O Barão de Montesquieu, Charles Louis de Secondat, presidente do Parlamento de Bordeaux, crítico do absolutismo, da religiosidade exacerbada e da Igreja Católica, autor do Espírito das Leis, das Cartas Persas, e de um Comentário sobre a Grandeza e a Decadência dos Romanos é o tema do ensaio que segue.

 

Montesquieu nutria profundo respeito pelas instituições inglesas, especialmente pela liberdade civil que se gozava na Inglaterra. Montesquieu contribuiu para a fixação de Paris como centro da cultura europeia, bem como colaborou para a garantia do papel exercido pela língua francesa na história da cultura, ajudando para que esta língua se tornasse o idioma franco da intelectualidade do século XVIII.

 

As Cartas Persas foram publicadas em 1721. Uso o texto de uma tradução, “isto é, um compromisso sempre possível, mas sempre imperfeito entre dois idiomas” (DERRIDA, 2007, p. 7).

 

Nos últimos anos do reinado de Luís XIV, e nos primeiros anos da Regência, dois persas, Rica e Usbek, trocavam inúmeras cartas com correspondentes na Pérsia (hoje Irã), ao longo de animada viagem pela Europa pré-revolução francesa. O conteúdo das epístolas revela crítica corrosiva à França dos Bourbon, numa época de literatos suscetíveis e pedantes, de damas libertinas e jogadoras (cf. MAURO BARRETO, Introdução, in MONTESQUIEU, 1960, p. 11).

 

As Cartas retomam substrato importantíssimo para a tentativa de compreensão do momento em que foram escritas, e nessa qualidade substancializam documentos primários. No caso das Cartas Persas tem-se elemento ficcional, porém indicativo seguro da época e lugar que o Barão de Montesquieu se propunha a criticar.

 

Traço irônico é explicitado logo na primeira carta: “Somos Rica e eu talvez os primeiros persas que, levados da sede de aprender, saímos do nosso país, abandonando as doçuras de uma vida sossegada para afadigar-nos em busca a sabedoria” (MONTESQUIEU, cit., p. 31).

 

Enquanto Rica viaja, um eunuco guarda as mulheres de Usbek; este último refere-se àquele primeiro como “o guarda fiel das mais formosas mulheres da Pérsia” (MONTESQUIEU, cit., p. 32). É impressionante o relato do eunuco, que do serralho (harém) insiste que ainda detém certo poder; a ambição é relegada à condição de paixão (MONTESQUIEU, cit., p. 41). Paris foi descrita pelos persas, isto é, bem entendido, o próprio Montesquieu dava conta da capital dos franceses:

 

“Estamos em Paris há um mês, e sempre em contínuo movimento. (...) Tão grande é Paris (...) e tão altas são altas são as casas, que se dissera serem astrólogos todos os moradores. Bem avalias que uma cidade edificada nos ares, com seis ou sete casas umas em cima das outras, está sobremaneira povoada, e qual seja a confusão quando todos saem à rua. Talvez não acredites: há um mês que aqui estou e inda não vi ninguém andar. Ninguém se aproveita mais da máquina do corpo que os franceses, que correm e voam: fa-los-iam cair em delírio as lentas carruagens da Ásia e o passo mesurado dos nossos camelos (...) não posso tolerar são as cotoveladas que me dão regular e periodicamente (...)” (MONTESQUIEU, cit., p. 64).

 

O rei foi apresentado de modo zombeteiro, desafiando-se imagem que soberanos franceses insistiam em difundir, especialmente, no caso de Luís XIV. Consta que houve intenso trabalho para a construção da imagem pública de Luís XIV, especialmente mediante ampla produção iconográfica, a exemplo do mármore trabalhado por Gilles Guérin, que talha um Luís XIV todo poderoso derrotando a fronda (cf. BURKE, 1994, p. 50). O Luís XIV das Cartas Persas é outra figura, despida de todo aquele construído que o elevou à categoria de rei-sol:

 

“O mais poderoso príncipe da Europa é o rei da França. Não possui minas de ouro como o seu vizinho, o rei da Espanha; é, porém, mais rico do que ele, porque tira sua riqueza da vaidade da riqueza de seus súditos, mais inesgotável do que as minas. Viram-no empreender ou sustentar grandes guerras sem outros fundos que a venda de títulos honoríficos, e por um prodígio do orgulho humano, eram pagos os seus exércitos, fortificadas as suas praças e equipadas as suas esquadras. Além disso, este rei é um grande mágico, que manda até na inteligência dos seus vassalos, fazendo-os pensar como ele quer. Se há um milhão de escudos no seu tesouro, e tem necessidade de dois, persuade-os de que um vale tanto quanto dois, e acreditam-lhe. Se tem que sustentar uma guerra difícil, e está sem dinheiro, mete-lhes em cabeça que um pedaço de papel é dinheiro, e imediatamente se convencem disso. Chega a tal ponto que lhes faz crer que os cura de toda casta de males com tocá-los, tanto é a força e o poderio que tem nos ânimos”. (MONTESQUIEU, cit., p. 65).

 

O motejo ganhava modo superlativo quando Montesquieu fazia Usbek observar que o rei possuía caráter prenhe de contradições. Entre outras, e como já observado, os viajantes imaginários riram do fato de que o rei contava com “um ministro de dezoito anos e uma amante de oitenta” (MONTESQUIEU, cit., p. 85).

 

Os jardins do palácio real eram magníficos, havia mais estátuas na área do jardim do que habitantes em cidade populosa... (cf. MONTESQUIEU, cit., loc.cit.). Autoridades eclesiásticas não foram poupadas. Montesquieu referiu-se ao papa de modo também sarcástico:

 

“Não te espantes com o que digo deste príncipe, que outro mágico há maior do que ele, o qual manda tanto no seu espírito quanto ele nos demais. Chama-se este mágico o papa: ora faz-lhe crer que três são um; ora, que o pão que comemos não é pão, nem é vinho o vinho que bebemos, e outras mil coisas deste jaez”. (MONTESQUIEU, cit., loc.cit.).

 

A crítica à Igreja é encontrada em várias outras seções do livro. O anticlericalismo é traço característico no pensamento iluminista. Dito de autoria incerta fazia que se pensasse que a felicidade reinaria na face da Terra quando se enforcasse o último rei nas tripas do último padre. E exemplifico com mais uma estocada de Montesquieu, que também atacava diretamente o dirigente maior da Igreja Católica:

 

“O chefe dos cristãos é o papa, velho ídolo a quem, meramente por costume, queimam incensos. Fazia-se temer outrora até dos príncipes, pois os depunha com tanta facilidade, como os nossos magníficos sultões depõem os reis de Irimeta e Geórgia. Mas agora ninguém o teme. Diz-se ser sucessor de um dos primeiros cristãos, que há nome S. Pedro, é certo que a herança é pingue; pois possui imensos tesouros e é senhor de um dilatado país”. (MONTESQUIEU, cit., pp. 73-74).

 

Montesquieu alcançou vários pontos da estrutura eclesiástica, e a crítica aos bispos também era contundente. O conjunto deve ser compreendido, do ponto de vista de uma historiografia pretensamente marxista, em estruturação ideológica que se prestava a papel importante na luta de classes, não obstante a figura circunstancial de estamento, e a oposição da burguesia à nobreza e ao clero:

 

“Os bispos são uns príncipes da lei que lhe estão subordinados, e sob sua autoridade desempenham dois cargos muito diferentes. Quando estão congelados, fazem, como ele, artigos de fé; mas, quando estão separados, quase não têm outra função que dispensar do cumprimento da lei. Porque hás de saber que está a religião cristã cheia de preceitos mui dificultosos de praticar; e tendo visto que era mais fácil ter bispos que dispensem de suas obrigações do que cumpri-las em benefício da pública utilidade, tomaram o primeiro alvitre (...) Os bispos não fazem artigos de fé, por moto próprio, e há uma infinidade de doutores, os mais deles jesuítas, que levantam mil novas questões acerca da religião; deixam-nos discutir muito tempo e dura a guerra até que uma decisão venha pôr-lhe termo. Por isso posso assegurar-te que nunca houve reino em que tenha havido tantas guerras civis como o de Cristo”. (MONTESQUIEU, cit., p. 74).

 

Mencionou-se a Inquisição e o costume de se presumir a culpa de todos os acusados. Na Europa se acreditava que os homens seriam maus por natureza... (cf. MONTESQUIEU, cit., p. 75). A crítica contra o modelo tributário fora também muito sutil. Observou o suposto autor da carta que “tão caro está o vinho em Paris com os impostos com que o gravam, que parece têm intuito de obrigar a que executem os preceitos do divino Alcorão, que veda este licor”. (MONTESQUIEU, cit., p. 79).

 

Em linhas gerais, Montesquieu insistia que necessidades reais de contribuintes não poderiam ser exploradas em nome de necessidades imaginárias de governantes. Montesquieu mostra-nos que os viajantes zombavam dos costumes europeus, do modo de vida e, em especial, há excerto referente às mulheres, de autoria atribuía a Usbek, e endereçado a Roxana, que ficara na Pérsia:

 

“Se te houvesses criado neste país, não terias ficado tão perturbada. Aqui as mulheres perderam todo recato; apresentam-se aos homens com a cara descoberta, como se quisessem solicitar a sua própria derrota; seguem-nos com os olhos; veem-nos nas mesquitas, nos passeios e nas próprias casas, e não conhecem o uso de se servirem de eunucos. Em vez da nobre candura e do pudor amável que reina entre vós, vê-se nelas um brutal despejo, a que não é possível a gente acostumar-se”. (MONTESQUIEU, cit., p. 69).

 

Os viajantes persas perceberam a luta de classes, anunciando-se agudo conflito que conduziria à Revolução Francesa. Nesse sentido, os persas de Montesquieu captavam o que de mais grave se vivia na França, então um vulcão quase pronto para entrar em erupção. Para os viajantes imaginários:

 

“Em França há três espécies de estados: a Igreja, a espada e a toga. Cada um deles dedica um soberano desprezo aos outros dois; e assim, tal que devera ser desprezado por ser um parvo, muitas vezes só o é por ser togado. Até os mais ínfimos artífices contendem acerca da excelência da arte que escolheram; cada um se sobrepõe ao que abraçou outra profissão, segundo a ideia que para si formou da superioridade da sua”. (MONTESQUIEU, cit., p. 92).

 

Montesquieu criticou sociedade francesa de seu tempo, especialmente alguns grupos da nobreza, que se fechavam nos salões, que abrigavam discussões intermináveis, onde desfilavam figuras extremamente vaidosas:

 

“Por toda a parte vejo homens que sem cessar falam de si mesmos; as conversações deles são um espelho que sempre retrata a sua impertinente cara. Falam das mais pequenas coisas que lhe sucederam, e querem que a eficácia com que as pintam, as engrandeça aos olhos alheios; tudo fizeram eles, tudo viram, tudo disseram e tudo pensaram; são modelo universal, matéria inesgotável de comparações, inextinguível fonte de exemplos. Oh, que desenxabida coisa é o louvor que recai no lugar donde parte!”. (MONTESQUIEU, cit., p. 104).

 

O papel satírico que as Cartas Persas desempenharam indica a misantropia de seu autor para com o modelo normativo que então se vivia, e que era centrado no Estado, deixando-se de lado qualquer outra tentativa de cogitar de modelo de resolução de problemas que possibilitasse avanço efetivo para quem eventualmente precisasse da atuação estatal, em favor de quem mais precisasse. Tudo muito atual.

 

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BIBLIOGRAFIA

 

BURKE, Peter. A Fabricação do Rei- A construção da imagem pública de Luís XIV. São Paulo: Jorge Zahar, 1994. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges.

 

DERRIDA, Jacques. Força de Lei. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Tradução de Leyla Perrone-Moysés.

 

GAY, Peter. The Enlightenment- The Rise of Modern Paganism. New York: W.W. Norton, 1995.

 

KOTHE, Flávio R. O Cânone Colonial. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1997.

 

LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Os Bruzundangas. Belo Horizonte: GARNIER, 1998.

 

MONTESQUIEU, Barão de – Charles Louis de Secondat. Cartas Persas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1960. Tradução e introdução de Mauro Barreto.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 26/11/2024
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