Demolidor da razão iluminista, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) é um misto de vítima e de algoz de crítica contundente que imputa sua genialidade à inusitada demência, que o vê, toda hora, abraçado a um cavalo, chorando, em uma praça em Turim, na Itália. É de Nietzsche que trato no presente artigo, sem nenhuma ambição que não a de apresentar as linhas gerais de um pensador que provoca a todos nós e a todas as nossas verdades. Chega a incomodar.
Os temas que pulverizam os livros do filósofo alemão identificam as discussões mais recorrentes no chamado ideário pós-moderno. A busca da verdade, a morte de Deus, a vida na terra, a vida bem vivida, o eterno retorno (que os norte-americanos nominam de Life Again and Again), o desejo de poder, o super-homem, a luta entre o bem e o mal (espécie de atavismo do dualismo mazdeísta situado entre Ormuz e Arimã, onde circunstancialmente localizamos o Zaratustra ou Zoroastro, autor de Zend-Avestha, ou a Palavra Viva), a horda e o indivíduo, a oposição da moral do senhor com a moral do servo, além, naturalmente, de reflexões estéticas em torno de conceitos dionisíacos e apolíneos.
O Nascimento da Tragédia é o primeiro livro de Nietzsche. Percebe-se o triunfo do racionalismo (associado com Apolo, o Deus grego da razão e da ordem) em relação à experiência estética (associada a Dionísio, Deus grego do vinho e das festas). Nietzsche evidencia que a paixão precisa ser reintroduzida na cultura moderna. A obra persegue relação entre arte e ciência, tendo como pano de fundo Apolo e Dionísio. Aquele representando a ciência e seus ideais de medida, harmonia e otimismo. Esse último representando a estética, e seu sentido libertador de abandono sexual, de intoxicação, de êxtase libertadora. O cristianismo é questionado, e criticado veementemente, indicando-se aspecto recorrente no pensamento de Nietzsche. A razão ocidental é colocada em questão:
“Todo o nosso mundo moderno está preso na rede da cultura Alexandrina e reconhece como ideal o homem teórico, equipado com as mais altas forças cognitivas, que trabalha a serviço da ciência, cujo protótipo e tronco ancestral é Sócrates. Todos os nossos meios educativos têm originariamente esse ideal em vista: qualquer outra existência precisa lutar penosamente para pôr-se a sua altura, como existência permitida e não como existência proposta. Em um sentido quase aterrador, durante longo tempo, o homem culto era encontrado aqui unicamente na forma de homem douto; a partir de limitações doutas e, no efeito capital da rima, reconhecemos ainda a gênese de nossa forma poética a partir de experimentos artificiais com uma linguagem não familiar, propriamente erudita” (NIETZSCHE, 2000, p. 108).
Humano, Demasiadamente Humano, foi escrito logo após o rompimento entre Nietzsche e o compositor alemão Richard Wagner. Nietzsche deu ao título do livro um complemento, dizendo-o um livro para espíritos livres. A metafísica recebe sentença de morte:
“O homem jovem aprecia explicações metafísicas, porque elas lhe revelam, em coisas que ele achava desagradáveis ou desprezíveis, algo bastante significativo; e, se estiver descontente consigo mesmo, este sentimento se aliviará quando ele reconhecer o mais entranhado enigma ou miséria do mundo naquilo que tanto reprova em si. Sentir-se mais irresponsável e ao mesmo tempo achar as coisas mais interessantes —isso constitui, para ele, o duplo benefício que deve à metafísica. É certo que depois se torna desconfiado em relação a toda espécie de explicação metafísica; então compreende, talvez, que os mesmos efeitos podem ser obtidos por outro caminho, igualmente bem e de modo mais científico; que as explicações físicas e históricas produzem ao menos no mesmo grau aquele sentimento de irresponsabilidade, e talvez inflamem ainda mais o interesse pela vida e seus problemas” (NIETZSCHE, 2001, p. 27).
Nietzsche também refuta a lógica, elemento essencial do fundacionalismo iluminista. Haveria possibilidades de libertação e de felicidade em circunstâncias de ilogicidade ou de mera representação da vida em termos não cartesianos. Para o filósofo alemão:
“Entre as coisas que podem levar um pensador ao desespero está o conhecimento de que o ilógico é necessário aos homens e que do ilógico nasce muita coisa boa. Ele se acha tão firmemente alojado nas paixões, na linguagem, na arte, na religião, em tudo que empresta valor à vida, que não podemos extraí-lo sem danificar irremediavelmente essas belas coisas. Apenas os homens muito ingênuos podem acreditar que a natureza humana pode ser transformada numa natureza puramente lógica; mas, se houvesse graus de aproximação a essa meta, o que não haveria de perder nesse caminho! Mesmo o homem mais racional precisa, de tempo em tempo, novamente da natureza, isto é, de sua ilógica relação fundamental com todas as coisas” (NIETZSCHE, 2001, p. 38).
Outros tópicos da tradição ocidental, como as promessas e o valor em cumpri-las, a palavra dada, geradora da confiança, substratos indicativos de conteúdos morais sufragados pelo direito natural, também recebem tratamento agressivo no impressionante Humano, Demasiadamente Humano:
“Pode-se prometer atos, mas não sentimentos; pois estes são involuntários. Quem promete a alguém amá-lo sempre, ou sempre odiá-lo ou ser-lhe sempre fiel, promete algo que não está em seu poder; mas ele pode prometer aqueles atos que normalmente são conseqüência do amor, do ódio, da fidelidade, mas também podem nascer de outros motivos: pois caminhos e motivos diversos conduzem a um ato. A promessa de sempre amar alguém significa, portanto: enquanto eu te amar, demonstrarei com atos o meu amor; se eu não mais te amar, continuarei praticando esses mesmos atos, ainda que por outros motivos: de modo que na cabeça de nossos semelhantes permanece a ilusão de que o amor é imutável e sempre o mesmo- Portanto, prometemos a continuidade da aparência do amor quando, sem cegar a nós mesmos, juramos a alguém amor eterno” (NIETZSCHE, 2001, p. 59).
A Gaia Ciência é de livro de 1882 que consiste em coleção de aforismos. A obra é recorrentemente citada, lá encontramos temas fundamentais para Nietzsche, como a ideia da morte de Deus e a questão do eterno retorno. O título remete-nos ao pensamento de que a ciência não deve ser levada tão a sério. Deve ser abordada com alegria, mediante atitude estimulante. A questão do conhecimento é um dos temas centrais do livro, que enceta o núcleo da epistemologia do pensador alemão. A moralidade é questionada, assim como os propósitos da vida. O desejo de poder que move nossas ações é mencionado. Suposta evolução propiciaria um super-homem. Ao dimensionar o objetivo da ciência, Nietzsche questiona:
“Como? O objetivo último da ciência é proporcionar ao homem o máximo de prazer e o mínimo de desprazer possíveis? E se prazer e desprazer forem de tal modo entrelaçados, que quem desejar o máximo de um tenha de ter igualmente o máximo de outro- que quem quiser aprender a ‘rejubilar-se até o céu’ tenha de preparar-se também para ‘estar entristecido de morte’?” (NIETZSCHE, 2001, p. 63).
O significado da vida é questionado. Aquele determinismo otimista e panglossiano que imputa à existência o eterno caminhar pelos melhores dos mundos possíveis é desafiado:
“Viver —é continuamente afastar de si algo que quer morrer; viver- é ser cruel e implacável com tudo o que em nós, e não apenas em nós, se torna fraco e velho. Viver- é também não ter piedade com os moribundos, miseráveis e idosos? Ser continuamente assassino? —No entanto, o velho Moisés declarou: ‘Não Matarás!’” (NIETZSCHE, 2001, p. 77).
O Direito é criticado. Os modelos normativos são desconstruídos. Passagens do livro são desconcertantes, especialmente se cotejadas com a literatura da época, que propugnava historicismo jurídico, a propósito das ideias de Savigny, jurista alemão que afirmava ser o direito o reflexo do espírito de um povo, chegando inclusive a duvidar da codificação das leis, que tenderia a solidificar instâncias que o espírito do povo transforma-se ao longo dos anos. Pontos de vista enunciados em A Gaia Ciência substancializarão subsequentes abordagens niilistas do direito da tradição ocidental:
“É um grave erro estudar as leis de um povo como se fossem expressão de seu caráter; as leis não revelam o que um povo é, mas o que lhe parece estranho, estrangeiro, singular extraordinário. As leis se referem às exceções à moralidade dos costumes; e as penas mais duras atingem o que está conforme aos costumes do povo vizinho” (NIETZSCHE, 2001, p. 43).
As percepções epistemológicas de Nietzsche afrontam o pensamento tradicional, que entroniza a razão, o conhecimento e a atividade intelectual supostamente desinteressada:
“Durante enormes intervalos de tempo, o intelecto nada produziu senão erros; alguns deles se revelaram úteis e ajudaram a conservar a espécie: quem com eles deparou, ou os recebeu como herança, foi mais feliz na luta por si e por sua prole. Esses equivocados artigos de fé, que foram continuamente herdados, até se tornarem quase patrimônio fundamental da espécie humana, são os seguintes, por exemplo: que existem coisas duráveis, que existem coisas iguais, que existem coisas, matérias, corpos, que uma coisa é aquilo que parece; que o nosso querer é livre, que o que é bom para mim também é bom em si. Somente muito depois surgiram os negadores e questionadores de tais proposições —somente muito depois apareceu a verdade, como a mais fraca forma de conhecimento” (NIETZSCHE, 2001, p. 137).
Nietzsche desconfia da moral, a quem imputa a ideologia de instinto de rebanho:
“Onde quer que deparemos com uma moral, encontramos uma avaliação e hierarquização dos impulsos e atos humanos. Tais avaliações e hierarquizações sempre constituem expressões de necessidades de uma comunidade, de um rebanho: aquilo que beneficia este em primeiro lugar —e em segundo e em terceiro— é igualmente o critério máximo quanto ao valor de cada indivíduo. Com a moral o indivíduo é obrigado a ser função do rebanho e a se conferir valor apenas enquanto função. Dado que as condições para a preservação de uma comunidade eram muito diferentes daquelas de outra comunidade, houve morais bastante diferentes; e, tendo em vista futuras remodelações essenciais dos rebanhos e comunidades, pode-se profetizar que ainda aparecerão morais muito divergentes. Moralidade é o instinto de rebanho no indivíduo” (NIETZSCHE, 2001, p. 142).
Essa crítica e percepção de um relativismo em relação à moral proporcionam o eixo conceitual que coloca Nietzsche como o maior oposicionista do direito natural e do contratualismo ocidental. Negando a moral, imputando ao conceito uma relatividade geográfica e temporal, o pensador alemão duvida de uma pré-ordem estabelecida, em torno da qual se construiu o direito ocidental.
Também na Gaia Ciência Nietzsche desafia os preconceitos da ciência, aproveitando-se para hostilizar a erudição:
“Das leis da hierarquia decorre que os eruditos, na medida em que pertencem à classe média espiritual, não podem ter visão dos problemas e interrogações realmente grandes; além disso, sua coragem e seu olhar não chegam tão longe- mais do que tudo, a necessidade que deles faz pesquisadores, sua íntima antecipação e desejo de que as coisas sejam assim e assim, seus temores e esperanças, muito cedo encontram paz e satisfação. Aquilo que, por exemplo, faz o pedante inglês Herbert Spencer entusiasmar-se a seu modo, levando-o a traçar uma linha para a esperança, um horizonte de desejabilidade, a conciliação final de 'egoísmo e altruísmo', sobre a qual ele divaga, isso quase nos enoja” (NIETZSCHE, 2001, p. 276).
Assim Falou Zaratustra é o mais popular dos livros de Nietzsche. O estilo é diferente, marcante. Zaratustra, quem sabe o próprio Nietzsche, é o sábio que deixa a solidão e proclama o que pensa. Nietzsche menciona o "último homem", o que reputa de mais desprezível, metáfora que será apropriada por Francis Fukuyama em seu livro célebre sobre o triunfo do liberalismo e o fim da história. O livro está cheio de alusões críticas aos valores mais solidificados da tradição ocidental, a exemplo do amor ao próximo:
“Sois pressurosos em acudir ao próximo e tendes bonitas palavras para isto. Mas eu vos digo: o vosso amor ao próximo é o vosso mau amor por vós mesmos (...) Não vos suportais a vós mesmos e não vos amais bastante: então, quereis induzir o próximo a amar-vos, para vos dourardes com seu erro (...) Eu desejaria que não suportásseis qualquer espécie de próximo e seu vizinho; seríeis forçados, destarte, a criar o vosso amigo, com seu coração transbordante, tirando-o de vós mesmos” (NIETZSCHE, 2003, p. 87).
Certo anti-humanismo parece ser possível em leitura que indica atitude de distância para com o povo:
A vida é uma nascente de prazer; mas, onde bebe também a canalha, todas as fontes estão envenenadas. Enleva-me tudo o que é puro; mas não suporto ver os focinhos e os dentes arreganhados e a sede dos impuros. Lançaram o olhar lá embaixo, para o poço; agora, brilha seu repugnante sorriso subindo do poço para mim. A água sagrada envenenaram, com a sua concupiscência; e, quando chamaram prazer seus sonhos imundos, envenenaram também as palavras (...) Senão que, um dia, perguntei e quase me sufoquei com a pergunta: como? Também a canalha é necessária à vida? Serão necessários poços envenenados e fogos malcheirosos e sonhos emporcalhados e pão da vida bichado ? Não o meu ódio, mas o meu asco roeu-me, faminto, a vida! Ah, quantas vezes não me cansei do espírito, quando achava que também a canalha tem espírito! (NIETZSCHE, 2003, p. 127).
Além do Bem e do Mal é livro que avalia valores e conceitos que informam uma história natural da moral. Nietzsche também dá continuidade a considerações epistemológicas, a exemplo da questão da refutabilidade das ciências, e assim:
“Não é certamente o atrativo menor de uma teoria o fato de ela ser refutável; justamente com isso ela atrai mentes mais sutis. Parece que a teoria cem vezes refutada do ‘livre arbítrio’ deve sua persistência a esse atrativo apenas: sempre aparece alguém que se sente forte o bastante para refutá-la” (NIESTZSCHE, 2004, p. 23).
Nietzsche é fonte permanente de altivez pessoal e intelectual, tentando provar que os espíritos livres são os destinatários de seus livros:
“Independência é algo para bem poucos: —É prerrogativa dos fortes. E quem procura ser independente sem ter obrigação disso, ainda que com todo o direito, demonstra que provavelmente não é apenas forte, mas temerário além de qualquer medida. Ele penetra num labirinto, multiplica mil vezes os perigos que o viver já traz consigo; dos quais um dos maiores é que ninguém pode ver como e onde se extravia, se isola e é despedaçado por algum Minotauro da consciência. Suponho que alguém assim desapareça, isso ocorre tão longe do entendimento dos homens que eles não sentem nem compadecem: —É ele não pode voltar! Já não pode retornar sequer para a compaixão dos homens!” (NIETZSCHE, 2004, p. 36).
Contrário à tradição que proclama a necessidade da verticalidade no pensar, Nietzsche assume o apostolado do lado oposto, escrevendo que “quem observou o mundo em profundidade, percebe quanta sabedoria existe no fato de os homens serem superficiais. É o seu instinto conservador que lhes ensina a ser volúveis, ligeiros e falsos” (NIETZSCHE, 2004, p. 62). As visões de mundo são desconcertantes, inusitadas, inesperadas. Leia-se, por exemplo, a questão do descanso semanal:
“Para as raças laboriosas é um grande fardo suportar o ócio: um golpe de mestre do instinto inglês foi tornar o domingo tão sagrado e tedioso que, sem se dar conta, o cidadão inglês anseia novamente pelos dias de trabalho da semana —como uma espécie de jejum sabiamente inventado e intercalado, do qual há muitos exemplos também no mundo antigo” (NIETZSCHE, 2004, p. 89).
A Genealogia da Moral é livro que continua a analisar a história da moral. Ainda em relação a passagens inusitadas, Nietzsche afirma que filósofo casado é coisa de comédia, e que Sócrates teria se casado, apenas para demonstrar por ironia essa tese... (NIETZSCHE, 2003, p. 97). A crítica à ciência persiste:
“(...) a ciência é hoje um esconderijo para toda espécie de desânimo, descrença, remorso, despectio sui [desprezo de si], má consciência —ela é a inquietude da ausência de ideal, o sofrimento pela falta do grande amor, a insatisfação por uma frugalidade involuntária. Ah, o que não esconde hoje a ciência! O quanto não deve esconder! A competência de nossos melhores doutores, sua impensada diligência, sua cabeça, a fervilhar dia e noite, e mesmo sua mestria no ofício —com que freqüência o sentido de tudo isso esteve em não deixar que uma coisa se tornasse clara para si próprio! A ciência como meio de auto-anestesia” (NIETZSCHE, 2003, p. 137).
Aurora, que tem como subtítulo Reflexões sobre os Preconceitos Morais, é livro carregado de aforismos que apontam para a mesma direção de desconstrução e problematização da tradição ocidental. A valorização do trabalho, por exemplo, centro da ética capitalista, mesmo em sua expressão weberiana, é colocada em dúvida:
“Na glorificação do ‘trabalho’, nas incansáveis referências à ‘benção do trabalho’, vejo a mesma ideia oculta que há no louvor às ações impessoais e de utilidade geral: a do temor ante o que seja individual. No fundo sente-se agora, à visão do trabalho —entendendo por isso a dura laboriosidade desde a manhã até a noite—, que semelhante trabalho é a melhor polícia, que ele detém as rédeas de anseios, do gosto pela independência. Pois ele despende muita energia nervosa, subtraindo-a à reflexão, à ruminação, aos sonhos, às preocupações, ao amor e ao ódio; ele coloca diante da vista um pequeno objetivo e garante satisfações regulares e fáceis. Assim, terá mais segurança uma sociedade em que se trabalha duramente: e hoje se adora a segurança como a divindade suprema” (NIETZSCHE, 2003, p. 126).
A racionalidade que informa a sistematização do cienticifismo positivista também é criticada por Nietzsche, que pedia cautela para com os sistematizadores:
“Há um espetáculo teatral dos sistematizadores: querendo preencher todo um sistema e tornar redondo o horizonte em volta dele, precisam apresentar seus atributos mais frágeis no mesmo estilo dos mais fortes —querem representar naturezas inteiras e singularmente fortes” (NIETZSCHE, 2003, p. 192).
O pensador alemão incomoda-se com tudo que suscite a tradicional pieguice de nossa cultura. Por exemplo, em relação aos mendigos, ele nos lembra que “deve-se abolir os mendigos: pois aborrecemo-nos ao lhes dar algo, e aborrecemo-nos ao não lhes dar algo” (NIETZSCHE, 2003, p. 131).
Crepúsculo dos Ídolos traz-nos a crítica de Nietzsche para com os ídolos da cultura ocidental, a exemplo de Sócrates, Platão, Kant. O Anti-Cristo é a obra de crítica virulenta ao cristianismo, especialmente a Paulo, considerado por Nietzsche como o vilão da cristandade. A ideia de progresso (essencial ao iluminismo) é colocada em dúvida:
“Ao contrário do que hoje se crê, a humanidade não representa uma evolução para algo de melhor, de mais forte ou de mais elevado. O “progresso” é simplesmente uma idéia moderna, ou seja, uma idéia falsa. O europeu de hoje vale bem menos do que o europeu do Renascimento; desenvolvimento contínuo não é forçosamente elevar-se, aperfeiçoar-se, fortalecer-se” (NIETZSCHE, sd., p. 17).
Nietzsche atacou o cristianismo sem perdão, não poupando palavras, em denúncia articulada com incontida ironia e cólera:
“Não há que embelezar nem que ornamentar o Cristianismo: ele travou uma guerra de morte contra o tipo de homem superior, baniu todos os instintos fundamentais de tal tipo, e desses instintos destilou o mal, o pernicioso- o homem forte como tipicamente abominável, o homem ‘proscrito’. O cristianismo tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo, falhado, fez da oposição aos instintos de conservação da vida forte um ideal: e até corrompeu a razão nas naturezas intelectualmente mais fortes, ao ensinar a ter os valores superiores de uma intelectualidade como pecaminosos, como desorientadores, como tentações. O mais lamentável exemplo: a corrupção de Pascal, que acreditava na corrupção da sua razão em virtude do pecado original: ela estava corrompida, é certo, mas apenas pelo seu Cristianismo!” (NIETZSCHE, s.d., p. 18).
Nietzsche ataca por todos os pontos. A compaixão, concepção muito importante no ideário cristão recebe duras críticas:
“Chamam ao Cristianismo a religião da compaixão. A compaixão está em contradição com as emoções tônicas, que elevam a energia do sentimento vital; a compaixão tem uma ação depressiva. Quando alguém se compadece, perde a força. Pela compaixão, aumenta-se e multiplica-se o desperdício de energia que o sofrimento, por si próprio, já traz à vida. O próprio sentimento torna-se, pela compaixão, infeccioso; em determinadas circunstâncias, pode chegar-se a um desperdício global de vida e de energia vital, que se encontra numa relação absurda com o quantum da causa (o caso da morte do Nazareno)” (NIETZSCHE, s.d., p. 19).
A função política da Igreja é denunciada, por meio da invectiva de que o clero manipula o pecado, dele precisando, para manter-se no poder:
“A desobediência a Deus, isto é, ao sacerdote, à ‘lei’, recebe agora o nome de ‘pecado’; os meios para de novo se ‘reconciliar com Deus’ são, como é justo, meios com que se garante ainda mais profundamente a sujeição ao sacerdote: só o sacerdote salva... Examinados à luz da psicologia, os ‘pecados’ tornam-se indispensáveis em toda a sociedade sacerdotalmente organizada: são os autênticos detentores do poder, o sacerdote vive dos pecados, tem necessidade de que se ‘peque’... Princípio supremo: ‘Deus perdoa a todo o que faz penitência’ —em vernáculo: que se sujeita ao sacerdote.” (NIETZSCHE, s.d., p. 44).
Nietzsche desconstruiu a história do cristianismo, como ordinariamente pensada no discurso heroico dos padres da igreja e na hagiologia:
“(...) a história do Cristianismo (...) é a história da incompreensão cada vez mais grosseira de um simbolismo originário. Em cada nova difusão do Cristianismo entre as massas mais numerosas e mais grosseiras, que se afastava sempre mais dos pressupostos de que ele nascera, tornava-se necessário vulgarizar e barbarizar o Cristianismo —livre de engolir as doutrinas e ritos de todos os cultos subterrâneos do imperium romanum, a insânia de todas as espécies da razão doente. O destino do Cristianismo residia na necessidade de que a sua fé se devia tornar tão doente, tão baixa e vulgar como doentes, baixas e vulgares eram as necessidades que com ele deviam satisfazer. Enquanto Igreja, a barbárie doente eleva-se finalmente ao poder —a Igreja, essa forma de inimizade mortal frente a toda a justiça, a toda a sublimidade da alma, a toda a educação do espírito, a toda a humanidade livre e boa. Os valores cristãos, os valores nobres” (NIETZSCHE, s.d., p. 56).
A condenação do cristianismo, levada ao extremo por Nietzsche, que o tomava com o “vampiro do Império Romano”, é em essência crítica à tradição ocidental, cujas bases intelectuais se concentram nos valores cristãos. E pretensamente os direitos humanos poderiam estar inscritos nessa categoria. Inegável a proximidade entre a axiologia cristã e o espírito formador dos direitos modernos. No direito brasileiro, por exemplo, lembra-se a invocação a Deus, como se lê no preâmbulo da Constituição de 1988, que fora “promulgada sob a proteção de Deus”, aparente contradição com Estado que se diz laico.
Ecce Homo é livro autobiográfico, que promove sarcástica lembrança dos trabalhos e vida do filósofo alemão. Há capítulos cujos títulos evocam grandiloquência, a exemplo de “Por que sou tão sábio”, ou “Por que sou tão inteligente” ou “Por que escrevo tão bons livros”. O prólogo dá o tom do livro:
“Prevendo que dentro em pouco devo dirigir-me à humanidade com a mais séria exigência que jamais lhe foi colocada, parece-me indispensável dizer quem sou. Na verdade já deveria sabê-lo, pois não deixei de ‘dar testemunho’ de mim. Mas a desproporção entre a grandeza de minha tarefa e a pequenez de meus contemporâneos manifestou-se no fato de que não me ouviram, sequer me viram. Vivo de meu próprio crédito; seria um mero preconceito, que eu viva?... Basta-me falar com qualquer ‘homem culto’ que venha (...) no verão para convencer-me de que não vivo... Nessas circunstâncias existe um dever, contra o qual no fundo rebelam-se os meus hábitos, e mais ainda o orgulho de meus instintos, que é dizer: Ouçam-me! Pois eu sou tal e tal. Sobretudo não me confundam!” (NIETZSCHE, 2003, p. 17).
Dizendo-se não ser “nenhum bicho-papão, nenhum monstro moral”, Nietzsche constrói-se, comentando sua obra. Além de O Livro do Filósofo, de Vontade do Poder, há também entre as publicações póstumas vários textos, recentemente veiculados no Brasil com tradução de Flávio Kothe, e com título sugestivo, Fragmentos do Espólio. Uma miríade de aforismos ácidos frequenta o texto. Persiste a crítica à racionalidade, sentida em aforismo que nos dá conta de que "o perigo do sábio reside justamente em ele ser o mais seduzido a se apaixonar pelo irracional" (NIETZSCHE, 2004, p. 73). Permanece o questionamento relativo à verdade, como se lê em ousada passagem: “Vocês querem dizer que procuram ‘a verdade’! Vocês procuram um chefe e gostariam de ser comandados!” (NIETZSCHE, 2004, p. 75). Uma inversão do pensamento convencional sente-se em aforismo que diz que “mais elevado que o amor ao próximo está o amor ao distante, ao futuro: e mais elevado que o amor a pessoas está o amor a coisas” (NIETZSCHE, 2004, p. 96). A antropologia de Nietzsche é irreverente:
“O que é o ser humano? Um amontoado de paixões que, através dos sentidos e do espírito, atuam no mundo: um novelo de serpentes selvagens que raramente cansam do embate: então olham o mundo, para nele fazer sua vítima” (NIETZSCHE, 2004, p. 193).
Nietzsche é talvez mais conhecido como o profeta das grandes guerras e do poder da política do que como opositor do liberalismo político e da democracia (KAUFMANN, 1968, p. 412). Niilista perfeito, Nietzsche preocupou-se com os problemas da cultura e da história, insistindo que “o que a humanidade precisa não é de uma revolução política violenta, mas de mudanças na educação e em seu modo de pensar” (ANSELL-PEARSON, 1997, p. 21). Em Nietzsche o niilismo triunfa na vontade do poder (DELEUZE, s.d, p. 73). Nietzsche parece suscitar fortes reações em seus leitores, que reputam o livro Genealogia da Moral de inquietante, envolvente, sedutor, agressivo...( PASCHOAL, 2003, p. 23).
Segundo Oswaldo Giacóia Junior, “o pensamento filosófico de Nietzsche pode ser comparado a uma espécie de sensor que registra e antecipa questões e desafios de nosso século” (GIACÓIA JUNIOR, 2000, p. 16). "Para Nietzsche, Sócrates lembrava a decadência, e com ele toda a tradição filosófica que nele radica" (MELLO, 1985, p. 42). "Nietzsche destruiu a metafísica, que reputou como uma violência feita à vida" (BEARDSWORTH, 2003, p. 25). "Nietzsche teria inaugurado era de reação ao racionalismo, na qual abandonamos todas as esperanças do iluminismo" (PIPPIN, 1997, p. 252). Atacando a democracia, Nietzsche inaugura o pós-modernismo. Tudo o mais é nota de rodapé.
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BIBLIOGRAFIA
ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
BEARDSWORTH, Richard. Nietzsche. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Lisboa: Edições 70, s.d.
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000.
KAUFMANN, Walter. The portable Nietzsche. New York: Penguin Books, 1968.
MELLO, Mario Vieira. Nietzsche. Vol.4. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. 12.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais.. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O livro do filósofo.. 5.ed. São Paulo: Centauro, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos do espólio. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo: anátema sobre o cristianismo. Lisboa: Companhia Edições 70, s.d.
PASCHOAL, Antonio Edmilson. A genealogia de Nietzsche. Curitiba: Champagnat, 2003.