Erasmo de Roterdã foi um crítico da inflação legislativa, dos advogados, dos julgamentos, das demoras dos processos. Nasceu na Holanda, em meados do século XV, provavelmente em 1465. Foi ordenado padre, viveu em Paris, em Oxford, em Londres, onde teria escrito o Elogio da Loucura, um dos livros mais emblemáticos de nossa tradição cultural ocidental.
Erasmo esteve por toda a Itália, travou amizades com as mais altas personalidades de sua época. Símbolo do humanismo, sua vasta cultura proporcionou-lhe o epíteto de “o príncipe dos humanistas”.
Erasmo formulou um modelo próprio de pronúncia de grego clássico, chamada erasmiana ou etacista. Chegou a intervir em favor de Lutero, publicou obra sobre o livre arbítrio, mudou-se para Friburgo, na região fronteiriça entre Alemanha e França.
Ocupo-me aqui das opiniões de Erasmo sobre o lugar do Direito no contexto no qual viveu. São excertos que extraio do célebre Elogio da Loucura, primeiramente publicado em Paris, em 1511.
Imaginando que a humanidade conhecera em algum lugar do passado uma época de ouro, Erasmo escreveu:
“Nessa época, os legisladores eram inúteis, porque, reinando os bons costumes, não havia necessidade de leis.” [1]
Em seguida, Erasmo atacou aos advogados. São suas as seguintes palavras:
“Depois dos médicos, vêm imediatamente os rábulas ou jurisconsultos. Eu não saberia dizer-vos ao certo se esses supostos filhos de Têmis precederam os sequazes de Esculápio: disputam a precedência entre si. O que é fora de dúvida é que os filósofos, quase que por consenso unânime, ridicularizam os advogados e, com muita propriedade, qualificam essa profissão como ciência de burro. Mas, burros ou não, serão sempre eles os intérpretes das leis e os reguladores de todos os negócios.” [2]
Erasmo polemizou com a opinião dos filósofos em geral. Escreveu que eles, com muita propriedade, qualificam a advocacia como profissão de burros. Mais a frente, contemporizou, anotando que burros ou não, serão sempre eles os intérpretes das leis e reguladores de todos os negócios.
Na sequência, Erasmo fechou questão, criticando os advogados de forma ainda mais virulenta:
“Pretendem os advogados levar a palma sobre todos os eruditos e fazem um grande conceito da sua arte. Ora, para vos ser franco, a sua profissão é, em última análise, um trabalho de Sísifo. Com efeito, eles fazem uma porção de leis que não chegam a conclusão alguma. Que são o digesto, as pandectas, o código? Um amontoado de comentários, de glosas, de citações. Com toda essa mixórdia, fazem crer ao vulgo que, de todas as ciências, a sua é a que requer o mais sublime e laborioso engenho. E, como sempre se acha mais belo o que é difícil, resulta que os tolos têm em alto conceito essa ciência.“[3]
Na visão de Erasmo, uma megalomania corporativa atingiria a nós advogados, na medida em que existiria uma tendência de reduzirmos a existência ao campo jurídico. Tentativa inócua, na visão de Erasmo, que se valeu do mito de Sísifo para qualificar o trabalho do advogado.
Sísifo fora condenado (segundo a mitologia grega) a fazer rolar uma enorme pedra até o topo de uma montanha. Quando chegava ao cume, a pedra rolava para baixo, e então todo o trabalho seria recomeçado. Simboliza a inutilidade de um esforço e, invocando a triste figura, Erasmo certamente quis caracterizar a dificuldade da advocacia.
As críticas ao Direito Romano fulminam os praxistas da época e, curiosamente, não deixam de evidenciar uma contradição no pensamento de Erasmo. É que o Humanismo valorizava o mundo greco-romano, a cultura clássica, de modo que nos parece contraditória e incoerente a apologia de escritores como Terêncio, Apuleio, Cícero (que era jurista), Juvenal e outros, concomitantemente a uma crítica ao Direito Romano. Erasmo sugere que o jurista potencializaria a dificuldade de sua ciência, de modo a aumentar sua cotação no campo epistemológico.
Em outro ponto do Elogio da Loucura, ao comentar os negociantes, Erasmo dirige mais farpas ao jurídico, escrevendo:
“Enfurecem-se as partes com a demora do processo, parecendo apostar qual das duas tem mais a possibilidade de enriquecer um juiz venal e um advogado prevaricador, cujo intuito não é senão prolongar a demanda, que só para eles traz vantagens.”[4]
Ao suscitar um imaginário juiz venal e um hipotético advogado prevaricador, Erasmo acenou-nos com o desencanto para com o Direito, circunstância cultural que parece ser recorrente no agitado tempo no qual viveu.
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Bibliografia
ROTTERDÃ, Erasmo de. Elogio da Loucura. In Os Pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1979.
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[1] Erasmo de Rotterdam, Elogio da Loucura, pág. 52
[2] Erasmo de Rotterdam, Elogio da Loucura, pág. 53
[3] Erasmo de Rotterdam, Elogio da Loucura, págs. 92 e 93
[4] Erasmo de Rotterdam, Elogio da Loucura, pág. 85