Há quem queira constitucionalizar o direito à felicidade. Melhor, há projeto de emenda à Constituição de 1988 que pretende dispor que a busca à felicidade seja um direito social. A pretensão ampliaria o conteúdo do art. 6º da Constituição; o direito à busca da felicidade frequentaria o mesmo topos constitucional dos direitos à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade, à infância, à assistência aos desemparados.
Não se confunda, no entanto, o direito à felicidade com o direito à busca da felicidade, isto é, não se embaralhe o direito à alimentação com o direito à busca da alimentação, pelas mesmas razões, simbólica e pragmaticamente. Ainda que marcada por conteúdo retórico e dirigencial muito amplo, a proposta, no entanto, não transcenderia ao escudo herético da vida real. Por outro lado, a par de seguir exemplo já fixado pela ONU (que reconhece a felicidade inclusive como questão de Estado) a inserção confere toque metafísico e programático à Constituição, oxigenando constitucionalismo de fraternidade que parece temperar o utilitarismo institucional que o realismo jurídico exige.
O meu argumento é que a felicidade também pode ser clandestina, no bom sentido que a expressão possa carregar. Ilustro com conto homônimo ao meu argumento, Felicidade Clandestina[1], de Clarice Lispector, escritora brasileira nascida na Ucrânia, de família judaica, e que chegou ao Brasil com dois meses de idade. Clarice perdeu a mãe quando tinha nove anos. Clarice é escritora vigorosa, contista incomparável, alma superior.
Felicidade clandestina é conto densamente melancólico e surpreendentemente bibliófilo. É, ao mesmo tempo, declaração de amor pelos livros e reconhecimento do fato de que quem vive entre livros, e pelos livros, vive vida encantada, ainda que eventualmente melancólica, cuja dimensão e limites se encontram no infinito e nas possibilidades dos próprios livros.
Tem-se a impressão de que Clarice Lispector admite que vivemos muitas vidas, num só contexto existencial, que somos múltiplos, ainda que encerrados em nós mesmos. Amamos infinitamente. Protagonizamos infinitos papeis porque os livros estão também estão em nós.
Em Clarice Lispector a felicidade não está só nos outros, ainda que em nós, muita vez, pareça assumir uma forma insuspeitamente clandestina.
No conto Felicidade Clandestina a autora suscita uma menina “(...) gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados [que] tinha um busto enorme (...) enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas”. No entanto, prossegue Clarice, aquela menina possuía “(...) o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria”. A menina ensimesmava todos os desejos de Clarice.
A menina, continua Clarice, tinha um grande talento para a crueldade; a humilhava negando-lhe livros que Clarice pedia emprestados, e que a menina de cabelos meio arruivados certamente nunca lia.
É o que ocorreu quando Clarice casualmente teria sabido que a filha do dono da livraria possuía belíssima edição de Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Foi com esse livro que a menina exerceu sobre Clarice “com calma felicidade o seu sadismo”. O livro de Monteiro Lobato, segundo Clarice, “era um livro grosso (...) um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o”. A menina teria dito a Clarice que lhe emprestaria o livro. Clarice deveria passar na casa da filha do dono da livraria, no dia seguinte. A narradora exultou.
E por muitos dias Clarice repetiu a tentativa. E todos os dias a menina surpreendia com uma evasiva, com uma desculpa, com um senão, com um porém. O livro nunca estava em casa. Estava com alguém. A menina era má. Prossegue Clarice:
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas esse livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência da perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro, por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.[2]
Incrédula, Clarice Lispector pegou o livro. E conta que, chegando a casa, começou a lê-lo e que,
(...) Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.[3]
E Clarice ainda lembrava que se sentava na rede, que se balançava com o livro aberto no colo, “sem tocá-lo, em êxtase puríssimo”. E encerra a narrativa, afirmando que “não era uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante!”.
Ainda que na forma de conto, a estória tem um traço inegavelmente autobiográfico, que não se resume somente ao vento de Recife, reforçado pela narrativa em primeira pessoa. Clarice Lispector é inconfundível.
Esse desejo pelos livros é mais do que a noção freudiana de pulsão (Trieb); é muito mais do que carga energética que enfrenta angústia temperada pelo legítimo desejo de sairmos de nós mesmos, e de nos libertarmos dos desencontros de nossas trajetórias. Pode ser uma fuga. Uma fuga para certa forma de felicidade. É que a felicidade pode ser também ligeira sensação de realização de nossas vontades, e que se reproduz de forma clandestina, como sugere o belíssimo conto de Clarice Lispector.
Nesse contexto, de pequenas vaidades, ou de grandes e irresistíveis projetos de vida, de pouco adiantaria o acréscimo do direito à felicidade nas declarações de direitos que ornam textos constitucionais. A questão não é de quantidade. É de qualidade. E tudo revelado de um modo muito idiossincrático. Não é matéria jurídica. Ao direito foge regulamentar as coisas de foro íntimo, já diziam os jusnaturalistas que cismavam com as dissemelhanças entre direito e moral.
Eu argumento que a felicidade talvez esteja para a existência como o dolo para o crime, a reserva mental para o vício redibitório, a responsabilidade solidária para a vontade das partes, o lucro nascente para as coisas fungíveis, e a presunção para a inocência. É também vontade. E é juridicamente intangível.
É grandeza de reconhecimento íntimo; satisfação incomunicável, mas indisfarçável. Não se dispõe na Constituição. Não se garante pela lei. Não se regulamenta por decreto. É que a felicidade também é clandestina. E à clandestinidade, parece-me, não haveria espaço de honra em textos de Constituição. Haveria, no limite, privilegiado posto na memória que insiste em não nos largar.
A felicidade não é matéria de direito. E nem de fato. Não comporta provas. E nem se presume. E só é reconhecida, quando em nós apenas seja uma rastro suave na memória.
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[1] Cito Felicidade Clandestina a partir de Morriconi, Italo, Os Melhores Cem Contos Brasileiros do Século, Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
[2] Lispector, Clarice, cit., pp. 313-314.
[3] Lispector, Clarice, cit., p. 314.