O livro seminal para as reflexões em torno do chamado pós-modernismo é de Jean-François Lyotard (1924-1998), A Condição Pós-Moderna[1]. Trata-se de um relatório que o filósofo francês preparou para o governo canadense, referente às condições do conhecimento em sociedades altamente desenvolvidas. O relato foi publicado e aceito pela comunidade acadêmica como um dos mais importantes referenciais para o estudo do pós-modernismo e logo de início faz-se menção a conceito chave, de narrativa:

O objeto desse estudo é a condição do conhecimento nas sociedades mais desenvolvidas. Eu decidi pelo uso da expressão pós-moderno para descrever essa condição. A palavra é de uso corrente no continente americano entre sociólogos e críticos; a expressão designa o estado de nossa cultura em decorrência do fluxo de transformações que, desde o fim do século XIX, têm alterado as regras do jogo para a ciência, a literatura e as artes. O presente estudo inserirá essas transformações em um contexto de crise das narrativas (LYOTARD, 1999, p. xxiii).

 

Por narrativa entende-se, assim, um conjunto de percepções e valores que decorrem de contexto cultural que se propõe a universalizar. A narrativa choca-se com a ciência, e essa última vincula-se à filosofia, que lhe proporciona discurso de legitimação. Lyotard chamava de moderna a ciência que se legitima com referências explícitas às grandes narrativas, como a dialética do espírito, a hermenêutica do significado, a emancipação do racional (...) ou criação de riqueza (LYOTARD, 1999, p. xxiii).

 

Fala-se, por exemplo, da narrativa do iluminismo, como aquela que promove acordo entre mentes racionais, que possibilita que o herói do conhecimento trabalhe com o objetivo de obter a paz universal, por meio de recursos éticos. Nesse sentido, justiça e verdade seriam grandes narrativas.

 

Simplificando ao extremo, Lyotard definiu pós-modernismo como atitude de incredulidade para com essas grandes narrativas, que estariam perdendo seus grandes heróis, viagens e objetivos (LYOTARD, 1999, p. xxiv). O pós-modernismo seria então caracterizado pelo descrédito para com percepções e valores que decorrem do contexto cultural iluminista, cujo projeto se pretendia universal.

 

Lyotard problematizou a própria definição de pós-moderno ao questionar onde poderíamos encontrar qualquer forma de legitimação, abandonadas as metanarrativas. Pretendia critério técnico, que não se preocupasse com a relevância do que é certo ou justo. Investindo contra um conhecimento que se definia como universal e científico, Lyotard o qualificava como uma mera espécie de discurso.

 

O conhecimento científico é produzido, negociado, vendido; seu objetivo é a materialização de relação de escambo; é moeda de troca. Não se nega que o conhecimento tornou-se o principal ingrediente na produção, ao longo das últimas décadas. A ciência ocupa posição primordial entre os recursos perseguidos pelos países (LYOTARD, 1999).

 

O conhecimento tornou-se commodity. Do mesmo modo como já se lutou por territórios, por matérias-primas, por mão-de-obra barata, nos encontramos às vésperas de guerras pelo domínio de conhecimento científico. Descortina-se novo campo para estratégias industriais, comerciais, políticas e militares.

 

A ideologia que pede transparência nas comunicações e que caminha ao lado da comercialização do conhecimento começa a perceber o Estado-Nação como fator de opacidade e de ruído comunicacional. Nesse sentido, a relação entre poderes econômico e político determinaria a motivação da produção do conhecimento. Os resultados são previstos (LYOTARD, 1999).

 

O conhecimento científico, no entanto, não representa a totalidade do conhecimento. O conhecimento científico sempre existiu concomitantemente a outros modelos de conhecimento, matizados por narrativas singelas. Volta-se ao problema da legitimação do conhecimento, central na epistemologia de Lyotard.

 

Vejamos a questão no contexto jurídico. A legitimação é processo por meio do qual ao legislador se permite que promulgue determinada norma como lei. Reflita-se sobre afirmação científica, concebida como descritiva para ser aceita como prescritiva. Uma série de circunstâncias deve legitimar a afirmação, para que sua cientificidade seja aceita pela comunidade à qual ela se dirige. Tem-se uma similitude entre a norma jurídica e norma científica, dado que ambas exigem legitimação, pela comunidade política ou pela comunidade científica, sendo que discursos e narrativas desempenham essa tarefa (LYOTARD, 1999, p. 8).

 

Quem decide o que é conhecimento e quem sabe o que é necessário que se decida são questões que nos indicam que o problema do conhecimento pode transcender ao problema da política. O conhecimento enquanto narrativa possui uma pragmática. Não pode ser reduzido à ciência e nem mesmo ao mero aprendizado.

 

É narrativa determinada por critérios de competência que ilustram como o conhecimento deve ser aplicado. Essas narrativas definem o que tem o direito de ser dito e feito. E porque fazem parte da cultura, as narrativas são legitimadas pelo simples fatos de que existem. Ensina-se o que se sabe. Porém, na medida em que o destinatário do processo didático reconhece o que não sabe, e o que está tentando aprender, insere-se na dialética da pesquisa, dividindo com a comunidade científica uma espécie de jogo linguístico (LYOTARD, 1999).

 

A narrativa tem como função legitimar o conhecimento e com ele se confunde. Lyotard dá como exemplo o cientista que aparece na imprensa ao anunciar uma descoberta. Descreve-se evento épico, que causa admiração, e que propicia reconhecimento popular. Em sociedades avançadas, a exemplo do Canadá, país no qual Lyotard desenvolveu sua pesquisa, os governos precisam desse tipo de reconhecimento popular para justificar as destinações orçamentárias que financiam a pesquisa científica.

 

O conhecimento pode esconder-se em circunstâncias elitistas. Do mesmo modo que afirmamos que todos têm o direito ao conhecimento, e a assertiva vale para países e para pessoas, rápido olhar em passado recente mostra-nos o conhecimento também guardado por uma mancheia de tiranos.

 

Assim, é um desafio para a democracia a potencialização e a disseminação do conhecimento, libertando-o do paroquialismo que de alguma maneira nos marca, e que tem sido recorrente em nossa história cultural.

 

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[1] LYOTARD, Jean-François. The postmodern condition: a report on knowledge. 12.ed. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 28/11/2024
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