O presente ensaio pretende resgatar e polemizar Habeas Corpus impetrado em favor de Genny Gleiser, judia de origem romena, acusada de ligações com o comunismo, fatos que se desdobraram em meados da década de 1930. A história de Genny Gleiser me instigou quando eu lia um daqueles livros que marcam, e que parecem que foram escritos para mudar a vida das pessoas. Eu lia Maria Luiza Tucci Carneiro, O Anti-Semitismo na Era Vargas, e me impressionava com revelações impressionantes, fartamente documentadas, relativas ao anti-semitismo durante a ditadura de Getúlio Vargas.

 

Genny Gleiser, judia, romena e comunista, jovem de 17 anos, havia sido presa, mal tratada e deportada pela ditadura Vargas, em 1935. Segundo Maria Luiza Tucci Carneiro, “(...) Gleiser teve seu trajeto interrompido ao ser resgatada na França, numa ação fantástica, pelos membros do Partido Comunista Francês” (CARNEIRO, 2001, p. 72). Os fatos remetiam a Olga Benário, então companheira de Prestes, também judia e comunista, alemã, que perdeu a vida em campo de concentração, tema de outro ensaio que redigi (clique aqui para ler). O assunto me instigava. Que fazer?

 

Tentei repassar literatura sobre a prisão de Genny, mas, ao que me consta, e até onde pude alcançar, não havia nada específico. Porém, o nome Gleiser me levava a Berta, antropóloga que fora casada com Darcy Ribeiro[1], misto de antropólogo, literato, político, filósofo e sociólogo que sempre admirei, e que sempre li. Nas Confissões de Darcy há apenas duas referências a Genny, sua cunhada, que ele grafou com J, escrevendo Jenny. A primeira das passagens é lacônica, porém expressiva, e tem como foco Berta, e não Genny:

 

“Na verdade das coisas, eu me apaixonara por uma menina comunista que tinha uma história heróica. Conheci Berta num comício, quando pedi um cigarro a um companheiro que sustentava outra vara da faixa que abríamos. Ela veio trazer. Nunca mais me deixou. Soube depois o segredo dos mistérios dela, complicadíssima para namorar. Ela era a irmã menor que ficara escondida no Brasil, quando Jenny, a mais velha, jovem ativista, foi banida junto com Olga Benário, a mulher de Prestes, para ser mandada para um campo de concentração na Alemanha. Olga cumpriu seu destino e foi morta lá. Jenny escapou porque portuários franceses, advertidos de sua presença no navio, a tiraram de lá” (RIBEIRO, 2002, p. 138).

 

A segunda passagem também é esfíngica; Darcy Ribeiro apenas lembrou que Berta vivia preocupadíssima que descobrissem que “(...) era a irmã viva e escondida da célebre Jenny Gleiser” (RIBEIRO, cit., p. 198). Fernando Morais, biógrafo de Olga, ocupou-se de Genny Gleiser, em passagem muito informativa, quando descreve a percepção que o Estado Novo tinha de sua biografada, Olga, como estrangeira nociva. Genny é indicada como precedente perigosíssimo:

 

“(...) De todos os casos de expulsão de estrangeiros ‘indesejáveis’ de que tivera notícia — e eram centenas e centenas — um, particularmente, Olga acompanhara de perto, ainda em liberdade, pelo noticiário dos jornais, e ficara estarrecida com seu desfecho. Depois de manter presa durante quatro meses, sob a vaga acusação de ‘subversão’, o governo de Vargas decidira deportar uma garota de 17 anos, Genny Gleizer, judia romena, apesar da manifestação de centenas de sindicatos e associações de estudantes e intelectuais, tanto do Brasil como do Exterior. Durante o processo de expulsão de Genny, a opinião pública testemunhara alguns gestos comoventes de solidariedade. Quando se anunciou, por exemplo, que se ela casasse com um brasileiro as leis a protegeriam da deportação, vários escritores e intelectuais se ofereceram como voluntários. Num comício pela libertação de Genny, no centro de São Paulo — onde tinha sido presa — o estudante Paulo Emílio Salles Gomes anunciou que sairia do palanque diretamente para o cartório, em busca de um juiz que oficializasse seu casamento com a garota. Chegou tarde. O jornalista Artur Piccinini, que acompanhava o ‘caso Genny’ para o diário A Platéia, tomara-lhe a frente e havia solicitado ao Juízo de Paz do bairro da Sé, na capital paulista, a publicação dos proclamas para seu matrimônio. Insensível a tudo isto, em outubro de 1935 o governo deportou Genny Gleizer para a Europa” (MORAIS, 1988, p. 188).

 

Os fatos reportavam-se ao anticomunismo que o governo Vargas protagonizava. Porém, havia algo mais. À época dos fatos, Genny era moça, bem nova, ainda não tinha 17 anos. Vinha da Romênia. Era judia. E foi na biografia de Stefan Zweig, esplendidamente escrita por Alberto Dines, que o caso de Genny reaparecia:

 

“Fato que produz muitas manchetes no Rio de Janeiro e em São Paulo, desde outubro do ano anterior, são as incursões da polícia contra centros operários judeus no Rio de Janeiro. Na praça Onze, foram invadidos o centro cultural dos trabalhadores onde funcionava a redação do semanário judeu comunista Unhoid, ‘O Começo”, assim como a cozinha popular e uma escolinha para os filhos dos operários. Prenderam 23 militantes, dos quais 15, por estarem com papéis irregulares, foram deportados para a Alemanha e jamais encontrados. Entre eles, Motel Gleizer, redator do semanário. A polícia chegou até ele porque sua filha Jenny (ou Schendla) foi presa sob a acusação de organizar o primeiro Congresso da Juventude Proletária e Estudantil em São Paulo” (DINES, 2004, p. 50).

 

Em seguida, Alberto Dines apresentou mais um parágrafo, sumariando a história da judia romena, presa e violentada:

 

“História dramática: um repórter localizou a moça numa prisão paulista, enquanto armou-se a grita na imprensa para libertá-la. Um aluno da Universidade de São Paulo: Paulo Emílio Salles Gomes, mais tarde preso e torturado, foi um dos que se empenharam na cruzada. Em outubro de 1935, junto com outros militantes judeus, Jenny é deportada secretamente através de Santos, no cargueiro francês Aurigny, para ser entregue ao governo fascista da Romênia. Na França, em conluio com o capitão do barco, estivadores e operários do porto a libertam. Jenny escapa dos nazistas, alguns dos companheiros foram lutar na Espanha, o pai desapareceu. Improvável que o editor Koogan não tivesse tomado conhecimento do caso de Jenny, que foi manchete do vespertino A Noite ao longo de outubro de 1935 e comoveu muita gente, judeus e não judeus” (DINES, cit., loc.cit.).

 

Em nota de rodapé, Alberto Dines ampliou as informações e explicitou o desfecho da história. Observou que depois da guerra Genny Gleizer teria conseguido entrar nos Estados Unidos, onde teve uma filha. Genny formou-se em psicologia. Em 1982 Genny teria contado sua história para Eva Blay, em Nova Iorque. Foi lá que Genny teria vivido até 1995 (cf. DINES, cit., loc.cit.). Ao que consta, Genny Gleizer nunca voltou ao Brasil.

 

Há no arquivo do Supremo Tribunal Federal o processo de Habeas Corpus 25.906, relativo ao caso de Genny Gleiser. É o estudo desse processo que se tem pela frente.

 

No dia 13 de setembro de 1935 o bacharel Sylvio de Fontoura Rangel protocolou na Corte Suprema (como então se denominava o Supremo Tribunal Federal) uma petição de Habeas Corpus em favor de Genny Gleiser, natural da Romênia, menor de idade, e que se encontrava detida pela polícia do regime de Getúlio Vargas, em local desconhecido. Endereçada ao ministro-presidente daquela Corte, a peça é manuscrita, consta de duas laudas, e dá início ao pedido de habeas corpus que levou o número 25.906. O ministro Olympio de Sá foi indicado relator. Após datar e assinar, o impetrante estampou os selos indicadores do recolhimento de custas.

 

O pedido impetrado pelo advogado Sylvio de Fontoura Rangel é de simplicidade marcante, e o fecho, que invoca os mais elementares princípios de solidariedade humana é argumento retórico de muita força. Nos termos da peça de habeas corpus, Genny Gleiser, que seria menor de idade (fato que as forças constituídas posteriormente negaram), apenas participara de uma reunião de socialistas, sem maior dedicação ao movimento, o que lhe valeu a prisão, o fato de estar incomunicável, e o desconhecimento de seu paradeiro, circunstâncias que o Dr. Rangel imputou à responsabilidade do Sr. Ministro da Justiça, o que justificou o protocolo do habeas corpus junto ao Supremo Tribunal Federal.

 

O pedido foi instruído por excertos de jornal, e quase todos do vespertino A Nota, circunstanciando o problema. Além de menor de idade e acusada de vínculo com os comunistas, Genny Gleiser era judia. Este fato pode ser um dos mais importantes que desencadearam os episódios que serão aqui narrados, como já insinuei na sessão introdutória.

 

O jornal A Nota tomou a frente da defesa de Genny Gleiser, e o fez também mediante a publicação de notícias alusivas à sorte da moça, sequestrada pela polícia política. O primeiro dos excertos de jornal, do vespertino A Nota, que instruía a petição inicial do Habeas Corpus, dá conta da seguinte manchete: “Genny Gleiser era uma criança ignorante quando chegou ao Brasil”. E em seguida, lê-se: “História de fome e miséria- estudando e trabalhando em São Paulo a jovem romena teria se tornado comunista”. A página do referido jornal exibe foto de Genny Gleiser, que parece muito jovem. Ela estava com cabelos curtos, parcialmente cobertos por um chapéu delicado. O olhar é muito expressivo. Há também foto de seu pai, Sr. Motel Gleiser. Ele aparentava ser de meia idade, cerca de 50 anos, usava óculos de aros redondos e possuía duas entradas acima da testa, o que lhe emprestava perfil intelectual. Reproduziu-se trecho de carta de Genny para seu pai. O jornal ainda publicou foto de pequeno excerto da missiva, na qual se via a caligrafia firme da moça.

 

O pai de Genny ainda insistia que o caso de sua filha configurava situação isolada. Lembrou que 17 garotas foram presas com sua filha, e que somente Genny não fora até então libertada. Perguntava: Por que somente Genny? O jornal A Hora também publicou a carta que Genny escreveu a seu pai, cujo conteúdo segue, do modo como estampado no vespertino, adaptando-se tão-somente o regime ortográfico:

 

HHo

 

          “São Paulo- 8-9-1935.

 

          Querido pai.

 

          Papai, não tenho palavras para lhe agradecer pelas boas notícias que o senhor me forneceu. Estava hoje triste, me sentia tão sozinha, longe de meu pai e de meus colegas, e me sentia com tanta vontade de ser libertada e de estar onde eu pudesse trabalhar e conversar. Quando afinal recebi sua carta, fiquei tão contente, senti-me tão feliz. Tem gente que me compreende, que me defende, que me quer bem. Se papai soubesse, como me consola tal notícia, como fico satisfeita, como fico forte, que logo esqueço do que os malvados me fizeram, esqueço de minha tosse, da cadeia, e me sinto tão consolada. Agradeço-lhe papai, agradeço ao senhor e a todos que se interessam por mim. Quando for libertada, saberei agradecer-lhe de outra maneira. Hoje veio me visitar a minha tia Marche. Ela me falou que o advogado vai requerer amanhã outro hábeas corpus. Que queria saber o resultado. Tenho muitas coisas a lhe escrever, mas agora não posso papai. Já são 5 horas e vão fechar a porta. Na cadeia é assim... Amanhã vou lhe escrever de novo. Faça o passível para eu ser posta em liberdade aqui no Brasil, pois eu sou uma moça tão simples, eu penso que não posso prejudicar ninguém aqui no Brasil e fora disso eu gostaria tanto de ficar aqui... Papai, diga: o senhor não acha um absurdo ter medo de mim? Eu sou capaz de fazer mal a alguém? Papai nunca me abandone. Aceite um abraço de sua filha que lhe quer muito bem. Genny. P.S. escreva em português”.

 

Estudantes da Universidade do Rio de Janeiro compareceram à redação do jornal A Hora e informaram que estavam se mobilizando com o objetivo de libertar Genny. Uma foto mostrava os estudantes, todos muito jovens, vestidos de terno e gravata, como ditava a moda da época. Esse mesmo jornal comunicava que estudantes no Rio de Janeiro planejavam realizar protesto em favor de Genny. Membros de um comitê acadêmico teriam adiantado ao jornal que estariam dispostos a recorrer à greve, se necessário para que se desse fim ao insulto que se perpetuava sobre o povo brasileiro. Noticiava-se também que na Câmara Federal houve moções de protesto, por parte dos deputados João Neves e Abguar Bastos. Também na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro houve protestos.

 

Em 20 de setembro de 1935 o escritório dos advogados Malcher da Cunha, Antonio Dias Tavares Bastos e Helvécio Monassa, todos do Rio de Janeiro, por delegação da Comissão Executiva do Partido Socialista do Brasil, representado especificamente por Tavares Bastos, protocolou petição, reforçando o pedido inicial, e aduzindo razões, protestando pela liberdade de Genny Gleiser.

 

Com data de 6 de setembro de 1935 foi encaminhado ao Supremo Tribunal ofício do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, assinado pelo ministro, Vicente Rao. Nos autos do processo de Habeas Corpus de Genny Gleiser há também cópia de relatório preparado pelo Gabinete de Investigações da Polícia em São Paulo. Os governos federal e estadual falavam no mesmo tom.

 

O Supremo Tribunal Federal se manifestou e os votos começam a ser colhidos. Com data de 30 de setembro de 1935 assinaram o acórdão Hermenegildo de Barros e Ataulfo de Paiva, nas qualidades, respectivamente, de Presidente da Corte e de relator. Por unanimidade, não se deferiu o pedido. A moça foi expulsa do país.

 

A Suprema Corte entendeu que Genny era estrangeira e nociva à ordem pública, o que justificaria a legalidade do decreto de expulsão. Invocou-se que eventuais maus tratos deveriam ser discutidos com as autoridades responsáveis, isto é, junto à polícia do estado de São Paulo. A aproximação com comunistas comprovaria a nocividade à ordem pública.

 

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[1] A propósito do papel de Darcy Ribeiro, visto pelo Superior Tribunal Militar, consultar Hábeas Corpus nº 29.824-Guanabara, Relator Ministro João Mendes, in Renato Lemos (org.), Justiça Fardada, o General Peri Bevilaqua no Superior Tribunal Militar (1965-1969), p. 318 e ss.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 29/11/2024
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