A preocupação com a administração da Justiça foi recorrente na obra de Martins Pena (1815-1848), carioca de família humilde que passou pelo nosso corpo diplomático, primeiro como amanuense, depois como adido em Londres. Autor de peças de teatro de sabor romântico, Martins Pena buscava seu mote junto à cultura popular. Arte correspondente aos ideais de uma burguesia em ascensão, a estética romântica conviveu com a livre concorrência, com a vitória do capital industrial, com o liberalismo (jurídico, filosófico e social), com a democratização, com o desenvolvimento da imprensa.
Martins Pena é autor de comédia de costumes e permite uma apreensão do ideário popular, especialmente em relação ao Direito. Lembro-me da peça O juiz de paz na roça, que é de 1842, segundo ano do reinado de D. Pedro II.
A peça, comédia em um ato, traz interessantíssimos diálogos onde se demonstra a corrupção de um juiz leigo. Prepotente, o juiz imaginário tem todos os adereços de sua condição. Anota Martins Pena ao descrever o ambiente da cena IX, preparando a entrada do juiz: “Sala em casa do juiz de paz. Mesa no meio com papéis; cadeiras. Entra o juiz de paz vestido de calça branca, rodaque de riscado, chinelas verdes e sem gravata.”[1]
Logo no primeiro despacho recebe um requerimento onde se lhe oferecem um cacho de bananas. Eis o teor do inusitado requerimento:
“Tomo a liberdade de mandar a V.Sª um cacho de bananas-maçãs para V.Sª comer com a sua bola e dar também a comer à Srª Juíza e aos Srs. Juizinhos. V.Sª há-de reparar na insignificância do presente; porém, Ilmo. Sr., as reformas da Constituição permitem a cada um fazer o que quiser, e mesmo fazer presente. (...)”[2]
Interessante a ironia de Martins Pena, ao invocar as liberdades constitucionais, ironizando o Ato Adicional de 1834, que sufragou perspectivas liberais defendidas pelo padre Diogo Antonio Feijó. Ao receber o presente o juiz remendou: “O certo é que é bem bom ser juiz de paz cá pela roça. De vez em quando temos nossos presentes de salinhas, bananas, ovos, etc, etc.”[3]
Na cena seguinte o juiz admoesta um senhor por dar embigadas numa senhora. É interessante seu vínculo à reserva legal:
“Está bom, senhora, sossegue. Sr. Inácio José, deixe-se destas asneiras, dar embigadas não é crime classificado no Código. Sr. Gregório, faça o favor de não dar mais embigadas na senhora; quando não, arrumo-lhe com as leis às costas e meto-o na cadeia. Queiram-se retirar.”[4]
Na continuidade de suas audiências, alguém invoca a Constituição. A resposta do juiz nos deixa perplexos: “A Constituição!... Está bem!... Eu, o juiz de paz, hei por bem derrogar a Constituição! Sr. Escrivão, tome termo que a Constituição está derrogada, e mande-me prender este homem.”[5]
O arrogante juiz derrogador da Constituição queria ser presenteado. Dois homens disputavam um leitão, vejamos como o juiz se comportou:
“Juiz — Sr. Escrivão, chame o meirinho. Espere, Sr. Escrivão, não é preciso. Meus senhores, só vejo um modo de conciliar esta contenda, que é darem os senhores este leitão de presente a alguma pessoa. Não digo com isso que mo dêem.
Tomás — Lembra Vossa Senhoria bem. Peço licença a Vossa Senhoria para lhe oferecer.
Juiz — Muito obrigado. É o senhor um homem de bem, que não gosta de demandas (...).”[6]
E quando as partes deixam a sala do juiz, ele lembra: “(...) Ó Sr. Tomás! Não se esqueça de deixar o leitão no chiqueiro”[7]. Ainda, a propósito de uns embargos, eis a reação do juiz: “Embargue ou não embargue, embargue com trezentos mil diabos, que eu não concederei revista no auto do processo!”[8] E depois de muito comer: “Agora que estamos com a pança cheia, vamos trabalhar um pouco.”[9] No que toca aos conhecimentos jurídicos do juiz, arrematou Martins Pena:
Escrivão — Vossa Senhoria vai amanhã à cidade?
Juiz — Vou, sim. Quero-me aconselhar com um letrado para saber como hei-de despachar alguns requerimentos que lá tenho.
Escrivão — Pois Vossa Senhoria não sabe despachar?
Juiz — Eu? Ora essa é boa! Eu entendo cá disso? Ainda quando é algum caso de embigada, passe; mas casos sérios, é outra cousa. Eu lhe conto o que me ia acontecendo um dia. Um meu amigo me aconselhou que, todas as vezes que eu não soubesse dar um despacho, que desse o seguinte: 'não tem lugar'. Um dia apresentaram-me um requerimento de certo sujeito, queixando-se que sua mulher não queria viver com ele, etc. Eu, não sabendo que despacho dar, dei o seguinte: 'Não tem lugar.' Isto mesmo é o que queria a mulher; porém (o marido) fez uma bulha de todos os diabos; foi à cidade, queixou-se ao Presidente, e eu estive quase não quase suspenso.
Escrivão — Vossa Senhoria não se envergonha, sendo um juiz de paz?
Juiz — Envergonhar-me de quê? O senhor ainda está muito de cor. Aqui para nós, que ninguém nos ouve, quantos juízes de direito há por estas comarcas que não sabem aonde têm sua mão direita, quanto mais juízes de paz.”[10]
A peça de Martins Pena sugere com crítica e mordacidade o desconforto causado pela cultura de alguns juízes do século XIX. Deve ser lida no contexto de seu tempo, quando o recrutamento de magistrados não era rigoroso como hoje. Além do que, é texto ficcional, veículo para uma crítica dos costumes. Por isso, o exagero, o burlesco e o tom irreverente.
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[1] Martins Pena, O Juiz de Paz na Roça, pág. 53.
[2] Martins Pena, O Juiz de Paz na Roça, pág. 53.
[3] Martins Pena, O Juiz de Paz na Roça, pág. 53.
[4] Martins Pena, O Juiz de Paz na Roça, pág. 54.
[5] Martins Pena, O Juiz de Paz na Roça, pág. 53 e 54.
[6] Martins Pena, O Juiz de Paz na Roça, pág. 55.
[7] Martins Pena, O Juiz de Paz na Roça, pág. 56.
[8] Martins Pena, O Juiz de Paz na Roça, pág. 56.
[9] Martins Pena, O Juiz de Paz na Roça, pág. 59.
[10] Martins Pena, O Juiz de Paz na Roça, pág. 59 e 60.