Neste último, tratou das relações e fontes do Direito Administrativo, estudando seus atos e contratos, cuidando também da responsabilidade do Estado, da intervenção estatal e do poder de polícia. O jurista carioca tratou neste livro também sobre águas, riquezas do subsolo, serviços públicos, autarquias, sociedades de economia mista.

 

Há ampla preocupação para com as concessões de serviços públicos, com os bens públicos e, especialmente, com o tema da desapropriação. Lapidar e transcendente no tempo sua definição de Direito Administrativo, no sentido de que este ramo do direito seja “o conjunto de princípios e normas jurídicas que presidem ao funcionamento das atividades do Estado, à organização e ao funcionamento dos serviços públicos, e às relações da Administração com os indivíduos”[12].

 

Deve-se registrar a contribuição acadêmica de Themístocles Cavalcanti também no que se refere à direção de duas importantes revistas científicas, a Revista de Direito Público e Ciência Jurídica e a Revista de Ciência Política, ambas publicadas pela Fundação Getúlio Vargas. Themístocles Cavalcanti morreu no Rio de Janeiro em 19 de março de 1980.

 

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[1] Consultoria-Geral da República. Parecer de 17 de agosto de 1955.

[2] Consultoria-Geral da República. Parecer de 17 de agosto de 1955.

[3] Os dados biográficos de Themístocles Brandão Cavalcanti foram colhidos em Alzira Alves de Abreu (org.), Dicionário Histórico-Biográfico pós-30, Rio de Janeiro: FGV, 2001, pp. 1289, 1292, bem como no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal, www.stf.jus.br, acesso em 20 de outubro de 2013.

[4] Cf. SANDRONI, Cícero e SANDRONI, Laura Constância, Austregésilo de Athayde, o Século de um Liberal¸ Rio de Janeiro: Agir, 1998, p. 196.

[5] Consultoria-Geral da República. Parecer de 26 de julho de 1955.

[6] Consultoria-Geral da República. Parecer de 12 de outubro de 1955.

[7] Consultoria-Geral da República. Parecer de 16 de maio de 1955.

[8] Cf. GASPARI, Elio, A Ditadura Escancarada, Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2002, p. 75.

[9] Cf. SKIDMORE, Thomas, The Politics of Military in Brazil- 1964-85, New York and Oxford: Oxford University Press, 1989, p. 56.

[10] Cf. GASPARI, cit., p. 228.

[11] CAVALCANTI, Themístocles Brandão, Curso de Direito Administrativo, Rio de Janeiro e São Paulo: Freitas Bastos, 1958.

[12] CAVALCANTI, Themístocles Brandão, p. 23.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 03/12/2024
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