Ainda há espaço e interesse para uma pesquisa sobre o Direito e a Justiça no contexto filosófico e literário das chamadas Utopias do Renascimento. Refiro-me à ilha de Utopia, de Thomas Morus, à Cidade do Sol, de Tomás Campanella, e à Nova Atlântida, de Francis Bacon.
Alguma intuição me revela que os três textos podem nos conduzir à República de Platão, fechando-se um ciclo totalitário denunciado por Karl Popper, na Sociedade Aberta e seus Inimigos. Para Popper, os a democracia é objeto de constante ameaça do platonismo, do hegelianismo e do marxismo. Pode-se provocar o leitor, no sentido de se desafiar para uma busca do totalitarismo na tradição utópica renascentista. Mas fico aqui com Thomas Morus, o homem que não vendeu sua alma, título de interessante filme, que explora as relações entre o filósofo inglês e Henrique VIII.
Thomas Morus foi um erudito que viveu nos turbulentos tempos de Henrique VIII, o rei das seis esposas, e que rompeu com o catolicismo, criando o anglicanismo. Por opor-se ao rei, Thomas Morus foi condenado à pena de morte. Para Umberto Padovani e Luís Castagnola:
“Morus foi mártir da fé, sacrificado ao despotismo cismático de Henrique VIII. Na sua Utopia bosquejou o plano de um estado ideal, imitando a República de Platão e a cidade do Sol de Campanella.”[1]
A Utopia (do grego lugar que não existe) seria uma ilha imaginária na qual os homens viveriam em perfeita harmonia. É o lugar ideal. O substantivo transformou-se em adjetivo e hoje Utopia designa um sonho; extensivamente falamos em utópico. Poderíamos também por extensão pensar em distópico, no sentido de uma previsão futurística apocalíptica e escatológica, a exemplo do que assistimos em filmes como O Caçador de Androides.
Morus parecia cético para com o Direito; afinal, “utopia tem poucas leis, pois o seu sistema social prescinde de uma legislação complexa”[2]. Quanto aos advogados:
“Além disso, não há advogados no país, pois esses espertalhões que manipulam os processos e distorcem as leis não teriam com que ocupar-se em Utopia. É melhor, pensam eles, que cada um defenda a sua própria causa e conte ao juiz exatamente o mesmo que teria contado a um advogado. Em tais circunstâncias, o número de ambiguidades é muito menor, as dúvidas são esclarecidas mais facilmente e o caminho até a verdade muito mais curto – pois, se ninguém contar as mentiras que aprende com os advogados, o juiz poderá avaliar os fatos com muito melhor senso e ponderação, e proteger os ingênuos contra as investidas inescrupulosas dos velhacos e embusteiros.”[3]
Morus criticou ferozmente os advogados. Não há lugar para nós na Utopia. Para o filósofo inglês, os advogados são “espertalhões que manipulam os processos e distorcem as leis”. Não há meio termo. A generalização de Morus é contundente. Para o sábio inglês os advogados seríamos chicanas, velhacos, mentirosos, embusteiros, inescrupulosos. É evidente o desencanto. Eu discordo de Morus.
Morus traduz uma visão simplista a propósito da lei. São dele as seguintes palavras:
“Em Utopia, porém, cada um é perfeito conhecedor do Direito, pela simples razão de que, como já afirmei, são muito poucas as leis, e as interpretações mais evidentes das mesmas são sempre admitidas como as mais justas e verdadeiras. Dizem os utopianos que a única finalidade de uma lei é lembrar às pessoas quais são os seus deveres; portanto quanto mais complicada ela for, tanto menor será a sua eficácia, já que muito poucos serão capazes de compreendê-la. Por outro lado, uma lei cujo significado seja simples e óbvio explica-se naturalmente àqueles que vão em busca do seu entendimento.”[4]
A hermenêutica, para Thomas Morus, não pode ocupar o tempo das pessoas; e assim:
“Afinal, a pessoa comum está muito ocupada em ganhar o seu sustento, e não dispõe nem do tempo nem da capacidade mental para dedicar-se a essas profundezas.”[5]
Na Utopia os juízes não conheciam os jurisdicionados. Morus alertava para a corrupção no judiciário e deixou impressionante e chocante observação a propósito dos juízes:
“E, como não conhecem os habitantes locais, nunca são tentados, por simpatias ou desafetos pessoais, a tomar decisões erradas. Essas qualidades são importantes sobretudo para os juízes, pois as preferências pessoais e a ganância pelo dinheiro são os grandes males que ameaçam os tribunais. Quando esses vícios conseguem instalar-se entre os homens dos quais depende o cumprimento das leis, imediatamente acabam com a justiça, destruindo, portanto, toda a sociedade.”[6]
Morus também hostilizou a morosidade da justiça:
“Alhures, o princípio do teu e do meu é consagrado por uma organização cujo mecanismo é tão complicado quão vicioso. Há milhares de leis, e que ainda não bastam, para que um indivíduo possa adquirir uma propriedade, defendê-la e distingui-la da propriedade de outrem. A prova é o número infinito de processos que surgem todos os dias e não terminam nunca.”[7]
A Utopia foi publicada em 1516. É um dos livros mais influentes da literatura ocidental. Passados quase cinco séculos de sua primeira edição a obra mantém-se viva, sobremodo porque os problemas de que cogita são muito atuais. Aos prescrever poucas leis, ao criticar os advogados de forma tão ácida e ao advertir para os perigos de um judiciário passível de corrupção, Morus manifestou desencanto para com o mundo do Direito.
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Bibliografia
MORUS, Thomas. A Utopia. In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
PADOVANI, Umberto; CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1993.
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[1] Umberto Padovani e Luís Castagnola, História da filosofia, pág. 281
[2] Thomas Morus, A Utopia, pág. 123.
[3] Thomas Morus, A Utopia, págs. 123 e 124.
[4] Thomas Morus, A Utopia, págs 124.
[5] Thomas Morus, A Utopia, pág. 124.
[6] Thomas Morus, A Utopia, pág. 125.
[7] Thomas Morus, A Utopia, pág. 203.