Porque parece haver suspeito conceito historiográfico que exige algum distanciamento no tempo, para que se possa compreender a ação dos homens, é que frequentemente hesitamos na formulação de juízos de valor. O revisionismo (reformulação de juízos históricos comumente aceitos) e o conformismo (aceitação pura e simples de conteúdos compartilhados pela experiência social) constroem um escudo que nos veda qualquer estímulo para a problematização de instâncias relativamente recentes. Enfrentemos o problema.
Do ponto de vista das construções biográficas essa aporia parece marcar qualquer tentativa de mera referência, entre outros, a Alfredo Buzaid, político e jurista brasileiro, processualista, ministro da Justiça do governo Médici, e que suscita o mais radical dos maniqueísmos. É dessa enigmática figura, formulador do Código de Processo Civil de 1973 e obstinado defensor do Ato Institucional 5, de dezembro de 1968, que seguem as observações vindouras.
Buzaid foi um homem do século XX, marcado pelos fantasmas de uma guerra suja (que efetivamente protagonizou quando ministro da Justiça no governo Médici), ao mesmo tempo dulcificado por robusta carreira de professor e de reformador de leis. Pode-se separar a ação política da ação docente? Pode-se separar a lição dogmática do mestre reformador da atuação pragmática do homem público descompromissado com a emancipação humana por meio da prática democrática? Pode-se separar o compromisso científico do fundador do Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil de quem negara formalmente que não havia tortura e presos políticos no Brasil, em 1970, exato ano em que publicou livro em tema da defesa da moral e dos bons costumes?
Indicado por João Baptista Figueiredo para uma cadeira do Supremo Tribunal Federal, em 1982, Buzaid enfrentou violenta oposição da Ordem dos Advogados do Brasil. Aprovado pela Senado, vestiu a toga por dois anos; aposentou-se aos 70 anos. Buzaid nasceu em Jaboticabal, estado de São Paulo, em 20 de julho de 1914[1].
A carreira de Buzaid enquanto estudioso, processualista e professor de Direito foi de intensa atuação. Estudou na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no primeiro lustro da década de 1930. Em 1935 cursou uma especialização em processo civil, quando se aproximou de Enrico Tulio Liebemann. É o núcleo da escola processualista de São Paulo, marcada por forte influência da doutrina italiana, para cá transportada pelos perseguidos do regime de Mussolini.
Alguma análise apressada sugeriria muita contradição. Afinal, Buzaid militou com os integralistas, conviveu com Plinio Salgado, comungou da ideologia do Deus, Pátria, Família; o integralismo continha matizes metafísicos, dizia-se movimento prioritariamente de cultura, pretendia guiar o povo-criança, que precisa educar e vigiar[2]. Inegável alguma convergência conceitual entre os camisas-verdes daqui e os camisas-escuras de lá. Buzaid liderou uma corrente no governo que pretendia uma retomada de arranjos corporativistas, o que confirmava a persistência com o vínculo da doutrina integralista[3].
Em 1945, em tese de livre-docência, Buzaid dissertou sobre o agravo de petição. Em 1952, venceu concurso na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com tese sobre o certame de credores no processo de execução. Em 1957, alcançou cátedra na Universidade de São Paulo com tese sobre ação renovatória de contratos de locação de prédios destinados a fins comerciais ou industriais. No ano seguinte, fundou o Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil, empreitada que dividiu com Galeno Lacerda, Frederico Marques e Luís Eulálio Bueno Vidigal. Em 1960, fundou a Revista do Direito Processual Civil.
Em 1966, dirigiu a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Assumiu a reitoria por duas vezes. Fortíssima sua ligação com São Paulo, estado natal, em cujas fileiras lutou como voluntário, em 1932, no movimento que repudiou Getúlio Vargas.
Em 1969, Médici o levou para o Ministério da Justiça. Em 1973, aprovou-se o Código de Processo Civil, cuja exposição de motivos é mais do que uma explanação prévia do texto. Substancializa sua doutrina, focada no conceito de lide, formulado por Carnelutti, para quem o processo contemplava conflito de interesses qualificado por pretensão resistida. Seu trabalho com a reformulação de nosso Direito começara em 1967, quando Gama e Silva lhe incumbira de rever inúmeros textos normativos então em vigor.
Buzaid defendera obstinadamente o Ato Institucional 5, resultado imediato da negativa da Câmara em processar o deputado Márcio Moreira Alves[4]. Insistia que eventual tortura qualificava caso isolado, que não revelava política de Estado[5]. Contrapôs-se a Hélio Bicudo, então promotor público de São Paulo que corajosamente denunciou o Esquadrão da Morte[6].
É justamente esse lado, de intensa ligação com o regime militar, e que se descortina também em entrevista que Buzaid dera à revista Veja, em dezembro de 1969, que insinua a ligação do processualista e depois ministro do Supremo Tribunal Federal, com violações de direitos humanos, de tão triste memória.
É essa aparente ambiguidade, que contemplou na mesma personalidade o processualista e o ministro da Justiça do regime de exceção, que desafia qualquer tentativa de interpretação coerente da alma humana. Buzaid faleceu em São Paulo, em 9 de julho de 1991.
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[1] Os dados biográficos de Alfredo Buzaid, especialmente quanto a trajetória acadêmica, foram colhidos no Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós-1930, coordenado por Alzira Alves de Abreu, editado pela Fundação Getúlio Vargas, 2001, pp. 888-891.
[2] Cf. CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro, Integralismo- Ideologia e organização de um partido de massa no Brasil (1932-1937), Bauru: Edusc, 1999, pp. 40 e ss.
[3] Cf. SKIDMORE, Thomas, The Politics of Military Rule in Brazil- 1964-1985¸ New York: Oxford University Press, 1989, p. 150.
[4] BRANCO, Carlos Castello, Os Militares no Poder- de 1964 ao AI-5, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007, pp. 597e ss.
[5] Cf. GASPARI, Elio, A Ditadura Escancarada, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 290.
[6] Cf. BICUDO, Hélio, Minhas Memórias, São Paulo: Martins Fontes, 2006.