É no conto “O Morto”[1] que Jorge Luís Borges nos provoca (ainda mais uma outra vez), agora com a trajetória de Benjamin Otálora. Vítima da ambição e da própria inocência, Otálora oferece-nos oportunidade para que comentemos Maquiavel. E para que avaliemos o código de honra que marca a política da fronteira. E também para que cogitemos sobre as opções que tomamos. E a empreitada pode valer o esforço, nestes tempos de hoje, em que a Ciência Política parece se distanciar das humanidades, na advertência de Renato Lessa. Sigo com o conto.
Otálora é um suburbano de Buenos Aires, um compadrito (que em nota de rodapé Borges identifica como o plebeu da cidade, em oposição — topográfica — ao gaúcho, que seria o plebeu da planície e das coxilhas). Otálora sucumbiu na arrogância da ambição, que perseguiu de modo inconsequente. Não calculou que na política a perfídia pode ser uma forma de razão, se bem engendrada, com astúcia e atrevimento. A traição exige dissimulação.
E é Borges quem nos apresenta o ambicioso Otálora:
Benjamin Otálora taem, por volta de 1891, dezenove anos. É um rapagão de testa diminuta, de sinceros olhos claros, duro feito um basco; uma punhalada feliz revelou-lhe que é homem valente; não o inquieta a morte do adversário, tampouco a pronta necessidade de fugir do país[2].
E lá vai a trama. Otálora recebera uma carta, de um caudilho de Buenos Aires, com a ordem para que a entregasse a “um tal de Azevedo Bandeira, do Uruguai”. Otálora atravessou o rio. Chegou a Montevidéu. Azevedo Bandeira é o poderoso que um dia Otálora tentará derrubar, ainda que não tivesse bem nítido tal desejo, ou um plano, ou a compreensão de qualquer motivo que justificasse o projeto.
Sigo com o escritor argentino, no relato da viagem de Otálora e no encontro deste com Bandeira:
Otálora embarca, a travessia é tormentosa e rangente; no dia seguinte, vagueia pelas ruas de Montevidéu, com inconfessada e talvez ignorada tristeza. Não encontra Azevedo Bandeira; por volta da meia-noite, num armazém do Paso del Molino, assiste a uma altercação entre alguns tropeiros. Uma faca reluz; Otálora não sabe de que lado está a razão, mas é atraído pelo puro sabor do perigo, como outros pelo baralho ou pela música. Apara, no entrevero, uma punhalada baixa que um peão dá num homem de chapelete escuro e poncho. Depois, este vem a ser Azevedo Bandeira[3].
Jorge Luís Borges então nos conta que Otálora rasgou a carta, mote de toda a trama, após o entrevero que presenciou, e do qual participou ativamente, ainda que sem o saber. A carta poderia custar a Otálora a própria vida; revelaria aliança ou compadrio, ajuste ou entendimento, ofensa ou provocação. De que lado Otálora estava, ou deveria estar?
E quem era Bandeira? Segundo Borges:
(...) Azevedo Bandeira, apesar de fornido, dá a injustificável impressão de ser aleijado; em seu rosto, sempre próximo demais, estão o judeu, o preto e o índio; em sua catadura, o macaco e o tigre; a cicatriz que lhe atravessa a face é um enfeite mais, como o negro bigode hirsuto[4].
Talvez o primeiro erro de Otálora: não tomou partido, destruiu a carta. Tomar partido é sempre mais útil do que ficar neutro, no-lo disse Maquiavel no capítulo XXI do Príncipe. E talvez um segundo erro de Otálora, ainda com a cartilha do florentino que tenho nas mãos: não contabilizou a seu favor o que fizera a Bandeira. Desprezou o conselho que Maquiavel enunciou no capítulo XIX do Príncipe, no sentido de que se deve empenhar no reconhecimento da grandeza, da coragem, da seriedade e da fortaleza.
Otálora passou a conviver com o bando de Bandeira. Este o chamou para uma conversa. No encontro, Otálora conheceu uma mulher de cabelo ruivo e desarrumado. Era a companheira de Bandeira. Reconhecendo em Otálora coragem e força, Bandeira lhe encomendou uma tarefa, a ser desempenhada no setentrião argentino.
Otálora reconhecia (e admirava) virtudes em Bandeira. Percebia que ser membro do bando era motivo de consideração e temor. Facultava-lhe uma aura de reverência. Bandeira chefiava muitos negócios. Mais. Era um contrabandista. Otálora (movido pela ambição e por obscura fidelidade, segundo Borges) cogitou de ser contrabandista ele mesmo. Um ano depois, em Montevidéu, ao saber de suposta doença de Bandeira, visita-o:
O quarto está desarrumado e escuro. Há um balcão que dá para o poente, uma longa mesa com uma reluzente desordem de rebenques, relhos, cinturões, armas de fogo e armas brancas, há um remoto espelho que tem o cristal embaçado. Bandeira jaz de costas; sonha e se lamenta; uma veemência de derradeiro sol o define. O vasto leito branco parece diminuí-lo e escurecê-lo; Otálora nota as cãs, o cansaço, a frouxidão, os sulcos dos anos. Revolta-o que aquele velho esteja mandando neles. Pensa que bastaria um golpe para dar cabo nele[5].
Mais tarde (dias depois) Otálora estava no norte.É informado de que Bandeira para o setentrião também seguia, e que pretendia liquidar com um “forasteiro agauchado que está querendo mandar demais”. Brincadeira (ou não) a sugestão agradou a Otálora. E se o forasteiro entrudo fosse ele mesmo, tanto melhor; seu crescimento preocuparia o chefe, que pretendia derrubar. Terceiro erro: Otálora não usou da astúcia. Desprezou a advertência de Maquiavel, enunciada no capítulo XVIII do Príncipe: deve-se ser raposa para se conhecer as armadilhas e deve-se ser leão para se espantar os lobos. Otálora não percebia que Bandeira de tudo poderia suspeitar.
Otálora em seguida aproximou-se de um “ser de fala abrasileirada”, de nome Ulpiano Suaréz, e guarda-costas de Bandeira. Pretendia se associar ao capanga, em quem percebia (equivocadamente) apoio em seu plano agora engendrado. Ao contar seu projeto para Suaréz, de que tomaria o lugar de Bandeira, recebeu deste último imediata adesão. Esqueceu-se de outra advertência de Maquiavel, plasmada no capítulo XVIII do Príncipe, a propósito de que para quem engana há sempre alguém disposto a ser enganado...
Otálora deseja então o cavalo (alazão de crina e patas negras) e a mulher (a ruiva de cabelo desajeitado). Desconsiderou outra advertência do florentino, centrada no capítulo XIX do Príncipe: o que torna o usurpador odiado é ser tomador das propriedades e mulheres de quem domina. O desejo que Otálora sentia pela mulher de Bandeira era cheio de rancor. Estava na bravata, e não no despudor.
Ainda mais tarde, em tiroteio ocorrido com bando inimigo, Otálora assumiu a liderança do grupo de Bandeira. Usurpou o lugar do chefe odiado; comandou os companheiros uruguaios. Ferido por um tiro deixou que seu sangue manchasse o cavalo alazão. E ainda dormiu com a mulher do chefe. Ninguém mais respeitava a Bandeira; suas ordens não eram mais cumpridas. E ainda que se mantivesse numa chefia de direito, as ordens eram de fato dadas por Otálora. Até quando?
Cena final. Ao redor de um churrasco — jantam cordeiro recém-carneado e bebem um álcool arreliento[6] - - a ruiva de cabelo desajeitado vem até Otálora dando-lhe um ósculo, o recorrente símbolo da traição. Forçada por Bandeira, que a levou até Otálora (já que você e o portenho se gostam tanto, vá, agora mesmo, dar um beijo nele na frente de todos[7]), a bela moça tudo presenciou:
Arrasada em lágrimas, beija-lhe o rosto e o peito. Ulpiano Suaréz empunha o revólver. Otálora compreende, antes de morrer, que desde o início o traíram, que foi condenado à morte, que lhe permitiram o amor, o mando e o triunfo, porque já o davam por morto, porque para Bandeira já estava morto[8].
Onde Otálora falhou? Não tomou posição clara e inconfundível. Detentor de certa carta em nenhum momento refletiu sobre qual lado penderia; nem mesmo conseguiu definir com certeza as características das facções que lutavam na fronteira. Não contabilizou adequadamente para si a defesa que fizera de Bandeira. Perdeu a chance de se mostrar como o paladino do chefe, a quem dignamente poderia suceder. Não explorou uma condição de legitimidade, que poderia ser exagerada com o conteúdo da carta.
Pouco astuto, não levou a sério a lealdade de Suaréz para com Bandeira. A Suaréz o nosso Otálora propôs aliança, e contou com apoio. Pífio. O que Suaréz levaria com a destruição de Bandeira, por parte de Otálora? A mera pergunta teria melhor orientado nosso bandido picaresco. Suaréz mostrava-se disposto a ser enganado, até o momento em que a burla o aproveitasse. Elementar: melhor um chefe combalido — Bandeira — do que um usurpador corajoso. Ainda, o simbolismo do alazão e da ruiva fabulizam o erro de se investir nas propriedades e mulheres dos inimigos. Tudo tem sua hora.
E a fragilidade da ruiva provavelmente nos revela uma eterna condição das companheiras de todos os facínoras: sonham com a liberdade, que só conquistam com o próprio fim de suas vidas. É que desfrutaram das delícias do poder, sem dimensionar que nossas opções também nos custam exatamente o inverso do que usufruímos nos dias de glória... E isso Maquiavel sofreu na própria vida, quando amargou os últimos anos na pobreza e no esquecimento.
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[1] Borges, Jorge Luís, O Aleph, São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 26-32. Tradução de Davi Arriguci Jr.
[2] Borges, Jorge Luís, cit., p. 26.
[3] Borges, Jorge Luís, cit., p. 27.
[4] Borges, Jorge Luís, cit., p. 27.
[5] Borges, Jorge Luís, cit., p. 28.
[6] Borges, Jorge Luís, cit., p. 31.
[7] Borges, Jorge Luís, cit., p. 32.
[8] Borges, Jorge Luís, cit., loc.cit.