A Carta de Pero Vaz de Caminha pode ser tida como documento de certidão de nascimento do Brasil. Justifica-se a posse portuguesa em terras do Novo Mundo, atesta-se o pioneirismo lusitano (que já se fazia envolvente desde Os Lusíadas), sedimenta-se ato cartorial que dá início a regime de propriedade, centrada no Estado, modelo que mais tarde se cristalizou definitivamente na Lei de Terras de 1850, fórmula definitiva desenhada no Segundo Reinado.
Tem-se em torno (e a partir) da carta de Caminha a justificativa histórica para todo o sistema cartorial brasileiro. Tem-se também receita que nos vincula culturalmente a Portugal. Gênero literário que supostamente remonta a Heródoto, e que fez estação definitiva em Marco Pólo, a narrativa de viagem é substrato nada ingênuo, que se presta a propósitos muito bem definidos. A carta de Caminha não foge à regra; pelo contrário, a comprova, e o faz de modo muito bem engendrado.
Na provocativa passagem de instigante pensador de nossa história cultural, a carta de Caminha protagoniza três finalidades muito claras: a) promove a filiação do Brasil à formação portuguesa; b) mantém a hegemonia da oligarquia lusa sobre minorias étnicas aqui encontradas, e para aqui posteriormente deslocadas; c) impõe visão do Brasil como uma utopia (cf. KOTHE, 1997, pp. 199 e ss.).
Concomitantemente, propicia documento cartorial justificativo de posse (e de propriedade), nos exatos contornos da tradição romanística que se vivia no ocidente, potencializada pelos bartolistas, e no caso identificada pelo princípio do uti possidetis, centro do Tratado de Madrid, de 1750, documento que nos garantiu terras além da linha de Tordesilhas, por obra bélica dos bandeirantes e diplomática de Bartolomeu de Gusmão.
A carta de Pero Vaz de Caminha é tratada nos manuais de história e de literatura como documento que atesta a presença da esquadra de Pedro Álvares Cabral no Brasil, legitimando-se a posse da terra, bem como vínculo cultural que nos faria herdeiros diretos da tradição lusitana.
Seus traços heróicos marcam posse fictícia, que no plano fático fez-se pela força das armas; justifica-se o genocídio, sem que se fale da carnificina que seria feita. O documento ganha sentido ainda mais hierático, quando se lembra que a carta ficara no esquecimento, perdida na Torre do Tombo em Portugal, ao lado de tantos outros documentos, à espera de uso. É documento híbrido. Trata-se originariamente de epístola, escrita por burocrata, e dirigida ao Rei de Portugal. Não é texto ficcional.
Obra de uso comum, de estudos de literatura, de autoria de Alfredo Bosi, participa da formatação do cânone festivo, embora, reconheça-se, de forma um pouco mais discreta:
O que para a nossa história significou uma autêntica certidão de nascimento, a Carta de Caminha a D. Manuel, dando notícia da terra achada, insere-se em um gênero copiosamente representado durante o século XV em Portugal e Espanha: a literatura de viagens. Espírito observador, ingenuidade (no sentido de um realismo sem pregas) e uma transparente ideologia mercantilista batizada pelo zelo missionário de uma cristandade ainda medieval: eis os caracteres que saltam à primeira leitura da Carta e dão sua medida como documento histórico (...) A conclusão é edificante (...) (BOSI, 2006, p. 14-15).
Trata-se de documento que pretende compartilhar de visão do paraíso (cf. BUARQUE DE HOLLANDA, 1992, p. 7), percepção que desenvolvia no mundo renascentista, inclusive em seu sentido iconográfico. Historiografia tradicional, centrada em Capistrano de Abreu, outorgou à carta de Caminha o sentido de “(...) diploma natalício lavrado à beira do berço de uma nacionalidade futura (...)” (CAPISTRANO DE ABREU, 1976, p. 159).
Leitura bem menos ingênua, sustenta louvação em favor do nativo, e produzida por Caminha, no sentido de que o escriba português não se furtava de “(...) deliciosa e esmerada descrição de seus corpos [dos ameríndios] e de seus ornamentos, não escondendo detalhe algum e pondo sempre em evidência dotes corporais que saltavam à vista” (WERNECK SODRÉ, 1976, p. 258).
Há quem sugira que a carta de Caminha seria no plano pragmático o que Os Lusíadas representariam no plano ideal; propondo-se “(...) abordagem realista de que a Carta de Caminha é a primeira página” (MARTINS, 1976, p. 56). De qualquer modo, a carta é “(...) a mais meticulosa dentre as fontes primárias que se conhecem acerca do descobrimento (...) (BUARQUE DE HOLLANDA, 2003, p. 50). De modo também mais equilibrado manifestou-se José Guilherme Merquior:
(...) Persistia o mito do Eldorado, base do desapego à terra e do tratamento predatório de seus recursos. O Brasil dos primeiros tempos foi o objeto dessa avidez colonial. A literatura que lhe corresponde é, por isso, de natureza parcialmente superlativa. Seu protótipo é a carta célebre de Pero Vaz de Caminha, o primeiro a enaltecer a maravilhosa fertilidade do solo. Assim, o conhecimento da terra compõem-se muitas vezes com intenções exclamativas, onde a vontade de elogiar reduz o exercício do espírito de análise (...) (MERQUIOR, 1977, p. 4).
Em sentido totalmente oposto, isto é, desmistificando a carta de Pero Vaz de Caminha (e seu conteúdo), o pensamento de Flávio Kothe, a partir do qual as presentes reflexões se fazem. Reproduzo alguns excertos:
A Carta de Caminha, que não foi escrita para ser publicada e cuja primeira edição é somente de 1817, tinha características adequadas para ocupar posto estratégico no que se queria que fosse a formação e a determinação do cânone da literatura brasileira, onde costuma ser vista como o seu grande momento inaugural. Isso é estranho, pois a Carta sequer é um texto literário nem de autor brasileiro. Descoberta no século XIX, ela não estava "no início": este foi construído, inventado (...) (KOTHE, cit., p. 199).
Segundo o autor citado, “fundamental não era o ‘descobrimento’, mas a apropriação jurídica da terra” (KOTHE, cit., p. 201). E continua, em passo que revela crítica literária que apreende o entorno jurídico de modo muito preciso:
A Carta de Caminha participa da ficção legitimadora da presença portuguesa, e ela mesma é uma ficção, mas uma ficção jurídica: um ato de posse, em nome do rei de Portugal, como se, ao invés de maçados, índios e papagaios, o universo inteiro estivesse a contemplar a apropriação dentro de um cartório, conforme a partilha do planeta feita pelo papa como intérprete oficial do ‘testamento de Adão e Eva’. A ficção impregna e domina essa realidade. O sentido de tal ficção é conferir um direito divino aos portugueses em relação ao Brasil, ficção que os brasileiros tendem a assumir como legitimação de sua identidade, a começar pela língua que usam. Não se trata, em primeiro lugar, de uma ficção literária, que justificaria a participação de tal texto no sistema de uma literatura nacional: trata-se sobretudo de uma ficção jurídica, com todo o aparato da cena montada por ocasião da Primeira Missa (KOTHE, cit., p. 202).
O traço jurídico do texto que se explora no presente ensaio, na compreensão do crítico citado, “(...) documento jurídico português, e não um texto literário brasileiro (...), isto é, foi uma ficção jurídica, não uma ficção literária” (KOTHE, cit., p. 204). E ainda:
A cerimônia de posse foi uma cena teatral, de caráter jurídico: uma cerimônia com a intenção cartorial de ser ato de Direito Internacional. A carta de Caminha participa dessa ficção jurídica: ato cartorial de declaração de propriedade, num lugar onde não havia cartório algum. Declarava-se a propriedade sobre uma ilha, e não havia ilha; não só havia ficção quanto ao objeto, mas se inventava uma repartição pública, para cumprir a ficção de uma partilha papal do planeta, com a ficção de um desvio de rota, pela ficção da vontade divina. O direito de propriedade pretendia basear-se numa posse – o uti possidetis – o "como possuis" do que não se possuía nem se sabia o que era. A posse do território era uma ficção (...) O sistema de propriedade rural brasileiro constrói-se à base dessa ficção: e com ele o sistema de poder e de organização social (KOTHE, cit., loc.cit.).
Tratar-se-ia de ficção cartorial metamorfoseada em ficção literária (cf. KOHTE, cit., p. 205). A carta fora aproveitada pela tradição que se desenvolveu no Brasil, e que nos vincula a Portugal, em todos os sentidos. Do ponto de vista linguístico, a concepção de uma fala oficial portuguesa, tal como constitucionalizado no art. 13 da Constituição de 1988. No sentido literário, marca-se linha supostamente evolutiva que nos aproxima definitivamente da tradição literária lusitana. No que toca ao sentido jurídico propriamente dito sedimenta-se arquétipo cartorial, relativo às linhas de posse e de propriedade da terra. Em princípio, ainda antes do modelo de sesmarias, e de capitanias hereditárias.
Na Carta, Caminha principia com explicação dos porquês da redação do documento. Lembra que ainda que Cabral e demais capitães da frota tivessem redigido relatos pertinentes ao achamento da terra nova, insistia que daria testemunho próprio. Caminha pede que o Rei tome por boa vontade a ignorância do autor da carta. Dizendo-se neutro, afirmava categoricamente que não aformosearia nem afearia o relato. O exórdio insiste em proposições como achamento e terra nova, o que provavelmente nos remete a categorias romanísticas clássicas de res nullius.
Caminha insiste que não falaria do caminho que traçaram (marinhagem e singraduras do caminho). O assunto seria mais de técnica náutica, e o burocrata não detinha conhecimento para tanto. Lembra que a esquadra partiu de Belém, numa segunda-feira, 9 de março. Alcançaram as Ilhas Canárias no dia 14 do mesmo mês. No dia 22 de março chegaram às Ilhas de Cabo Verde. Narrou que a nau de Vasco de Ataíde se perdeu. Seguiram caminho, depois de infrutíferas buscas por Vasco de Ataíde. No dia 21 de abril a esquadra deu conta de sinais de terra. No dia seguinte, 22 de abril, verificaram aves, às quais chamaram de fura-buxos. Terra à vista; ao que consta um monte, ao qual chamaram de Monte Pascoal. E a terra nominaram de Terra de Vera Cruz. Ancoraram. Avançaram por terra firme no dia seguinte, e então avistaram homens que andavam pela praia. O capitão Nicolau Coelho avançou pelo rio que então teriam encontrado. Por aqui não havia cartórios e nem tabeliães, mas o registro ficou, provando a supremacia da fonte escrita.
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Referências Bibliográficas:
KOTHE, Flávio R. O Cânone Colonial: ensaio. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
BUARQUE DE HOLLANDA, Sérgio (dir.). História Geral da Civilização Brasileira. Tomo I- Vol. 1- A Época Colonial. Do Descobrimento à Expansão Territorial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira. Vol. 1 (1550-1794). São Paulo: Cultrix, 1976.
MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides. Breve História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.
WERNECK SODRÉ, Nelson. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
CAPRISTANO DE ABREU, João. O Descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
BUARQUE DE HOLLANDA, Sérgio. Visão do Paraíso. São Paulo: Brasiliense, 1992.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira. São Paulo: Letras & Letras, 1998.
STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 2004. Tradução de Pérola de Carvalho e Alice Kyoto.