Em 20 de julho de 1953 o Supremo Tribunal Federal recebeu e protocolou petição de mandado de segurança impetrado em favor do escritor João Cabral de Melo Neto. Qualificado como brasileiro, casado, cônsul de 1ª Classe do Ministério das Relações Exteriores, domiciliado no Distrito Federal, o poeta pretendia obstaculizar decreto do presidente da República (à época Getúlio Vargas), que o colocava em disponibilidade inativa, sem remuneração, como resultado de parecer de Comissão que imputou ao escritor o vínculo com atividades subversivas ligadas ao Partido Comunista, então na ilegalidade.
O pedido foi redigido e assinado pelo advogado Guimarães Menegale, à época conhecido especialista em Direito Administrativo. A questão também afetava Amaury Banhos Porto de Oliveira, Antonio Houaiss, Jatyr de Almeida Rodrigues e Paulo Cotrim Rodrigues Pereira, todos servidores do Itamaraty, mas que discutiram seus casos em outro mandado de segurança.
A acusação imputava a João Cabral de Melo Neto práticas subversivas, ligadas ao Partido Comunista Brasileiro, que fora colocado na ilegalidade. A questão problematiza a relação dos intelectuais brasileiros com o marxismo, a exemplo de Astrogildo Pereira, Caio Prado Júnior, Oswald de Andrade, Nélson Werneck Sodré, Antônio Cândido, Carlos Nelson Coutinho, entre outros (KONDER, 1991). E a relação de escritores com o comunismo é especialmente problemática; refiro-me, em especial, a Jorge Amado e a Graciliano Ramos.
Ao lado de Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto é reputado ponta de lança da geração de 1945; coube a Melo Neto a tarefa e o mérito de ter superado os traços parnasianos-simbolistas que (...) anemizavam a força inventiva de outros companheiros de sua geração literária, a exemplo de Geir Campos, Mauro Motta e Ledo Ivo (cf. BOSI, 1974, p. 434). Do ponto de vista temático, tinha-se presença literária que pretendia transcender do regional para o universal (cf. SODRÉ, 1976, p. 555 e ss.). Segundo
Ferreira Gular, o poeta mais importante da geração de 1945 fora João Cabral de Melo Neto (cf. MARTINS, 1977, p. 336).
Ainda, “em numerosas entrevistas, João Cabral de Melo Neto revelou seu recôndito desejo de ser não poeta, mas crítico (...)” (BARBOSA, 2002, p. 300). E João Cabral não se conformava com o mundo que via, prenhe de desigualdades, que criticava na transitividade e intransitividade de sua poesia. E no sentir de abalizado estudioso:
“No esforço mais ou menos deliberado em que, nos últimos cinco anos, se vão empenhando alguns dos nossos autores das gerações mais novas para realizar um tipo de poesia bem construída e bem governada, limpa de todos os acessórios anedóticos que o modernismo utilizou largamente, manifesta-se com freqüência bem significativa a crença no insondável milagre da criação poética. ‘Como um ser vivo/ Pode brotar/ De um chão mineral?, pergunta em O Engenheiro o Sr. João Cabral de Melo Neto.” (HOLANDA, 1996, p. 184).
O contexto de que se cuida, relativo à tentativa de intimidação ao poeta João Cabral de Melo Neto, centra-se no início da década de 1950, acenando para com os efeitos da guerra fria no Brasil. Os Estados Unidos da América protagonizavam aquele Geist des Kapítalismus, na expressão de Moniz Bandeira (BANDEIRA, 2005, p. 36). Ao mundo periférico prescrevia-se o American way of life (cf. HALBERSTAM, 1994, p. 497). A ascendência norte-americana na Guerra Fria (cf. ALLEN, 1970, p. 267) contou com alinhamento brasileiro. Não se implementou, concretamente, uma política externa independente (em sentido contrário, RIBEIRO, 2002, p. 269 e ss.). Além de autocrata, Getúlio não contava com maior espaço de manobra na política internacional, quando de seu retorno, após o mandato de Eurico Gaspar Dutra (cf. DANESE, 1999, p. 313). Vargas teve que conciliar a pressão nacionalista com alinhamento e desenvolvimento associado (cf. CERVO e BUENO, 2002, p. 269 e ss.).
O caso João Cabral de Melo Neto ocorre no retorno de Vargas, e marca contradições que conduziram ao trágico desfecho do presidente, que se suicidou, em 24 de agosto de 1954 (cf. SILVA, 2004, p. 2001). Do ponto de vista estritamente normativo, utilizava-se a nova lei do mandado de segurança, promulgada em 1951, e que substituía a Lei 191, de 1936, que regulamentava este remédio jurídico que fora criado pela Constituição de 1934. Porque titular de direito líquido e certo de não ser aposentado, e porque injustamente perseguido, o escritor buscou o Poder Judiciário.
O advogado do impetrante declarou que ao seu cliente se increpava o exercício de atividades subversivas ligadas ao Partido Comunista, que a penalidade consistia em disponibilidade inativa sem remuneração e que o ato presidencial se fundava em parecer emitido pela Secretaria Geral do Conselho Nacional de Segurança. Com base nessas circunstâncias indagava se os fatos imputados ao impetrante constituíam crime e se a pena aplicada seria legal. Indagava se seria crime participar de partido político que não existia, bem como se poderia o Estado poderia penalizar por modelo repressivo inexistente.
Segundo o parecer, no qual se fundou o decreto presidencial que aplicou a pena a João Cabral de Melo Neto, o poeta faria parte de uma rede de comunistas que trabalhavam contra o Brasil, e que havia um “(...) plano diabólico de ajuda ao extinto Partido Comunista do Brasil para tentar submeter o território da Nação à Soberania de Estado Estrangeiro, plano esse que consistiria, visivelmente, em publicações relativas ao Brasil e a determinados brasileiros (...)”. O advogado protestou no sentido de que todas as acusações que fomentavam o parecer incriminador continham expressões plasmadas pelo verbo no condicional; tratava-se de suposta missão que revelaria segredos do Brasil, e que jamais se realizou. De tal modo, o impetrante não havia efetivamente revelado segredo que conhecesse em razão do cargo, o que configurava a prescrição legal indicativa da pena, isto é, o inciso VII, do artigo 207, do Estatuto dos Funcionários Públicos então vigente.
O parecer dava conta de que o poeta pretendia submeter “(...) o território da Nação a soberania de Estado Estrangeiro (a Rússia), cuja estrutura política corresponde à sua convicção, também a uma flagrante e incontestável tentativa de reorganizar, de fato, sob forma simulada, partido político fora da legalidade, como é o Comunista, cujo cancelamento foi decretado pela Veneranda Resolução n° 1841, de 7 de maio de 1947 (...)”. O advogado do impetrante denunciava que o decreto encetava conjunto de contradições. A flexão modal dos verbos comprovava que o desacerto da acusação era também gramatical. O referido parecer insistia que as ações do poeta transcendiam do terreno da ação política, “(...) chegando ao terreno da ação objetiva, da ação criminosa contra o Estado e a Ordem Política e Social, devendo, todos, serem chamados à responsabilidade criminal, que será proposta, a final, juntamente com as penalidades administrativas (...)”.
Nos termos da petição, o impetrante não havia cometido crime algum. É que, “(...) professar ideologia, mesmo contrária ao regime democrático, sabemos todos que não importa crime, pois corresponde ao gozo da liberdade de pensamento e de consciência (Constituição, art. 141, § 5º e § 7º); apenas se proíbe a propaganda de processos violentos para subverter a ordem política e social (id., ibi., § 5º)”.
O escritor não dispunha de meios para reorganizar partido que atentasse contra o regime democrático. No entender do advogado do impetrante, o decreto presidencial baseou-se em parecer que continha “meras e cerebrinas ilações”, das quais se extraíam, “(...) por abuso do método extensivo, dos fatos narrados no relatório da comissão do inquérito”.
Familiar com recursos e figuras de estilo, o advogado do impetrante leva ao extremo a ironia, bem como impressiona com cultura geral muito densa e sedimentada, e disso comprova a evocação à estrada de Damasco, como o caminho do arrependimento, circunstância que nos conduz à conversão do Apóstolo Paulo. De igual modo, a riqueza da linguagem fica evidente no uso de referencial que nos remete à tradição ocidental, a exemplo da indicação tinosa dos Cavaleiros do Apocalipse.
Em seguida, o advogado de João Cabral de Melo Neto substancializou a ideia de que o relatório que instrumentalizava a acusação não enumerava nada mais do que conjunto de tentativas, a exemplo de “tentar reorganizar o partido político fora da legalidade”, ou de “tentar submeter o território da Nação à soberania de Estado Estrangeiro”. O argumento de autoridade decorria de doutrina nacional (Galdino Siqueira) e estrangeira (o italiano Tomaso Napolitano e o alemão Gurtner); com este recurso argumentativo o advogado do impetrante demonstrava a necessidade de que se comprovassem atos de execução, e não de mera preparação, que ainda assim não foram adequadamente comprovados, por parte das autoridades coatoras. Insistia que o presidente da República teria se antecipado à ação penal, impondo ao poeta Cabral de Melo Neto gravíssima sanção disciplinar. Do ponto de vista lógico a peça é muito bem engendrada.
Outro fato: no relatório que instruía o parecer, averbou-se no parágrafo 2, que o ministro de Estado das Relações Exteriores havia assinalado a impossibilidade de punir o diplomata, “por não lho permitir a legislação vigente”. Havia inferência de que “(...) por motivo de convicção política nenhum servidor poderia ser privado de qualquer de seus direitos nem sofrer alteração em sua atividade funcional”; era a previsão do artigo 248 do Estatuto do Funcionário Público então vigente. Além do que, o artigo 201 do mesmo Estatuto, previa número fechado de penas disciplinares, a saber: repreensão, multa, suspensão, destituição de função, demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade. Não havia previsão de pena de disponibilidade inativa, sem remuneração. E ainda, o advogado do impetrante demonstrou que o regulamento que fora aplicado aplicava-se a diplomatas, e não a cônsules; e o poeta exercia a função de cônsul.
O advogado que defendeu João Cabral de Melo Neto, Guimarães Menegale, manejou com perícia os modelos regulamentares, evidenciando incongruências que marcavam o decreto presidencial que penalizava o autor de Morte e Vida Severina. Na parte final, Guimarães Menegale simplesmente afirmou que João Cabral de Melo Neto jamais fora comunista, negando veementemente os termos da acusação que se urdia.
Em 24 de julho de 1953 a Secretaria do Supremo Tribunal Federal concluiu o preparo dos autos. A taxa judiciária orçava em Cr$ 28,40 (vinte e oito cruzeiros e quarenta centavos). Foi designado relator do processo o ministro Luiz Gallotti[1], que no mesmo dia, 31 de julho de 1953, despachou solicitando informações. O ministro José Linhares[2], então presidente do Supremo Tribunal Federal, determinou expedição de ofício ao presidente da República, confeccionado e assinado em 7 de agosto de 1953.
No dia 17 de agosto do mesmo ano, Getúlio Vargas transmitiu as informações, prestadas pelo ministro das Relações Exteriores, Vicente Ráo[3]. No dia 19 de agosto José Linhares despachou, determinando o encaminhamento do documento ao relator do processo. No dia 20 de agosto o ministro Gallotti determinou juntada e assinalou os autos conclusos.
Com visto de Vicente Ráo, o documento não era conclusivo. Seguiu parecer da Procuradoria-Geral da República, datado de 24 de novembro de 1953, assinado por Plínio de Freitas Travassos, então procurador-geral. O Ministério Público Federal opinou pela denegação da segurança.
O procurador-geral da República reproduziu extensivamente as informações prestadas pelo presidente da República, e preparadas pelo Itamaraty. Apenas acrescentou sucinta análise da legislação aplicável ao caso, bem como alavancou questões formais.
O advogado do impetrante, provavelmente atentando para a mitigada documentação, o que tinha oxigenado o parecer do Ministério Público Federal, requereu em 15 de janeiro de 1954 a juntada de certidão fornecida pelo Cartório do Juízo da 7ª Vara Criminal do Distrito Federal. Este documento continha transcrição de despacho de juiz que em atenção a requerimento do Ministério Público mandara arquivar, por falta de provas, processo contra o impetrante, também referente a acusação de prática de atividades subversivas.
Intimado a falar, o procurador-geral da República invocou que a legislação do mandado de segurança (Lei 1.533, de 31 de dezembro de 1951) não permitia que o Impetrante se manifestasse no feito, depois de ouvido o Ministério Público. Também lembrou a vedação de juntada de documentos novos.
A segurança foi deferida, por unanimidade. Em 1º de setembro de 1954 discutiu-se o caso. Após minudente relatório, o ministro relator, Luiz Gallotti, em voto curtíssimo e erudito, reportou-se a outro mandado de segurança, impetrado pelos demais envolvidos na querela, e firmou convicção de que a pena aplicada, disponibilidade não remunerada, na contava com previsão legal.
Certidão do mesmo dia dá conta que em ata fora transcrita a decisão, que deferia a segurança, a fim de anular a disponibilidade imposta ao impetrante, unanimemente. Consta ainda da referida certidão que deixaram de comparecer, por se acharem em gozo de licença especial, os ministros Barros Barreto, Rocha Lagoa e Nelson Hungria, e por se achar em exercício no Superior Tribunal Eleitoral, o ministro Edgard Costa, que foram substituídos, respectivamente, pelos ministros Abner de Vasconcelos, Afrânio Costa, Henrique D´Avila (ausente justificadamente) e Marcelo Ludolf. O subsecretário Otacílio Pinheiro assinou a ata. A ementa foi manuscrita pelo ministro Luiz Gallotti e encaminhou-se o resultado para publicação no Diário da Justiça.
Em 3 de setembro de 1954 o advogado Guimarães Menegale requereu expedição de comunicação ao presidente da República, referente à ordem concedida, de modo que se providenciasse a volta imediata de João Cabral de Melo Neto ao Ministério das Relações Exteriores, bem como a determinação para o pagamento das importâncias que se viu privado no período de sua disponibilidade inativa.
João Cabral de Melo Neto persiste como um de nossos maiores poetas. O comunismo sucumbiu, e de seus escombros brota mundo também cruel, desigual, marcado pela intolerância, do qual parece que se foram todas as utopias. Nesse sentido, leis e rimas se encontram, como que provando que no espaço histórico e cultural ambos os nichos, Direito e literatura, comungam de identidade univalente, que alguns pretendem ambivalente.
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[1] Luiz Gallotti nasceu em Santa Catarina em 1904. Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. Foi conduzido ao Supremo Tribunal Federal por indicação do Presidente Eurico Gaspar Dutra. Foi Ministro do STF de 1949 a 1974. Presidiu a Corte de 1966 a 1968. Luiz Gallotti faleceu em 1978 (cf. VIOTTI DA COSTA, 2001, p. 210).
[2] José Linhares nasceu no Ceará em 1886. Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito de São Paulo. Foi conduzido ao Supremo Tribunal Federal por indicação de Getúlio Vargas. Foi Ministro do STF de 1937 a 1956. Presidiu a Corte em 1945 (por seis meses), de 1946 a 1949 e de 1951 a 1956. Assumiu a Presidência da República com a queda de Vargas em 1945 (cf. VIOTTI DA COSTA, 2001, p. 209).
[3] Vicente Ráo foi Ministro da Justiça de Vargas de 1934 a 1937 e, posteriormente, Ministro das Relações Exteriores, de 1953 a 1954. Nasceu em São Paulo em 1892. Em 1911 obteve o doutorado em Filosofia e Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo. Bacharelou-se em Direito em 1912 pela Faculdade de Direito de São Paulo. É autor, entre outros, de O Direito e a Vida dos Direitos. Faleceu em São Paulo, em 1978 (cf. Vilma Keller, 2001, p. 4899 e ss.).