O universo feminino grego da época clássica pode também ser descortinado em Antígona, conhecida peça de Sófocles, apropriada pelos saberes jurídicos, para efeitos de exemplificação de direito natural.

 

Sófocles nasceu em Colonos, perto de Atenas. Viveu em Atenas na época de Péricles, no século V A.C., momento de riqueza e de esplendor. Ambientou suas peças em torno de Édipo, o herói que matou o pai e se casou com a própria mãe. Antígona era filha incestuosa de Édipo, nascida do ventre da infeliz Jocasta.

 

Paul Harvey, em obra de referência de literatura clássica resume a poesia dramática de Antígona:

 

“Creonte, rei de Tebas, havia proibido sob pena de morte para os desobedientes o sepultamento do cadáver de Polineices. Antígona resolve desafiar o edito ultrajante e realiza os ritos fúnebres do irmão. Surpreendida nesse ato, ela é levada à presença do rei enfurecido. Antígona justifica seu procedimento como sendo ditado pelas leis soberanas dos deuses. Creonte, irredutível, condena-a a ser sepultada viva em uma caverna subterrânea.”

 

 Antígona desafiou a concepção positivista de norma, invocando regras transcendentais como justificativa para sua atitude de desafio. Sua ação deve ser avaliada num contexto, onde à mulher não era deferido o uso da lei, quando desprovida de direitos, num ambiente de poder masculino, mundo de homens. Ismênia, irmã de Antígona, realisticamente advertiu a heroína de que a condição feminina poderia diminuí-las:

 

“Convém não esquecer ainda que somos mulheres, e, como tais, não podemos lutar contra homens; e, também, que estamos submetidas a outros, mais poderosos, e que nos é forçoso obedecer a suas ordens, por muito dolorosas que nos sejam.”

 

O Coro, que talvez expressasse a opinião pública, admitia desigualdades, que em nada diminuiriam o gênero humano. Nesse sentido, utilizava-se a palavra “homem” como designativa de humanidade, em impressionante passo antropocêntrico:

“Numerosas são as maravilhas da natureza, mas de todas a maior é o homem!”

 

Os textos de Filosofia do Direito em geral tomam o partido de Antígona, na luta da heroína contra o aparente radicalismo do rei Creonte. Porém, um dos irmãos de Antígona fora privado de sepultura porque traíra a cidade, lutando ao lado do inimigo. Justifica-se Creonte: “Não é justo dar ao homem de bem, tratamento igual ao  do criminoso”. Creonte insistia na aplicação da lei. Antígona representava comportamento merecedor de punição: “Quem, por orgulho e arrogância, queira violar a lei, e sobrepor-se aos que governam, nunca merecerá meus encômios.” Creonte fixou a pena:

 

“Levá-la-ei a um sítio deserto; e ali será encerrada, viva, em um túmulo subterrâneo, revestido de pedra, tendo diante de si o alimento suficiente para que a cidade não seja maculada pelo sacrilégio.”

 

Antígona sofria também penalidades indiretas que a privavam de existência plena de mulher:

 

“E agora sou arrastada, virgem ainda, para morrer, sem que houvesse sentido os prazeres do amor e os da maternidade. (...) Deuses imortais, a qual de vossas leis eu devo obedecer?”

 

Argumento que, ao indicar mulher desafiadora das leis da cidade, Sófocles problematizava o papel feminino. Leitura contemporânea se mostra enamorada da fragilidade da heroína. Leitura pretérita percebe leis que são desafiadas pela protagonista da tragédia. Enquanto leitores discutem se leis devem ser cumpridas sem crítica (assunto supostamente afeto ao positivismo normativista da tradição kelseniana), apoiando Antígona em detrimento de Creonte, optando pelo direito natural, esquece-se a tradição que um dos irmãos da heroína havia traído a cidade.

 

Antígona é fonte primária para o conhecimento do direito penal grego. Indica-nos a vingança pública (em substituição à vingança privada), a concentração dos poderes nas mãos de uma só pessoa, a ausência do princípio da reserva legal, a morte não identificada como razão extintiva de punibilidade, o clamor social contra decisão injusta. É de Sérgio de Oliveira Médici, procurador de Justiça e professor de Direito Penal, a seguinte passagem:

 

"É verdade que, ao sepultar o corpo do irmão, Antígona age sozinha. Mas não merece a reprovação social e, em razão disso, a condenação dela por Creonte faz com que a população considere injusta tal decisão."

 

A peça indica aspecto relevante do Direito Ático, o temor que a privação da sepultura exercia sobre as pessoas. Fustel de Coulanges, na Cidade Antiga escreveu:

 

"Nas cidades antigas a lei punia os grandes culpados com um castigo considerado terrível: a privação de sepultura. Punia-se-lhe assim a sua própria alma, inflingindo-lhe um suplício quase eterno."

 

Antígona é recorrente em estudos de Filosofia do Direito a propósito do Direito Natural e do Direito Positivo, no que toca à independência daquele em relação a esse. Perguntada por Creonte se desobedeceria sua determinação, respondeu Antígona, num dos mais famosos passos da literatura clássica:

 

"Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu edito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! E ninguém sabe desde quando vigoram! Tais decretos, eu, que não temo o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham punir os deuses!

 

O excerto sugere dicotomia entre lei dos homens e lei dos deuses. Vislumbra perenidade nessa e volatibilidade naquela. Sobrepõe a lei divina à lei dos homens, subtraindo dos mortais o poder de diminuir as leis divinas, nunca escritas, mas irrevogáveis. 

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 27/11/2024
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