No início do século XIX os ingleses levaram para o Museu Britânico relíquias do maior símbolo grego, o Parthenon. São ao todo 56 blocos e 19 estátuas: os mármores de Elgin. O epíteto nos remete o Conde de Elgin, embaixador inglês no Império Otomano. Os gregos insistiam na devolução dos objetos. Os britânicos resistiam. A pendenga suscita uma reflexão, a propósito da identidade grega, tema do presente artigo. E os mármores qualificam uma metáfora, que transcenda da cultura para as relações econômicas.

 

Imagine um visitante de pá na mão, preocupado em escavar nossa casa, coisas, vidas. Só o passado interessa ao viajante. Nada mais. É mais ou menos esse quadro exageradamente burlesco que o turista bronzeado das praias gregas (lindas) vem desenhando na República Helênica nome atual da Grécia. A modernidade quer curar suas sandices com um historicismo piegas e superficial.

 

Mas na Grécia vê-se muito mais do que isso. Muitos querem que o grego seja o regurgito do passado heroico, de Sófocles, Plutarco, Homero, Sócrates, Platão, Aristóteles, Diógenes, Eurípedes, Hipócrates, Aquiles, Jasão, Ulisses, Telêmaco, Orestes, entre reais e imaginários. Podem (felizmente) observa-se que o grego moderno está vivo, mais do que nunca, jogado do vulcão turcocrático (como se chama o domínio dos turcos, que durou quatro séculos).

 

Sente-se que o rancor ainda existe, chega até os cafés (instituição nacional), quando se bebe um café turco, pedindo-se um café ... grego. O interesse pela Grécia moderna qualifica o corte que separa o helenista clássico do filohelenista. Aquele ama a Grécia de Péricles (antiga), esse a Grécia de Karamanlis (atual). Mas nada impede que amemos ambas. Mesmo porque as duas (ou três, a contarmos a Grécia Medieval Bizantina) fundem-se numa realidade única.

 

A começarmos pela língua. Resíduos da sintaxe e do vocabulário clássico frequentam a fala moderna (neodemótico). Assim, pedimos Aspro Krasí e temos no rótulo do vinho branco o clássico correspondente Leukos Oinos. Entramos no Artopoleio (onde se vende pão, Arto, no grego antigo) e pedimos Psomi (pão no grego moderno).

 

Porém, o que faz o proficiente no grego clássico sentir-se incompreendido (assim como também os que conhecem o grego neotestamentário) é que, fora da Grécia, estuda-se a língua morta no código de pronúncia chamado erasmiano (do século XVI) cheio de ês, quando o grego falado na rua é cheio de is, o que os glotólogos chamariam de itacismo. A Grécia contemporânea é muito mais do que ideal nascido na humilhação de 29 de maio de 1453, quando os turcos otomanos tomaram Constantinopla, centro do cristianismo ortodoxo.

 

A ocupação veneziana em Creta, 300 anos depois, mostrou que os turcos não eram afinal imbatíveis. E isso impulsionou a ideia de libertação. O romantismo do século passado (e a morte de Lord Byron em Missolonghi é o exemplo mais acabado) fomentou o movimento de independência. Chegava a hora da expulsão do invasor, que dolosamente isolara a Grécia da evolução do ocidente; Renascimento, Reforma, Iluminismo, são categorias lá desconhecidas.

 

Ainda em guerra, em 1822, assinou-se a primeira Constituição da Grécia independente. Dez anos depois um rei bávaro, Oto, vai governar. Outros vieram, George (I e II), Constantino. Fixou-se Atenas como capital do novo país. Na virada do século os gregos nutriam a “grande ideia”, vislumbrando o domínio de territórios perdidos na Ásia e nas fronteiras da Albânia e Bulgária. Foram os anos em que Eleftherios Venezuelou eclipsou a vida grega. Nascido na ilha de Creta, é hoje nome de rua em Atenas.

 

Todavia, o desate da 1ª Guerra e as hesitações britânicas derrubaram o sonho. Em 1923 gregos e turcos migraram, reciprocamente. Uma troca de territórios evidenciou uma anomalia linguística: gregos que falavam turco, agora na Grécia, e turcos que falavam grego, agora na Turquia. De 1936 a 1941 os gregos viveram a ditadura de Metaxas. Admirador do militarismo prussiano, o ditador quis impor um individualismo disciplinado num país que vivera o triunfo da democracia ateniense e o ocaso do militarismo xenófobo espartano.

 

A invasão italiana de 1940 e a ocupação alemã, logo em seguida, enfrentaram uma resistência que já anunciava a guerra civil, das duas décadas seguintes. O golpe militar de 1967, a ditadura dos generais (tão valentemente denunciada no genial Z, de Costa Gravas) legou um nacionalismo ingênuo, um normativismo obtuso, uma violência estúpida, que cortava cabelo de adolescentes, que liam Marcuse e Sartre, e que amavam os Beatles e os Rolling Stones.

 

O regime caiu logo após a revolta estudantil de 1973, cristalizando-se a nova situação na Constituição de 1975. A esquerda venceu em 1980. O país aderiu à União Europeia. Tendências contemporâneas, que se agruparam em 1974, Nova Democracia, União Democrática, Movimento Socialista Pan-Helênico, homens como Andreas Papandreou (filho de George), Konstantinos Karamanlis, Khristos Sartezetakis, angustiam-se com a perda de incentivos americanos, decorrentes do desmonte da Guerra Fria, porém regozijam-se do apoio de parceiros europeus, em uma nova realidade continental. No aeroporto de Atenas já não dizem mais os gregos com destino a Paris, que vão para a Europa...

 

Mas a Grécia não é só a heterogênea comunidade das fronteiras balcânicas. E a Grécia não é só a abstrata admiração pelos fundamentos da civilização, pela filosofia, pelo teatro, pelas pregações do apóstolo Paulo, em Corinto e em Tessalônica. E a Grécia não é só a Acrópole, o Parthenon, o Licavetos, Creta, Egina, Póros, a Torre dos Ventos ou o Monte Atos. E a Grécia não é só o azul do céu e do mar. E a Grécia não é só a síntese da Elefteria (Liberdade). A Grécia é um ideal, muito mais do que um ideal. Muito mais do que os mármores de Elgin, metáfora para a crise contemporânea que a todos afeta.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 27/11/2024
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