On The Road, Jack Kerouac.
Li On the Road — Pé na estrada de Jack Kerouac, o clássico beat, a Bíblia hippie, chapada, desleixada que influenciou todo mundo que vêm questionando o status quo e o imperialismo pós 2° Guerra.
O meu primeiro pensamento foi: “devia ter lido isso 10 anos atrás, aos 18, calouro no curso de História, deixado o cabelo crescer, deixado se contaminar e cair na estrada”. Mas ao terminar, uma sensação enorme de melancolia tomou conta de mim. Foi uma experiência e percebi que era muito mais do que um livro de aventuras. Têm algo muito forte ali.
Kerouac é o santo protetor dos viajantes, mas não só. É também um tratado para gente, de vida comum e ordinária, que vive o maquinário do dia a dia, que bate o ponto e leva o pão para casa. Tem algo maior ali do que estilo de vida errante retratado em uma prosa ligeira, fruto da vida underground regado a jazz bebop e muita erva.
Sal Paradise e Dean Moriarty são mais do que dois personagens que se contrapõem e que se complementam. Duas cabeças, formas de pensar, que ultrapassam toda e qualquer superficialidade. Nunca é só isso. Eles sempre estão dispostos de irem mais longe e mais fundo. Yin e Yang — Kerouac deixa transparecer, e muito, toda essa coisa oriental nos seus livros(em outro momento da carreira escreve um livro sobre Buda) — se Sal é mais contido, observador, sempre pontuando para um bom senso, Moriarty é um louco desvairado, que tem a estrada como a sua casa e que vive um looping eterno, atravessando os EUA de ponta a ponta pela rota 66. Dean carrega essa loucura, significando a imagem da experiência direta, algo verdadeiro, na qual Paradise se inspira e se deixa conduzir. E era isso que Kerouac estava procurando. Uma experiência. Um contato direto com o divino. Kerouac é Paradise, e Neal Cassady — seu amigo beat (que mais tarde na vida, arruma um emprego dirigindo aquele ônibus maluco que levava o Grateful Dead, ácido roubado da CIA e distribuía pelos EUA sob a batuta de Ken Kesey, de Estranho no Ninho)— é Moriarty, o santo vagabundo. Burroughs, Gingsberg entre outros autores beatniks aparecem ao longo do caminho.
Não vou falar aqui sobre o enredo do livro, de como esses caras iam e voltavam pelos EUA, vivendo romances e de como vão parar no México, se vislumbrando com esse admirável mundo novo, indo a prostíbulos, dormindo na rua, sofrendo de disenteria e no fim cada um tendo o que realmente procurava, um a estrada, o outro a sorte de um amor tranquilo, como dizia Cazuza.
O que me impressionou foi a sinceridade e a substância. Algo que talvez venha do estilo de escrita, da história autobiográfica, das influências do autor, do jazz bebop, culminando nesse budismo que calçou a obra e que desemboca lá naquele pessoal new wave umas décadas mais tarde. Kerouac aos 25 fez essa viagem, entre 1947 e 1949, não fazia muito tempo que bombas atômicas tinham caído em Hiroshima e Nagasaki, e esse sentimento pessimista pós guerra permeia a escrita. Toda vez que passou por algum canto marginalizado da América do Norte, deixou claro que são aquelas pessoas que detêm uma sabedoria maior e que sabem viver a vida na mais pura essência, não ele “branco” que detinha privilégios. É assim no México, no seu relacionamento com Terry, nos bairros mistos de mexicanos e negros em Denver. Ele queria fazer parte daquilo.
A espontaneidade — reza a lenda, que Kerouac o fez em 3 semanas, regado a café e benzedrina(anfetamina?). Como numa enxurrada mística, escancarou a própria alma e as palavras jorraram e ele contou a história, que é parcialmente biográfica. Esses caras são da geração dos nossos avós. Talvez até antes. Tira-los do contexto em que eles escreveram, seria anacrônico. Porém, como toda bíblia que se preze, algumas passagens são lembradas até hoje, por conta de sua clareza e de uma consciência profunda. Kerouac deixa transparecer toda sua melancolia, quando várias vezes ao longo do livro nos fala sobre o peso da vida, sobre o inferno que é viver, mas que tudo isso pode ser suportado, pelo menos provisoriamente, com doses cavalares de um hedonismo febril (palavra que o próprio usa muitas vezes) — tudo é levado a última potência.
Beat é isso, é ritmo. Além do estilo do autor de escrever, dá narrativa, foi a própria maneira que esses caras viveram. Ter morrido como um reacionário, beberrão rejeitando seus seguidores foi apenas mais uma contradição de Kerouac. On the road é assim. Dos contraditórios, em busca de mais uma aventura, de mais uma explosão. Eu lembro de ter assistido o filme de Walter Salles, mas não dei muita bola a época, tinha que ser hoje, com a cabeça de hoje para desfrutar mais dessa obra de arte que Jack Kerouac escreveu. Fascinante é a melhor palavra que consigo achar nesse momento, talvez daqui uns 10 anos eu encontre outra.