Miguel Arraes de Alencar foi biografado por Renato Lemos e por Silva Pantoja em verbete alusivo ao político pernambucano no Dicionário Histórico e Biográfico Brasileiro do Centro de Documentação da Fundação Getúlio Vargas. É do referido trabalho que apanho as informações biográficas que seguem, e que antecedem ao estudo do Habeas Corpus proposto por Sobral Pinto e por Brito Alves em favor de Arraes, acusado de vínculos com o comunismo, em meados da década de 1960. Miguel Arraes participou intensivamente da vida política brasileira. Foi governador do Pernambuco nos anos de 1963 e 1964 e posteriormente nos mandatos de 1987 a 1990 e de 1995 a 1998.
Arraes nasceu no estado do Ceará. De família tradicional, tinha laços de parentesco com o escritor José de Alencar e com o presidente Castelo Branco. Bacharelou-se em Direito pela Faculdade de Recife em 1937. Trabalhou no Instituto do Açúcar e do Álcool. Foi secretário da fazenda do Pernambuco (1947-1950). Fez oposição ao governador Cordeiro de Farias. Aproximou-se das ligas camponesas de Francisco Julião. Colocou-se contra o Código Tributário do Pernambuco de 1957. Foi secretário da Fazenda, novamente, agora no governo de Cid Sampaio. Foi prefeito de Recife, época em que urbanizou a região da Praia de Boa Viagem. À época da renúncia de Jânio Quadros (25 de agosto de 1961), Arrais defendeu a posse do vice-presidente João Goulart. Fez oposição ao parlamentarismo, solução que se encontrou para que se aceitasse a posse do vice-presidente eleito (cf. LEMOS e PANTOJA, DHBB, 2001, p. 356 e ss.).
Em 31 de março de 1963 assumiu o governo do estado do Pernambuco. Propiciou créditos do banco estadual para pequenos proprietários. A sustentação política de seu governo vinha de setores de camponeses. De uma certa forma teria colaborado para o esvaziamento das ligas camponesas por causa dos sindicatos rurais que ajudou a criar e para cujo desenvolvimento teria colaborado. Em 1963 apoiou um Estatuto do Trabalhador Rural Nacional, que previa 13º salário e férias para o trabalhador do campo. A UDN, o PSD e os usineiros nordestinos faziam oposição a Arrais, que ofuscava o esquerdismo de João Goulart e de Leonel Brizola (cf. LEMOS e PANTOJA, cit., loc.cit.).
Arraes esteve presente no Comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. Em seguida participou de um encontro em Palmares, quando problemas populares foram discutidos. Em 1º de abril de 1964 foi preso, deposto e levado para Fernando de Noronha; concomitantemente era cassado. Foi transferido para uma prisão em Recife e lá ficou até abril de 1965 quando foi levado para a Fortaleza de Santa Cruz, na baía de Guanabara. Depois de deferido seu pedido de Habeas Corpus foi libertado, mas permaneceu submetido a interrogatórios e a inquéritos. Em 20 de maio de 1965 foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional por conta de manifestações que fizera em relação aos inquéritos policial-militares. Exilou-se na embaixada da Argélia, seguindo depois para Argel. Foi condenado a 25 anos de prisão pelo Tribunal Militar de Recife. Beneficiou-se pela Lei de Anistia, de 28 de agosto de 1979, que possibilitou que fosse suspensa a pena aplicada pelo Tribunal Militar (cf. LEMOS e PANTOJA, cit., loc.cit.).
Antonio Callado dá as linhas gerais do temperamento de Miguel Arraes, a quem muito conheceu, e a passagem rica de cultura popular:
“Nunca amedrontado, nunca arrogante. Essas duas virtudes capitais o levaram a ser eleito governador de Pernambuco três vezes. Uma rara façanha para qualquer um, em qualquer país. Nosso pacífico e civilizado Arraes- que não vejo, em circunstância nenhuma, agredindo quem quer que seja- me perdoe a comparação. Mas a façanha dele- três vezes governador- só se compara à de Muhammad Ali e de Evander Holyfield campeões três vezes. Existe, ainda, para quem só conhece Arraes de palanques e festas, o contador de casos. Eu o acompanhei, como amigo e jornalista, numa linda viagem de automóvel até um comício no interior. Arraes era então candidato a governador pela segunda vez. Quando cansávamos os dois em falar em política, ele rememorava casos ocorridos na zona do sertão onde passávamos. Vou só contar o melhor. Um dos ‘coronéis’ outrora mandões e soberanos naquele sertão era coiteiro de Lampião. Quer dizer: o coronel e o cangaceiro tinham um ‘gentlemen’s agreement’. Lampião respeitava a fazenda do coronel e quando necessário, nela se abrigava. Certa vez, quando acoitado na fazenda, Lampião precisou se afastar para assunto urgente. E deixou na fazenda, por uns dias, Maria Bonita que- vejam só as peças que o destino prega às pessoas- se apaixonou pelo Ford Bigode que o fazendeiro acabava de comprar. Maria quis aprender a dirigir. E desde a primeira lição de motorista começou a fazer olhos ternos ao coronel. Que entrou em pânico. – Maria parece que era mesmo bonita, terminou Arraes, mas o coronel pretextou um mal súbito e foi passar dias no Recife. Mal maior que ter um caso com a mulher de Lampião não havia” (CALLADO, prefácio, em ARRAES, 1997, p. 12).
O enquadramento de Miguel Arraes na Lei de Segurança Nacional e nos demais dispositivos institucionais autoritários é tema recorrente no estudo da ditadura militar no Brasil. O regime militar instaurado substancializava um condomínio de poder político das correntes das forças armadas (cf. COSTA COUTO, 1999, p. 66); a repressão se ampliava, 74 dias após o golpe o General Castello Branco assinou a Lei 4.341, criando o Serviço Nacional de Informações (SNI), dando continuidade a modelo de espionagem governamental que fora inicialmente cogitado e organizado pelo presidente Washington Luís (cf. FIGUEIREDO, 2005, p. 131). Simples aproximação com Miguel Arraes já era problema; segundo Elio Gaspari, “o editor esquerdista Ênio Silveira, proprietário da Editora Civilização Brasileira, vu-se encarcerado por ter oferecido uma feijoada ao ex-governador pernambucano Miguel Arraes” (GASPARI, 2003, p. 231).
Segue o habeas corpus que o colocou em liberdade. Reproduzo, em primeiro lugar, alguns fragmentos da petição inicial:
“Os Drs. Heráclito Fontoura Sobral Pinto e Antônio de Brito Alves, brasileiros, casados, advogados inscritos na Ordem dos Advogados inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, nas Seções da Guanabara e de Pernambuco, respectivamente, vêm, com fundamento no artigo 141, parágrafo 23, da Constituição Federal, impetrar, perante o Colendo Supremo Tribunal Federal, uma ordem de HABEAS-CORPUSem favor do dr. MIGUEL ARRAES DE ALENCAR, brasileiro, casado, advogado, ora preso preventivamente no Quartel do Corpo de Bombeiros, na cidade do Recife, à disposição do Conselho Permanente de Justiça do Exército da 7ª Região Militar, pelos motivos que passam a expor:
“É público e notório em todo o país que o Dr. MIGUEL ARRAES DE ALENCAR exercia a função de Governador do Estado de Pernambuco, quando, no dia 31 de março de 1964, o movimento revolucionário que conduziu à Presidência da República o Exmo. Sr. Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Em virtude de haver repelido todas as propostas então apresentadas para a sua permanência à frente do Poder Executivo Estadual, com a altivez inerente ao exercício do mandato que o povo pernambucano lhe outorgara, o paciente foi deposto e preso por oficiais das Forças Armadas, no dia 1º de abril de 1964.
Na mesma data, o Exmo. Sr. General Joaquim Justino Alves Bastos, então Comandante do IV Exército, comunicava ao Exmo. Sr. Presidente da Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco, através do ofício nº 4, “que, em face dos últimos acontecimentos ocorridos no país e neste Estado, o Governador Miguel Arraes de Alencar não mais se encontra à frente do Poder Executivo. No dia seguinte ao de sua prisão, o paciente foi conduzido, em avião da FAB, para o Território de Fernando de Noronha, onde permaneceu incomunicável durante longos meses. Dali veio ele a ser transferido, mais tarde, para o Quartel da Companhia de Guardas, localizado na cidade do Recife, e, posteriormente, para o Quartel do Corpo de Bombeiros, onde ainda se encontra preso.
(…) 3. A fim de assegurar o exercício do seu direito de ir e vir, tão ilegalmente cerceado, o paciente impetrou perante o Egrégio Superior Tribunal Militar, no dia 9 de dezembro do ano próximo findo, uma ordem de habeas-corpus, que tomou o nº 27.509, sendo relator o Exmo. Sr. Ministro José Espíndola. Aconteceu, porém, que o mais alto órgão da Justiça Castrense, na sua reunião do dia 17 do mês em curso, denegou, por seis votos contra quatro, o hábeas corpus impetrado, afastando-se, assim, da orientação que adotara, uma semana antes, quando julgou o conflito negativo de jurisdição suscitado pela Auditoria da 7ª Região Militar, ocasião em que decidiu, por maioria de votos, pela incompetência da Justiça Militar para processar e julgar o Dr. João Seixas Dória, ex-Governador do Estado de Sergipe, apontando, também, como infrator do art. 2º, item III, da Lei 1.802 , no mesmo decreto de prisão preventiva em que figura, entre outros, o Dr. MIGUEL ARRAES DE ALENCAR, datado de 21 de maio de 1964.
4. Resta, pois, ao ex-Governador de Pernambuco bater, agora, respeitosamente, às portas do Supremo Tribunal Federal, com a esperança de que o Pretório Excelso, concedendo o presente HABEAS-CORPUS, faça cessar o manifesto constrangimento ilegal que vem sofrendo, faz quase um ano. Na verdade, três são os fundamentos jurídicos que demonstram, claramente, a ilegalidade da prisão do paciente, a saber: a evidente incompetência da Justiça Militar para processar e julgar o ex-Governador do Estado de Pernambuco; o divórcio flagrante entre o fundamento legal do decreto de prisão preventiva e o próprio texto da figura delituosa nele invocada e, finalmente, o gritante excesso de prazo de prisão preventiva prevista na Lei 1802, que é, como se sabe, uma lei especial. Pretendendo, sem mais nem menos, processar e julgar o ex-Governador de Pernambuco, despreza, assim, a Justiça Militar não só a condição de civil do paciente, como também o seu direito líquido e certo de ser processado e julgado perante o foro especial que lhe é assegurado pelas normas constitucionais vigentes. Mas, o que não se pode, nem se deve esquecer, é que a Constituição Federal em vigor delimita, de maneira precisa e clara, o âmbito do foro sem violar o texto constitucional. Com efeito, a competência da Justiça Militar é constitucionalmente limitada ao processo e julgamento dos crimes militares, dos crimes contra a segurança externa ou as instituições militares. Trata-se, portanto, de competência de direito estrito, que não pode ser ampliada pelo legislador ordinário além dos exatos limites estabelecidos pela Carta Magna, no art. 108 e seu parágrafo primeiro. Se, em tempo de guerra, é possível a ampliação da competência de foro militar, tal coisa não poderá ocorrer, enquanto estiver em vigor a Carta Magna de 1946, em tempo de paz. No decurso deste, conforme preceitua o parág. 1º do art. 108 da Constituição Federal, à Justiça só compete processar e julgar civis, quando estes cometem crimes contra a segurança externa do país ou as instituições militares. (…) Ora, o paciente se encontra preso desde o dia 1° de abril de 1964, tendo sido a sua prisão preventiva decretada a 21 de maio do mesmo ano, sob a alegação inconsistente de que ele teria infringido o art. 2°, item III, da Lei 1802. São decorridos, portanto, mais de 11 (onze) meses da data de sua prisão, sem que, até hoje, tenha sido sequer denunciado pelo Promotor Público! Em resumo: quer pela incompetência manifesta da Justiça Militar; quer pela discordância manifesta flagrante entre o fundamento do decreto de prisão preventiva e o texto do art. 2°, item III, da Lei 1802; quer, finalmente, pelo abusivo excesso de prazo, a prisão preventiva do Dr. MIGUEL ARRAES DE ALENCAR não encontra apoio algum em qualquer diploma legal vigente no país, sendo remediável a ilegalidade por hábeas corpus. Ante o exposto e provado, os impetrantes pedem ao Supremo Tribunal Federal a concessão do presente hábeas corpus, expedindo-se, por via telegráfica, em favor do paciente, alvará de soltura, o qual deverá ser encaminhado ao Exmo. Sr. Dr. Auditor da 7ª Região Militar.”
O ensaio prossegue com certidão emitida por Francisco Dantas de Morais, escrivão da Auditoria de Guerra da 7ª Região Militar, relativa cópia da informação do ministro José Espíndola, pertinente ao habeas corpus que havia sido impetrado em favor de Miguel Arrais na justiça militar. Afirmava-se, entre outros, que Arraes era elemento nitidamente comunista, e que fora visitado assiduamente pela comunista russa Raissa Godman em 1949. Teria também participado com outros comunistas de um comitê de ajuda da imprensa popular, no ano de 1950. Em 1952 Arraes teria assinado com outros vermelhos manifesto para convocação de um congresso regional para defesa do petróleo. Em 1961 teria promovido campanha paga pelo governo do Pernambuco, mantendo ligações com comunistas. Em 1962 Arraes estivera em Natal, convidado por Djalma Maranhão, participando de comício contra ato adicional. Em 1964 teria comparecido em trajes esportivos nos municípios de Moreno e de Vitória, aconselhando camponeses a marcharem em Recife. Nos termos da referida certidão, seriam essas as acusações gravíssimas que pesavam contra Miguel Arraes.
Nos autos há em seguida outra certidão da auditoria da 7ª Região Militar, relativa às acusações feitas contra João Seixas Dória, implicado na prática de atos subversivos contrários ao regime democrático, adotado em nossa Constituição. O processo ainda está instruído com vários excertos de jornal, com referência ao governador Seixas Dória. Juntou-se também notícia referente à negativa de Habeas Corpus para Arraes, por parte do Tribunal Militar, por diferença de dois votos.
Evandro Lins e Silva foi o relator do processo. Em 23 de março de 1965 assinou o Ofício 87/R solicitando informações urgentes ao Presidente do Conselho Permanente de Justiça do Exército na VII Região Militar, em Recife. Um telegrama seguia como resposta e informava-se que Miguel Arraes de Alencar figura com cabeça da subversão na área nordeste sendo apontado no inquérito como ativista da linha comunista orientação chinesa.
A questão foi discutida no Tribunal Pleno em 19 de abril de 1965. O relatório de Evandro Lins é extenso e minudente, e em especial se reporta à petição de Sobral Pinto, que reproduz em seus contornos principais. Abre o voto propriamente dito com reprodução da Súmula 394 do Supremo Tribunal Federal, cujo verbete segue: “Cometido o crime durante exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação do exercício funcional”. A linha de raciocínio acompanha esse comando. Levando-se em conta que Arraes era governador de Estado à época dos fatos imputados como criminosos, a competência para julgá-lo seria do estado do Pernambuco, e não da Justiça Militar, o que justificaria a confecção e expedição da ordem requerida.
Cautelosamente, Evandro Lins elencou vários julgados no sentido da tese que esposava. Fez também menção ao leading case, afeto ao ex-governador de Goiás, Mauro Borges. O caso de Mário Borges fora apreciado no Habeas Corpus 41.296, relatado pelo ministro Gonçalves de Oliveira. Sobral Pinto e José Crispim Borges advogaram em favor de Mário Borges. Segue a ementa do referido julgado:
“Impeachment. Caso do Governador Mauro Borges, de Goiás. Deferimento de liminar em habeas corpus preventivo por despacho do Ministro relator, dada a urgência da medida. Os Governadores dos Estados, nos crimes de responsabilidade, ficam sujeitos ao processo de impeachment, nos termos da Constituição do Estado, respeitado o modelo da Constituição Federal. Os Governadores respondem criminalmente perante o Tribunal de Justiça, depois de julgada procedente a acusação pela Assembléia Legislativa. Nos crimes comuns, a que se refere a Constituição, se incluem todos e quaisquer delitos da jurisdição penal ordinária ou da jurisdição militar. Os crimes militares, a que os civis respondem, na Justiça Militar, são os previstos no art. 108 da Constituição Federal. Os crimes de responsabilidade são os previstos no art. 89 da Constituição Federal definidos na L. 1.079, de 1950. Concessão da ordem para que o Governador somente seja processado, após julgada procedente a acusação, pela Assembléia Legislativa.”
Retorno a Miguel Arraes de Alencar. Anunciava Evandro Lins:
“Quanto aos Governadores de Estado, a competência para seu julgamento, tanto no que diz respeito aos crimes de responsabilidade como em relação aos crimes comuns, ressalta claramente do sistema político que nos rege e do que dispõem expressamente a Constituição, a Lei nº 1.079, de 190.4.50, e o Código de Processo Penal. É da essência da Federação a concessão de imunidades aos parlamentares e de foro privativo aos magistrados e ao chefe do poder executivo. A regra aplica-se tanto ao campo federal como na esfera estadual.”
Com referência ao procedimento para processamento dos crimes de responsabilidade, Evandro Lins e Silva firmava a competência do Tribunal do Estado do Pernambuco para julgamento de Miguel Arraes. Não haveria no caso como se distinguir o crime comum do crime militar. No fecho, Evandro concedeu a ordem impetrada para declarar incompetente a Justiça Militar e competente o Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco para processar e julgar o paciente.
Oswaldo Trigueiro, na qualidade de procurador-geral da República, sustentou parecer. Invocou que o caso era distinto do decidido em relação aos governadores de Goiás, Amazonas e Ceará, porquanto os crimes supostamente cometidos por Miguel Arraes o foram antes de exercer o cargo de governador de Estado. Reproduzo a parte final do referido parecer:
“(...) São recentes os casos dos ex-Governadores de Goiás, do Amazonas e do Ceará. Mas, aqui, há uma distinção muito importante a ser feita: é que o paciente está sendo acusado por crimes praticados antes de ser Governador do Estado de Pernambuco. Isto consta, claro, expressa e discriminadamente, das informações prestadas pelas autoridades; consta mesmo de uma certidão junta ao pedido. Vê-se, e está aqui, que quando se começa a citar os fatos, estes remontam a 1949, fatos de 1952, fatos de 1961, fatos de 1962... Ora, o paciente só assumiu o cargo de Governador de Pernambuco em 31 de janeiro de 1963. Portanto, não podemos, assim com essa simplicidade, aplicar o manto daquela imunidade, que amparou os ex-Governadores de Goiás e Amazonas. Os fatos que são imputados ao paciente- fatos que, em tese, constituem crimes, fatos definidos nas leis como tais- são na denúncia formalizados perante a Justiça competente, dados como ocorridos antes de que ele exercesse o cargo de Governador do Estado de Pernambuco, o que muda completamente o aspecto da questão. De modo que, por estes fundamentos – e o Tribunal que me desculpe por esta interferência, que não é usual, reconhecendo que fiquei no terreno puramente jurídico e processual- a Procuradoria Geral da República espera que o Egrégio Supremo Tribunal Federal não conheça do pedido pelos fundamentos de incompetência da Justiça Militar ou de prerrogativa de foro, e que, se o conhecer pelo fundamento do excesso de prazo, aceite a justificativa apresentada pelas autoridades informantes, para indeferir o pedido.”
Em seguida, votou Vítor Nunes Leal. Pensador de agudo sentido sociológico, autor de Coronelismo, Enxada e Voto, um dos mais importantes textos explicativos da realidade brasileira, nome que batiza a biblioteca do Supremo Tribunal Federal e um centro de estudos da Advocacia-Geral da União, Vitor Nunes Leal é de Carangola, no estado de Minas Gerais. Leal trabalhou no gabinete do Ministro da Educação, Gustavo Capanema, onde em 1940 chefiou o Serviço de Documentação. Vitor Nunes Leal foi nomeado para o Supremo Tribunal Federal em 1960; nove anos depois, foi aposentado pelo AI-5.
No caso de Arraes, Nunes Leal observou inicialmente que nada tinha a acrescentar ao brilhante voto do eminente Ministro Relator. Insistiu que a competência do Tribunal de Justiça para julgar governador, nos crimes comuns, era tradicional no direito público brasileiro. Citou Castro Nunes, as Constituições Federais de 1891 e de 1934, a par de inúmeras constituições estaduais. Reportou-se ao regime da Carta de 1946, na qual vigorava o mesmo princípio, acompanhado pelas constituições dos estados federados. Observou cuidar-se de tradição que se poderia dizer inalterada no direito constitucional republicano. Concluiu acompanhando o relator, cuja fundamentação jurídica acatou.
O ministro Luiz Gallotti concedeu a ordem, embora sob diferente argumentação. Concedeu por conta do evidente excesso de prazo de prisão preventiva, conforme vinha decidindo o tribunal, em grande número de casos. Porém, pediu a Evandro Lins um esclarecimento. Lembrou que em impugnação oral o procurador-geral da República afirmara que o paciente era acusado por fatos supostamente cometidos em período anterior ao exercício do cargo de governador do estado.
Evandro Lins respondeu que em informação do auditor militar indicava-se que havia crimes supostamente cometidos quando Arraes ainda era prefeito de Recife. Ao que argüiu Luiz Gallotti se não se tratava de uma informação precisa. Evandro Lins respondeu simplesmente que havia fatos anteriores, bem como notícias sobre o decreto de prisão preventiva. E concluiu Gallotti:
“Seria mais um motivo, para eu não conceder o hábeas corpus pelo fundamento do voto do eminente Relator, embora eu já tenha dado, para isso, razões que prescindem do alegado pelo eminente Procurador Geral. O eminente Ministro Relator falou também no caso de imunidades de deputados, mas, no meu voto de 16 de dezembro de 1964, eu lembrei que, conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal, quando um deputado estadual comete crime militar, a Justiça Militar Federal processa e julga esse crime, independentemente de qualquer licença da Assembléia a que pertence; prova de que o princípio federativo, por mim invocado, não permite que se submeta à anuência de um Poder Estadual o pleno exercício de um Poder Federal, como é a Justiça Militar. Por essas razões, Sr. Presidente, concedo o hábeas corpus, mas somente por excesso de prazo da prisão preventiva”.
Seguiu voto do ministro Hahnemann Guimarães, que concedeu a ordem. Com base no voto do ministro relator, Guimarães invocou prerrogativa de função, em favor de Miguel Arraes. Guimarães, que havia sido professor de latim no Colégio D. Pedro II no Rio de Janeiro, e mais tarde de Direito Romano na Faculdade de Direito daquela cidade, onde também lecionou Direito Civil, foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal por Eurico Gaspar Dutra, para a vaga do Ministro Waldemar Falcão (cf. BOECHAT RODRIGUES, cit., p. 432).
Concedeu-se a ordem, com base na Súmula 394, como se lê da ementa, assinada por Candido Motta Filho, na qualidade de Presidente do Supremo Tribunal Federal, e por Evandro Lins e Silva, como ministro relator do processo. Mas os problemas continuaram. É o que narro em seguida. Candido Motta Filho é vigoroso expoente da cultura brasileira, tendo participado da Semana de Arte Moderna, em 1922. Cândido Motta Filho ocupou o Supremo Tribunal Federal de 1956 a 1967[1].
Enviou-se telegrama para o general comandante do 1º Exército no Rio de Janeiro, com ordens para soltura de Miguel Arraes, com o seguinte conteúdo:
“COMUNICO VOSSÊNCIA PARA OS FINS LEGAIS VG QUE O SUPREMO TRIBUNA FEDERAL VG SESSÃO HOJE VG JULGANDO HABEAS CORPUS 42.108 (...) IMPETRADO EM FAVOR MIGUEL ARRAES DE ALENCAR VG RESOLVEU CONCEDER A ORDEM PARA DECLARAR INCOMPETENTE A JUSTIÇA MILITAR E COMPETENTE O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE PERNAMBUCO PARA PROCESSAR E JULGAR O PACIENTE VG DEVENDO O MESMO SER POSTO EM LIBERDADE INCONTINENTI PT SAUDAÇÕES PT MINISTRO CANDIDO MOTTA FILHO VG VICE PRESIDENTE VG NO IMPEDIMENTO DO EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO A M RIBEIRO DA COSTA VG PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL”
Com o mesmo conteúdo seguiu também telegrama para o auditor comandante da 7ª Região Militar em Recife. Respondendo do Rio de Janeiro, o comandante do 1º Exército negava-se a cumprir as ordens do Supremo Tribunal Federal. Segue o conteúdo do telegrama:
“INFORMO A V EXA ACABO RECEBER 1610 HS HOJE TELEGRAMA (...) COMUNICANDO ESSE EGRÉGIO TRIBUNAL CONCEDEU HABEAS CORPUS JULGANDO INCOMPETENTE JUSTIÇA MILITAR E COMPETENTE TRIBUNAL JUSTIÇA ESTADO PERNAMBUCO PARA PROCESSAR SR MIGUEL ARRAES ALENCAR VG EX GOVERNADOR MESMO ESTADO VG DEVENDO SER POSTO LIBERDADE INCONTINENTI PT CABE ME OPORTUNIDADE PARTICIPAR V EXA VG COM DEVIDO RESPEITO ESSE TRIBUNAL VG SR MIGUEL ARRAES ALENCAR VG DEPOIS ACATADA DECISÃO ONTEM ALTA CORTE JUSTIÇA VG PERMANECERÁ PRESO ULTIMAÇÃO INVESTIGAÇÕES ACORDO ART 156 CJM VG FACE SOLICITAÇÃO ENCARREGADO I P M EXISTENTE ESTE EXÉRCITO VG CONFORME DELEGAÇÃO PODERES ATRIBUÍDA EXCELENTÍSSIMO PRESIDENTE REPÚBLICA MINISTRO GUERRA AO COMANDO I EXÉRCITO (...)”
Em tons severos o ministro do Supremo Tribunal Federal reiterou a ordem, fazendo-o de modo firme:
“ADVIRTO SER DEVER IMPLICITO NO DEVER DISCIPLINAR O ACATAMENTO AS ORDENS EMANADAS DE SUPERIOR HIERARQUICO PR É EXPRESSO NA CONSTITUIÇÃO E NA LEI ORDINÁRIA ASSEGURAR-SE A EXECUÇÃO DE DECISÃO JUDICIÁRIA SOB PENA DE RESPONSABILIDADE PT SUA COMUNICAÇÃO TELEGRÁFICA RECEBIDA ONTEM AS VINTE DUAS HORAS IMPLICA DESCUMPRIMENTO CONCESSÃO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL HABEAS CORPUS DETERMINANDO IMEDIATA SOLTURA PACIENTE MIGUEL ARRAES ALENCAR PT TENHO POR INTOLERÁVEL SUA INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA E REBELDE A SOBERANIA DO PODER JUDICIÁRIO PT ACATE POIS AQUELA DECISÃO TAL COMO LHE FOI COMUNICADA PR SAUDAÇÕES PT MINISTRO ALVARO COUTINHO DA COSTA PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL”.
Ernesto Geisel, na qualidade de general de Divisão, e chefe de Gabinete Militar, do Rio de Janeiro telegrafou para o Presidente do Supremo Tribunal Federal comunicando, como segue, dando ciência de que Miguel Arraes fora posto em liberdade:
“LEVO CONHECIMENTO DE V EXCIA QUE MIGUEL ARRAES DE ALENCAR FOI POSTO EM LIBERDADE POR ORDEM CMT 1 EXERCITO PT CORDIAIS SAUDAÇÕES”.
São esses alguns fatos relativos ao habeas corpus de Miguel Arraes, que merecem registro e reflexão, bem como uma permanente atenção por parte daqueles que nos preocupamos com a história do direito brasileiro, estudada a partir de fontes primárias.
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[1] A propósito de Cândido Mota Filho, consultar Miguel Reale, Figuras da Inteligência Brasileira, p. 125 e ss.