Citado 12 vezes nos Artigos Federalistas[1], o barão de Montesquieu foi provavelmente o mais ambicioso dos cientistas políticos, um dos pensadores alucinados do século XVIII, na sempre precisa, cética e instigante imagem de Renato Lessa[2]. A obstinação com divisão de poderes e funções do Estado é tradição que remonta a Aristóteles, e que fez estações em Marcílio de Pádua e em Maquiavel, bem como na curiosa concepção de Locke, para quem o Estado protagonizaria suas funções a partir de dois órgãos, aos quais caberiam quatro tarefas básicas.
A estrutura da tripartição dos poderes em Montesquieu foi fixada no excerto relativo à constituição da Inglaterra, no capitulo VI, do livro décimo primeiro, da primeira parte do Espírito das Leis[3]. A um poder legislativo caberia a confecção das leis. A um poder executivo competiria o cuidado com as coisas do direito das gentes, isto é, a condução dos problemas da guerra e da paz, o que se entendia como um executivo do Estado. Um outro poder executivo castigaria os criminosos, julgando-os; são esses poderes para julgar que aproximariam esse segundo poder executivo do que contemporaneamente denominamos de poder judiciário.
Montesquieu talvez tivesse em mente apenas a defesa das liberdades individuais; quando legislativo e executivo se confundissem numa só pessoa não haveria espaço para a liberdade: leis tirânicas seriam executadas tiranicamente. Se a prerrogativa para o julgamento não fosse distinta das demais, o julgador se tornaria um legislador, exercendo poder autoritário sobre os cidadãos. Mais. Para Montesquieu a aliança entre o julgador e o executivo qualificaria a opressão.
Na imagem do senhor de La Brède tudo estaria perdido se um mesmo homem tivesse os três poderes. Para o Barão de Montesquieu, um príncipe despótico teria como meta a concentração os três poderes, instrumento para o uso despótico de suas prerrogativas.
Parece-me que Montesquieu contestaria um Judiciário permanente; os tribunais deveriam ser temporários e casuísticos. No entanto, legislativo e executivo poderiam se constituir em corpos permanentes: representariam uma vontade geral do Estado. Montesquieu pretendia um judiciário como instância de mera aplicação formal da lei, exigindo julgamentos pautados pelo texto preciso da norma aplicada. Caso contrário, teríamos opinião particular do magistrado, que faria com que não saberíamos com exatidão quais compromissos nós assumimos. Contemporaneamente, segurança jurídica seria o epíteto para a certeza na aplicação da lei. Na sempre reproduzida passagem que é antológica, o juiz seria a boca que pronuncia as palavras da lei.
Montesquieu defendia a prerrogativa do veto, a ser exercido pelo executivo em desfavor de leis aprovadas pelo legislativo, na medida em que se o executivo não contasse com o direito de limitar as iniciativas do legislativo, abrir-se-ia, para esse último, o amplo e terrível campo do despotismo. E porque nobres deveriam ser julgados por nobres, pode-se perceber em Montesquieu, na concepção de hoje, bem entendido, uma primitiva versão do que chamaríamos de foro privilegiado.
Ainda que as ideias de Montesquieu estivessem para a Ciência Política como as ideias de Galeno e Hipócrates estariam para a Medicina, ou o pensamento de Galileu e de Copérnico para a Física, isto é, ideias que o mundo contemporâneo já assimilou e pasteurizou, não se pode esquecer os pontos de partida. Montesquieu, no alto de sua ambição intelectual e de sua alucinação institucional é o pai fundador, para onde sempre voltamos.
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[1] O nome de Montesquieu é citado pelos federalistas nos artigos 9 (4 vezes), 43 (2 vezes), 47 (5 vezes) e 78.
[2] Conferir Cícero Araujo e San Romanelli Assumpção, Teoria Política no Brasil Hoje, in Carlos Benedito Martins e Renato Lessa, Ciência Política: Horizonte das Ciências Sociais no Brasil, São Paulo: ANPOCS, 2010, p. 75.
[3] Montesquieu, O Espírito das Leis, São Paulo: Martins Fontes, 2005. Tradução de Cristina Murachco. Apresentação de Renato Janine Ribeiro.