O pensamento jurídico brasileiro deve a Silvestre Pinheiro Ferreira elementos de direito público, de feição liberal, jusnaturalista e utilitarista. Certamente, um liberalismo ajustado aos projetos da monarquia portuguesa, pressionada pelo imperialismo inglês, pelas oscilações da política francesa (esta por sua vez muito instável, dado o jogo entre realistas, jacobinos e girondinos), por problemas específicos da colônia, que decorrem de um desajuste mais amplo, qualificado pela crise do antigo regime, de fundo ideológico iluminista e liberal. A profissão de fé liberal de Silvestre Pinheiro Ferreira pode ser identificada no sentir laudatório que este pensador do direito emite no que toca ao trabalho humano:
A propriedade de tudo quanto seja o fruto do nosso trabalho funda-se em dois motivos de utilidade geral, base de todos os direitos dos homens, a saber: 1º Porque, se esse direito não fôsse respeitado, ninguém se submeteria às incomodidades do trabalho, porquanto se ficaria sujeito a frustrações. 2º Porque, não havendo nada de mais natural do que repelir pela força a violência de quem intentasse privar-nos do fruto dos nossos labores, os homens viveriam permanentemente em estado de guerra, como acontece com os povos selvagens[1].
Silvestre Pinheiro Ferreira parece pensar como Adam Smith, para quem “o produto do trabalho constitui recompensa natural ou pagamento por este trabalho”[2]. Ainda, como os utilitaristas, vincula a propriedade e o fruto do trabalho a motivos que nomina de utilidade geral. Concomitantemente, proclama respeito a este direito de propriedade, resultante do trabalho, subsumindo-o a uma ética jusnaturalista, dado que ao homem seria natural repelir pela força investidas contra a propriedade que radica no labor.
Segundo Jorge Cernev, Silvestre Pinheiro Ferreira fora um incompreendido, de modo que seu pensamento caíra no esquecimento. De tal maneira,
Apesar de Silvestre Pinheiro Ferreira ser considerado hoje como um dos principais teóricos europeus do liberalismo político em seu tempo, o seu esforço não frutificou, na medida desejada, nem na filosofia, nem na política, nem no campo social. Isto porque o país não estava preparado para compreendê-lo (...) ficou incompreendido e seu nome caiu no mais injusto esquecimento (...)[3].
Em seu Manual do Cidadão em um Governo Representativo de Princípios de Direito Constitucional, Administrativo e das Gentes, Silvestre Pinheiro Ferreira explicita seus conceitos e ideias de direito. Assim, por exemplo, segundo ele, “chama-se direito a todos os cômodos de que o homem pode gozar sem ofender a lei do justo, e dá-se o nome de deveres a todos os incômodos que por essa mesma lei lhe são impostos”[4]. Esta antinomia entre direitos e deveres, qualificando-se aqueles como cômodos e estes últimos como incômodos é certamente original.
No que toca aos direitos naturais, Silvestre Pinheiro Ferreira os define como “os de segurança pessoal, de liberdade individual e de propriedade real, que pertencem a todo o homem, e se chamam naturais por serem inerentes à sua natureza, e inauferíveis porque ninguém o pode deles esbulhar”[5].
Por lei, Silvestre entende “o mandamento ou preceito que determina o que se deve fazer ou omitir”[6]. Ainda, por pacto social o aludido pensador entendia o “consentimento expresso de uns, e tácito de outros, às leis tanto fundamentais como constitutivas do Estado”[7].
Silvestre também presumia uma responsabilidade de cunho moral, que segundo ele, “consiste em cada um estar sujeito a que o seu procedimento seja aprovado ou reprovado por quaisquer pessoas capazes de o avaliarem com conhecimento de causa; responsabilidade inerente a todo o ato humano, e de que ninguém é, nem pode ser isento”[8]. No que toca, por exemplo, ao gravíssimo problema da corrupção, Silvestre afirmava que a publicidade seria o meio mais eficaz de se impedir suas supostas seduções[9].
Silvestre discutia no século XIX a questão da obrigatoriedade do voto, contrapondo a norma que ordena o sufrágio com os interesses particulares das pessoas. E afirmou:
Os direitos ou poderes políticos não são uma faculdade criada pela lei do Estado para proveito individual do cidadão, mas sim a bem dos interesses da comunidade. É um dever a que se deu o nome de direito ou de poder, só porque é destinado a criar outros direitos e outros deveres. Seria pois faltar a seu dever, e trair a fé dos seus contratos deixar de exercer as funções inerentes a este cargo. Um eleitor que se abstivesse de votar pelo receio de prejudicar os seus interesses cometeria uma ação tão vil como o soldado que abandonasse o seu posto por medo[10].
A teoria constitucional de Silvestre Pinheiro Ferreira concebia um Poder Conservador cuja atribuição seria “fazer guardar os direitos que competem a cada cidadão, e manter a independência e a harmonia de todos os outros poderes políticos, afim de que os agentes de um não usurpem as atribuições do outro”[11]. Ao indicar a quem pertence esse poder, escrevia Silvestre Pinheiro Ferreira,
Aquela parte do poder conservador que respeita à manutenção dos direitos civis é comum a todos os cidadãos, e eles a exercem fazendo uso do direito de petição, ou de resistência legal. Quanto à manutenção da harmonia e da independência dos poderes políticos, os agentes de cada um dos outros quatro poderes políticos devem ser revestidos pela constituição de um certo número de atribuições convenientes a esse fim comum[12].
Impressionante e adiantado o conceito de resistência legal[13], que para Silvestre seria
O direito, ou antes o dever, que tem todo cidadão, quer seja nessa simples qualidade, quer como empregado público, de não obedecer a nenhuma ordem ilegal, sob pena de ser havido e castigado como cúmplice da autoridade que houver cometido esse abuso e excesso de poder[14].
O liberalismo de Silvestre Pinheiro Ferreira lembra-nos Adam Smith, e seu utilitarismo evoca-nos Jeremy Bentham. Não se discute aqui, efetivamente, se o pensador português lera detidamente os ingleses de seu tempo. Uma passagem do juiz norte-americano Oliver Wendell Holmes Júnior[15] pode ilustrar um suposto contágio cultural e conceitual. É que o juiz Holmes era darwinista, mas confessou ter lido Charles Darwin já com muita idade. Justificava, no entanto, sua adesão a um darwinismo social, dizendo que as ideias de Darwin estavam no ar...
De igual modo, o contato de Silvestre Pinheiro Ferreira com Adam Smith ou com Jeremy Bentham poderia também decorrer de mero contágio de ideias, que também deveriam estar no ar... Suas passagens por Paris indicam um permanente contato com o pensamento revolucionário francês, sobremodo na versão do Barão de Montesquieu.
Silvestre Pinheiro Ferreira concebia um direito público hostil à desordem e a comoção social. As reformas deveriam ser organizadas e implementadas a partir de um grupo dominante. Um poder nacional constituído abafaria qualquer ensaio de radicalismo. O Estado exerceria função legitimadora de direitos naturais, que reconheceria e garantiria.
Os excessos da democracia e os abusos de uma sanha demagógica, categorias bem aristotélicas, foram objeto das preocupações de Silvestre Pinheiro Ferreira. Pode se dizer que o pensamento jurídico nacional começa a ser formatado em bases conservadoras, embora sob uma aparência liberal, tensão que parece ser uma das características fundamentais de nosso pensar normativo.
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[1] FERREIRA, Silvestre Pinheiro, Précis de Cours de Droit Public, p. 1-4.
[2] SMITH, Adam, The Wealth of Nations, p. 91. Tradução livre do autor. The produce of labour constitutes the natural recompense or wages of labour.
[3] CERNEV, Jorge, Silvestre Pinheiro Ferreira, um Teórico Liberal da Monarquia Representativa, artigo in Revista Convivium, janeiro-fevereiro- 1986, ano XXV, vol. 29, n.1, p. 31.
[4] FERREIRA, Silvestre Pinheiro, Manual do Cidadão em um Governo Representativo de Princípios de Direito Constitucional, Administrativo e das Gentes, FERREIRA, Silvestre Pinheiro, Idéias Políticas, p. 112.
[5] FERREIRA, Silvestre Pinheiro, op.cit., p. 113.
[6] FERREIRA, Silvestre Pinheiro, op.cit., loc.cit.
[7] FERREIRA, Silvestre Pinheiro, op.cit., p. 115.
[8] FERREIRA, Silvestre Pinheiro, op.cit., p. 125.
[9] FERREIRA, Silvestre Pinheiro, op.cit., p. 142.
[10] FERREIRA, Silvestre Pinheiro, op.cit., loc.cit.
[11] FERREIRA, Silvestre Pinheiro, op.cit., p. 167.
[12] FERREIRA, Silvestre Pinheiro, op.cit., loc.cit.
[13] A desobediência civil é tema explorado em 1849 por Henry David Thoreau, pensador norte-americano, para quem o melhor governo é aquele que governa menos. THOREAU, Henry David, Walden and Civil Desobedience, p. 385.
[14] FERREIRA, Silvestre Pinheiro, op.cit., p. 168.
[15] Carta de Oliver Wendell Holmes Júnior a Morris Cohen, 5 de fevereiro de 1919, in POSNER, Richard (org.), The Essential Holmes, p. 110.