José Calvo Gonzalez é pensador fecundo do selo Direito e Literatura. Professor da Universidade de Málaga, na Espanha, Calvo concebe a Justiça também como um relato. Meticuloso, erudito, irreverente, observador dos variados pormenores que compõem o substrato da experiência cultural, Calvo fundamenta suas reflexões em ângulos inesperados e inusitados. Parece que devorou todos os autores.
E se a Justiça é relato, narrativa, revela-se por miríade de fórmulas, que transitam da expressão escrita para a energia gestual. A premissa substancializa o parágrafo de abertura de um de seus mais iluminados ensaios, ao mesmo tempo enigmático e claríssimo, paradoxo insinuado já no título, Justiça e Semionarrativa: Imagem, Gesto e Relato, ao qual o professor espanhol acrescentou tratar-se de uma preliminar a uma história que não abre capítulo.
Calvo inventariou quantidade exuberante de gestos, indicando meneios cartesianos, lânguidos, involuntários, tiques, espasmódicos, distintos, vulgares, tímidos, titubeantes, ambíguos, decididos, firmes, solventes, arrogantes, humildes, indolentes, irascíveis, persuasivos, não convincentes, dissuasórios, elevados, sublimes, baixos, miseráveis, patéticos, pusilânimes, graves, serenos, entre outros (cf. CALVO, 2002, p. 13).
O excerto literariamente lembra-nos as taxonomias de Jorge Luís Borges; do ponto de vista antropológico remete-nos à história de nossos gestos, do potiguar Luís da Câmara Cascudo.
A partir desse levantamento de gestos Calvo confessa-se atraído por gestos com fisionomia intelectual (cf. cit., p. 14). Gestos também qualificam etiquetas litúrgicas e ritualismos processuais (cf. cit., p. 15). A narrativa jurídica em sua dimensão pragmática é multiplicação de gestos, e também de momices. O martelo do magistrado que apela pelo silêncio, o dedo em riste do acusador, o olhar reverente do réu.
O espaço judicial comporta a troca de gestos, e de expressões, providenciando sonoplastia, decorando e animando o embate em busca de verdade comprometida tão somente com a resolução de um problema. A Justiça gesticula, movimenta-se, mimetiza-se em nichos de segurança imaginária. Para Calvo, nenhuma representação gestual da Justiça é natureza morta (cf, cit., p. 17).
Creio que é justamente essa verdade pretendida pela tradição ocidental que busca racionalidade e certezas, onde há somente incertezas e desatinos, que provoca em Calvo a admiração pela composição de gestos. É que gestos narram, aproximam-se e convergem para outros modelos expositivos e narratórios.
Calvo problematiza certezas inexistentes, lembrando-nos o dilema que opõe a hermenêutica às técnicas estruturalistas de desconstrução. Recorre ao mote não acredite no contista, mas no conto, acrescentando aporia demolidora, que indaga, afinal, por que se deve acreditar em qualquer um dos dois, conto e contista (cf. cit., p. 25). E acrescenta Calvo que a confiança não é a nota mais relevante da hermenêutica... (cf. cit., p. 27).
Calvo divide com Walter Benjamin uma dúvida que acompanha nossa cultura; questiona o que conta a estória, bem como o que é que ela conta (cf. cit., p. 26). Em língua portuguesa a questão ganha demãos esfíngicas na medida em que apartamos estória de história, narrativa ficcional de fala memorial, embora bem saibamos que esta última é muitas vezes aquela primeira, e que ficção e história se confundem, à luz de uma historiografia da suspeição. Ambos, estória e história, atormentaram Walter Benjamin, o filósofo da melancolia.
A percepção de Calvo afasta-se da dúvida do frankfurtiano que não foi para o exílio, na medida em que o professor espanhol sugere aproximações entre entornos de verdade, bem como de construção e de outorgas de sentido (cf. cit., p. 26). Para Calvo, em versão livre minha, “(...) contar uma estória faz de seu relato o ato mediante o qual tem lugar uma experiência cognitiva, a compreensão do sentido. Por conseguinte, em uma narração o que conta do ato do relato é compreender o sentido da estória contada no relato do narrador, como da estória contada na narração do relato” (cit., p. 29).
Calvo identifica a justiça também com o relato, como já dito, assumindo todos os problemas que narrativa e compreensão dos relatos possam provocar. A Justiça seria relato que não perdeu a capacidade de enlaçar uma continuidade narrativa, de prosseguir contando sua estória (...) (cit., p. 30).
O autor aqui estudado declara convicção firme que dá conta de que Justiça é relato que exprime destino sem desenlace, e que cativa com a sedução do conto nunca acabar. Há coincidências com a chave das 1001 noites.
No texto de Calvo alguns eixos temáticos de Homero são recapitulados. Lembra-se, indiretamente, e subliminarmente, do pomo da discórdia, da vingança de Éris, a deusa da discórdia, do afetuoso Paris, de Príamo, do infeliz Menelau e, por fim, de Helena, a mais bela entre as mortais, favorita de Afrodite (cf. cit., p. 31).
Concomitantemente, o professor espanhol comenta quadro de Alberto Dürer, a Justiça, qualificando experiência estética vivida ao longo do movimento contrarreformista (cf. cit., p. 34). Experiências estéticas reverenciam, refletem ou abominam experiências políticas, e disso faz prova o amplo conjunto iconográfico do classicismo, recorrente na afirmação de valores greco-romanos, retomados e redimensionados por euforia de consagração do ideário burguês.
Calvo provoca-nos com a referência à associação da espada e da balança na confecção da imagem da justiça (cf. cit., p. 39). Refere-se a um poder simbólico; explicitamente, “não há dúvidas que uma das principais funções do poder simbólico consiste basicamente em sua capacidade para conotar e denotar, isto é, associar ou evocar e indicar e referenciar, sistemas de símbolos que constelam em renovados universos de sentido, socializados através de imagens e de gestos reconhecíveis” (cit, p. 40).
A Justiça é relato que se manifesta por meio de intensa gesticulação, formal ou imaginária. Multiplica símbolos que firmam instâncias identificadoras do poder. Menos conteúdo metafísico do que experiência concreta sentida no cotidiano, a Justiça, na leitura de Calvo, é indicativa de experiência captada pela sedução das narrativas.
De tal modo, concluo com o professor da Universidade de Málaga, “se, como penso, a Justiça é assunto central da utopia civilizatória do direito, é sem dúvida correto, também que para sustentar a vertigem da realidade a Justiça unicamente tem o espelho dos relatos. Por isso, apenas quando a Justiça, de que possuímos apenas sombras e miragens (Cícero) se reconcilie com as revelações desse enfrentamento especulativo começa a ser possível não tanto superar os limites daqueles, quanto completá-los e estabelecê-los" (cit., p.45).
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Bibliografia
CALVO GONZÁLEZ, José. La Justicia como Relato. Málaga: Agora, 2002