Alguma pesquisa jurídica acadêmica contemporânea revela quatro problemas metodológicos que exigem enfrentamento. Refiro-me à utilização de referenciais históricos pouco consistentes, ao superficial conjunto de alusões ao Direito Comparado, à aproximação confusa com outros campos do saber e a técnicas argumentativas e discursivas apoiadas tão somente em argumentos de autoridade, ainda que disfarçados em excertos de jurisprudência. Percebe-se muito pouco de imaginação institucional. É a escravidão para com o passado, a reprodução do que já feito, a apologia da sapiência dos mortos.
Há textos elaborados em âmbito acadêmico, de matéria jurídica, com pretensão científica que são geralmente precedidos por introduções históricas que revelam recorrente reprodução de lugares-comuns, qualificando-se esforço descritivo de bases historiográficas muito duvidosas. Esse pesquisador imaginário tenta comprovar que institutos jurídicos contemporâneos substancializam o cume de longa linha evolutiva. Trata-se de uma técnica empobrecedora. Tem-se apenas exibicionismo de erudição, muito característico de nossos modos bacharelescos.
Em algumas (ou muitas) páginas, esse pesquisador imaginário passa rapidamente do Código de Hamurabi para a Lei das XII Tábuas, retorna para os sábios da Grécia antiga, corre para o Edito de Caracala, encontra alguma curiosidade penal em algum ordálio medieval, faz apologia à Revolução Francesa, retorna à Magna Carta, passa em revista todas as constituições brasileiras, naquilo que todos sabemos.
Há também forte tendência para coleta de exemplos e reflexões no Direito Comparado. Percebe-se deslocamento do contexto dos institutos estudados; não se reconhece a inexistência de um esperanto jurídico. Não se explora a teoria das transposições normativas, que nos indica que a mera cópia de modelo alheio pode provocar resultados inesperados.
É quando vale a pena se lembrar do fato (ou da metáfora) do jogo de cricket nas ilhas Trobriand, como se vê em filme clássico de Gary Kildea, a partir de insumo antropológico de Jerry Leach.
Conta-se que na Melanésia os nativos decidiam disputas de modo cruel. Missionários ingleses teriam ensinado aos melanésios o jogo de cricket, como uma fórmula mais pacífica e educada para resolução de problemas. Voltaram alguns anos depois. Verificaram, felizes, que o cricket estava disseminado na ilha. No entanto, observaram, espantados, que as regras foram transformadas, e que uma bola que saia do campo poderia ser punida com a morte...
A passagem também é encontrada no livro de Direito Administrativo de Marçal Justen Filho, bem a propósito da ingenuidade que decorre de copiarmos institutos de outras culturas, jurídicas até. São da assertiva exemplos muito nítidos o amigo da corte que pode se transformar no amigo da parte (como se intui da brilhante tese de Damares Medina, a propósito da influência de terceiros no processo decisório do STF) e a Medida Provisória, que não se afeiçoa ao modelo presidencialista.
O Direito Comparado não é argumento de exemplo, e nem adereço retórico. É importante insumo à reflexão crítica. Resta questão que persiste, e que não parece suscitar resposta simples e imediata, no sentido de que seria o Direito Comparado um método ou uma disciplina autônoma. Afinal quem tem razão?
Percebe-se também um deslocamento do contexto dos institutos estudados. Neste Direito Comparado macunaímico não se compara, não se atribuem juízos de valor. O Direito Comparado se transforma em curiosidade meramente descritiva. Deve-se reconhecer que não há um esperanto jurídico. O Direito Comparado transita num diálogo entre culturas.
Verifica-se ainda uma permanente metodologia de aproximação do Direito com outros campos do saber, a exemplo de Direito e Economia, Direito e literatura, Direito e Psicanálise.
Há graves problemas metodológicos, que decorrem de certo abuso de conhecimento, de quem pretende tratar a Economia, a literatura ou a Psicanálise como estruturas epistemológicas de dever-ser.
Há trabalhos que pretendem explicar o Direito a partir da Economia. Trata-se de uma investida na análise econômica do Direito. O campo é riquíssimo, radica no utilitarismo de Bentham e no pragmatismo norte-americano. Deve-se, no entanto, transcender à métrica do custo e do benefício, bem como do discurso do custo dos direitos, que se tenta impugnar com a metafísica da reserva do possível. É preciso estudar economia com seriedade.
Há trabalhos jurídicos que cotejam a literatura e as técnicas de crítica literária. Repudiado por alguns (Richard Posner), festejado por outros (José Calvo González), o selo “Direito e literatura” aproxima o problema jurídico do argumento das humanidades. Está virando moda. Há o fun factor, como dizem os norte-americanos; isto é, buscar o jurídico no argumento literário é fonte de prazer. Fica gostoso estudar Direito. Mas será que se pode dizer o mesmo de uma tentativa de se percorrer rota inversa, isto é, de se buscar, com obsessão, o argumento literário no Direito?
Pode-se verificar também alguma (embora tímida) incursão na teoria psicanalítica, ainda que fora de um contexto de psicopatologia forense, mais afeta à medicina legal, como se estudava a não muito tempo atrás.
A teoria psicanalítica pode-se aproximar de problemas hermenêuticos (em sentido estrito) e de teoria social (o que também intrigante).
Verifica-se também o uso de referenciais discursivos que desprezam pesquisas em fontes primárias (jurisprudência e textos legais, contemporâneos ou antigos) em favor de mera recolha de autores. A jurisprudência transforma-se em mero argumento, em favor de uma tese, uma prestação de contas entre conceitos defendidos e soluções institucionais declaradas pelo Judiciário. As fontes primárias são desprezadas, ainda que se possa alcançá-las, sem muito esforço de pesquisa de bibliografia ou de arquivos.
Por fim, estratégias retóricas também chamam a atenção. Que técnicas de hermenêutica são propaladas? Qual a força do argumento doutrinário? Será que se percebe que o chamado argumento de doutrina não seria uma demão de metodologia de teologia sistemática nas ciências sociais aplicadas, a começar pela designação?
Que peso tem a jurisprudência? E o que se dizer do frenesi em torno dos princípios de direito, que ganha foros de religião civil, inclusive com hagiografia que cultua um pensador alemão e outro norte-americano?
Por que tudo precisa ser explicado a partir de uma imaginária distinção entre princípios e regras? Por que se tratam regras como interruptores de luz (tudo ou nada) e princípios como transístores (mais ou menos energia), como insinuou autor espanhol em estudo aliciante.
Não haveria nesse sonambulismo dogmático disfarçado de técnica pragmática de solução de problemas retomada do argumento do direito natural que remonta a clivagem entre real e ideal que se perde em alguma caverna de Platão, onde sombras e vida se confundiam?
Há, sem dúvida, muita pesquisa inteligente, imaginativa e conclusiva no ambiente acadêmico jurídico contemporâneo. No entanto, multiplicam-se teses panorâmicas que, muitas vezes, concluem pela necessidade de tal ou qual lei, como se a normatização da existência fosse a grande lição que se leva da faculdade de Direito.