Os Bruzundangas é texto imperdível de Lima Barreto que se mostrou implacável com a política e políticos de seu tempo, a exemplo de recorrente turra com o Barão do Rio Branco. Lima Barreto aproveitou dos Bruzundangas para um ajuste de contas com seu tempo, fulminando a Constituição, as eleições e até o formalismo literário, tema do presente artigo.
A literatura oficial, canonizada, que marginalizava o escritor fluminense, e que não o aceitou como membro da Academia Brasileira de Letras, foi escarnecida em os Bruzundangas na figura dos Samoiedas.
De fato, Lima Barreto não perdoava o formalismo dos parnasianos. Criticava uma literatura que pouco dizia, que pouco tinha a dizer e que se preocupava exclusivamente com métricas. A literatura de Bruzundanga foi apontada como literatura estrangeira, em clara alusão aos parnasianos que Lima Barreto não aceitava. Lima Barreto introduziu crítica à literatura convencional em gancho muito bem engendrado:
“Queria evitar, mas me vejo obrigado a falar na literatura da Bruzundanga. É um capítulo dos mais delicados, para tratar do qual não me sinto completamente habilitado. Dissertar sobre uma literatura estrangeira supõe, entre muitas, o conhecimento de duas cousas primordiais: idéias gerais sobre literatura e compreensão fácil do idioma desse povo estrangeiro. Eu cheguei a entender perfeitamente a língua da Bruzundanga, isto é, a língua falada pela gente instruída e a escrita por muitos escritores que julguei excelentes; mas aquela em que escreviam os literatos importantes, solenes, respeitados, nunca consegui entender, porque redigem eles as suas obras, ou antes, os seus livros, em outra muito diferente da usual, outra essa que consideram como sendo a verdadeira, a lídima, justificando isso por ter feição antiga de dois séculos ou três. Quanto mais incompreensível é ela, mais admirado é o escritor que a escreve, por todos que não lhe entenderam o escrito.” (LIMA BARRETO, 1998, p. 20).
Constando preconceito linguístico típico de nossa cultura, Lima Barreto identificava língua falada, outra escrita (por alguns bons escritores), bem como uma terceira, muito diferente da usual, usada pelos escritores formalistas. Trata-se de língua incompreensível. E quanto mais difícil, mais se valorizava o escritor. José Veríssimo e Duque Estrada eram os críticos que ditavam a moda formal. Bom escritor seria aquele que escrevia formalmente.
O assunto, preconceito linguístico, tem sido retomado, entre outros, por professor da Universidade de Brasília, Marcos Bagno, para quem não se tem gramática, tem-se dramática... O escritor convencional, parnasiano e simbolista, foi caricaturado por Lima Barreto:
“ (...) a bagagem deles [dos literatos] consta de conferências, poesias recitadas nas salas, máximas pronunciadas na intimidade de amigos, discursos em batizados ou casamentos, em banquetes de figurões ou em cerimônias escolares, cifrando‑se, as mais das vezes, a sua obra escrita em uma plaquette de fantasia de menino, coletâneas de ligeiros artigos de jornal ou num maçudo compêndio de aula, vendidos, na nossa moeda, à razão de quinze ou vinte mil‑réis o volume. Estes tais são até os escritores mais estimados e representativos, sobretudo quando empregam palavras obsoletas e são médicos com larga freguesia. São eles lá, na Bruzundanga, conhecidos por ‘expoentes’ e não há moça rica que não queira casar com eles. “ (LIMA BARRETO, cit., p. 24).
Para Lima Barreto, eram estimados e representativos os representantes daquele grupo de autores que nada havia escrito; eram oradores de festinhas de aniversário. Usavam palavrório rebarbativo, expressões perdidas no tempo. E as mocinhas ricas os queriam como maridos...
Lima Barreto não se traía, falava de si o tempo todo. É que, ao que consta, sempre fora preterido pelas mocinhas casadoiras, que o desprezavam, porque pobre e mulato. E Lima Barreto continuava repreendendo os literatos do país imaginário:
“ O que caracteriza a literatura daquele país, é uma curiosa escola literária lá conhecida por ‘Escola Samoieda’. Não que todo o escritor bruzundanguense pertença a semelhante rito literário; os mais pretensiosos, porém, e os que se têm na conta de sacerdotes da Arte, se dizem graduados, diplomados nela. (...) Só querem a aparência das coisas. Quando (em geral) vão estudar medicina, não é a medicina que eles pretendem exercer, não é curar, não é ser um grande médico, é ser doutor; quando se fazem oficiais do exército ou da marinha, não é exercer as obrigações atinentes a tais profissões, tanto assim que fogem de executar o que é próprio a elas. Vão ser uma ou outra cousa, pelo brilho do uniforme. Assim também são os literatos que simulam sê‑lo para ter a glória que as letras dão, sem querer arcar com as dores, com o esforço excepcional, que elas exigem em troca. A glória das letras só as tem, quem a elas se dá inteiramente; nelas, como no amor, só é amado quem se esquece de si inteiramente e se entrega com fé cega. Os samoiedas (...) contentam‑se com as aparências literárias e a banal simulação de notoriedade, umas vezes por incapacidade de inteligência, em outras por instrução insuficiente ou viciada, quase sempre, porém, por falta de verdadeiro talento poético, de sinceridade, e necessidade, portanto, de disfarçar os defeitos com pelotiquices e passes de mágica intelectuais”. (LIMA BARRETO, cit., p. 25).
Lima Barreto desdenhava parnasianos que viviam fazendo odes a vasos gregos. Para Lima Barreto, antecedendo-se a crítica da segunda metade do século XX, a Grécia serve para tudo, especialmente na Bruzundanga... (LIMA BARRETO, cit., p. 26). Os formalistas eram identificados por Lima Barreto como intratáveis, cheios de idiossincrasias:
“Não há como discutir com eles, porque todos se guiam por idéias feitas, receitas de julgamentos e nunca se aventuram a examinar por si qualquer questão, preferindo resolvê‑las por generalizações quase sempre recebidas de segunda ou terceira mão, diluídas e desfiguradas pelas sucessivas passagens de uma cabeça para outra cabeça.” (LIMA BARRETO, cit., p. 26).
O negócio dos samoiedas era, segundo Lima Barreto, “ (...) encontrar uma espécie de tabuada que lhes fizesse multiplicar a versalhada (...) como as tais regras poéticas do suposto príncipe eram bem acessíveis à sua paciência de correcionais, adotaram‑nas como artigos de fé, exageraram‑nas até ao absurdo” (LIMA BARRETO, cit., p. 29). Denunciava estilo que não era nosso, que vinha de outras plagas, de difícil aplicabilidade, e de excesso de formalidade. É que:
“ A Bruzundanga, como sabem, fica nas zonas tropical e subtropical, mas a estética da escola pedia que eles se vestissem com peles de urso, de renas, de martas e raposas árticas. (...) Estes, porém, crentes na eficácia da vestimenta para a criação artística, morrem de fome, mas vestem‑se à moda da Sibéria. (...) Nenhum deles tinha visto um iceberg, mas gabavam os ouvintes a moção com que o outro traduzira em verso o espetáculo desse fenômeno das circunvizinhanças dos pólos.” (LIMA BARRETO, cit., p. 30).
A sátira ganhava contornos ainda mais fortes quando Lima Barreto identificava as leis dessa literatura formal, enunciando-as, da forma seguinte:
“1.o Sendo a poesia o meio de transportar o nosso espírito do real para o ideal, deve ela ter como principal função provocar o sono, estado sempre profícuo ao sonho.
2.o A monotonia deve ser sempre procurada nas obras poéticas; no mundo, tudo é monótono (Tuque‑Tuque).
3.o A beleza de um trabalho, poético não deve ressaltar desse próprio trabalho, independente de qualquer explicação; ela deve ser encontrada com as explicações ou comentários fornecidos pelo autor ou por seus íntimos.
4.o A composição de um poema deve sempre ser regulada pela harmonia imitativa em geral e seus derivados.” (LIMA BARRETO, cit., p. 32).
Lima Barreto criticou as instituições de seu tempo. E os que o criticam identificam certo sentimento de exclusão, que teria fomentado muito do modo como Lima Barreto via o mundo. É, sem dúvidas, escritor fundamental para tentativa de compreensão da alma nacional.
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Bibliografia
BAGNO, Marcos. Dramática da Língua Portuguesa-Tradição Gramatical, Mídia & Exclusão Social. São Paulo: Loyola, 2005.
KOTHE, Flávio R. O Cânone Colonial. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1997.
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Os Bruzundangas. Belo Horizonte: GARNIER, 1998.