Certo discurso ambientalista tradicional recorrentemente busca indícios de que o problema ambiental seja universal (e de fato é), atemporal (nem tanto) e generalizado (o que desejável). Alguma ingenuidade conceitual poderia marcar ambientalismo apologético; haveria dilemas ambientais em todos os lugares, tempos, culturas. É a bambificação da natureza. Necessária, no entanto, como condição de sobrevivência. Há quem tenha encontrado normas ambientais na Bíblia, no Direito grego, e até no Direito romano. São Francisco de Assis, nessa linha, prosaica, seria o santo padroeiro das causas ambientais; falava com plantas e animais.
A proteção do meio ambiente seria, nesse contexto, instintiva, predeterminando objeto e objetivo. Por outro lado, e este é o meu argumento, quando muito, e agora utilizo uma categoria freudiana, a pretensão de proteção ambiental seria pulsional, dado que resiste a uma pressão contínua, variável na intensidade. Assim, uma dimensão qualitativa, e não quantitativa, é que deveria se enfrentar a questão, que também é cultural. E que culturalmente pode ser abordada. É o que pretendo demonstrar.
O problema, no entanto, é substancialmente econômico. O dilema ambiental só se revela como tal, quando o meio ambiente passa a ser limite para o avanço da atividade econômica. É nesse sentido que a chamada internalização da externalidade negativa exige justificativa para uma atuação contra-fática. Recorre-se à surrada metáfora do cowboy e da astronave. No mundo pré-industrial não havia limites, vivia-se à moda do cowboy, a integração com a natureza se fazia na desenfreada exploração, pura e simplesmente. Integrar era dominar. No mundo da astronave integrar é conservar.
Uma nuvem de problematização supostamente filosófica também rondaria a discussão. Antropocêntricos acreditam que a proteção ambiental seria narcisística, centrada e referenciada no próprio homem. Os geocêntricos piamente entendem que a natureza deva ser protegida por próprios e intrínsecos fundamentos e características. Posições se radicalizam. O presente debate em torno do Código Florestal é de meu argumento uma prova a ser explorada.
Insisto. O problema é econômico. Há pista linguística que sugere chave interpretativa e convergência conceitual: substantivos “economia” e “ecologia” convergem para a percepção grega de oikos, de onde em nosso vernáculo ‘eco”, identificando-se algo assemelhado a “casa”, que o grego contemporâneo nominaria de spiti.
A linha de argumento do ambientalista ingênuo lembra-nos o “salto do tigre” enunciado pelo filósofo da cultura Walter Benjamin, em uma de suas teses sobre a filosofia da história. Qual um tigre mergulhamos no passado, e apenas apreendemos o que interessa para nossa argumentação. É o que se faz, a todo tempo.
É em favor dessa forma simbólica (e válida) de pensar nossos problemas ambientais que apresento um ambientalismo avant la lettre, em forma de argumentação saudosista, que colho no escritor Afonso Henriques de Lima Barreto, em uma crônica publicada em 27 de fevereiro de 1920, reproduzida em recolha de suas obras completas.
Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881 e lá morreu em 1922, por problemas relacionados a dipsomania crônica. Um colapso cardíaco o fulminou. Tinha apenas 41 anos de idade. Seu pai faleceu dois dias depois. O escritor perdeu a mãe quando ainda era criança; tinha ele então sete anos. Seu pai era protegido de Afonso Celso de Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto. O prenome do Visconde é a explicação de seu próprio nome.
Com a proclamação da República o pai de Lima Barreto perdeu o emprego de tipógrafo e foi trabalhar como almoxarife na Colônia dos Alienados, na Ilha do Governador, onde Lima Barreto morou. O escritor conseguiu terminar os cursos primário e secundário. Matriculou-se na Escola Politécnica, porém não conseguiu se formar, circunstância que evidenciou fonte constante de frustrações. Lima Barreto conseguiu emprego de amanuense no Ministério da Guerra. Concomitantemente, colaborou intensamente na imprensa carioca.
Reporto-me a crônica “O Cedro de Teresópolis”. Lima Barreto inicia o texto observando que um eminente poeta (Alberto de Oliveira) estaria empenhado em impedir que um proprietário ganancioso derrubasse um cedro venerável que lhe cresce nos terrenos[1]. A árvore, segundo o cronista, seria remanescente de antigas florestas que outrora existiram para aquelas bandas e viu crescer Teresópolis já adulto[2]. E ainda sobre a emblemática árvore, Lima Barreto lembrou que
Não conheço essa espécie de árvore, mas deve ser bela porque Alberto de Oliveira se interessa pela sua conservação. Homem de cidade, tendo viajado unicamente de cidade para cidade, nunca me foi dado ver essas essências florestais que todos que as contemplam, se enchem de admiração e emoção superior diante dessas maravilhas naturais[3].
Ainda defendendo o poeta, cujo gesto seria, no entender do cronista, louvável, em face do qual não haveria homem de mediano gosto que não o aplauda do fundo d´alma[4], Lima Barreto observou que Alberto de Oliveira tentara comprar, ao dono, as terras onde crescia a emblemática árvore. Tentava-se levantar uma subscrição para a aquisição do terreno. Comentando o pouco caso que havia para com o ambiente natural, Lima Barreto escreveu:
(...) Não é que tenha dúvidas sobre a generosidade de nossa gente rica; o meu ceticismo não vem daí. A minha dúvida vem do seu mau gosto, do seu desinteresse pela natureza. Excessivamente urbana, a nossa gente abastada não povoa os arredores do Rio de Janeiro de vivendas de campo com pomares, jardins, que os figurões graciosos como a linda paisagem da maioria deles está pedindo. Os nossos arrabaldes e subúrbios são uma desolação. As casas de gente abastada têm, quando muito, um jardinzito liliputiano de polegada e meia; e as da gente pobre não têm coisa alguma. Antigamente, pelas vistas que ainda se encontram, parece que não era assim. Os ricos gostavam de possuir várias chácaras, povoadas de laranjeiras, de mangueiras soberbas, de jaqueiras, dessa esquisita fruta-pão que não vejo mais e não sei há quantos anos não a como assada e untada de manteiga. Não eram só essas árvores que a enchiam, mas muitas outras de frutas adorno, como as palmeiras soberbas, tudo isso envolvido por bambuais sombrios e sussurrantes à brisa [5].
O saudosismo era explícito na crônica. Lima Barreto reclamava da ausência dos jasmineiros das cercas, dos tapumes de maricá, que os subúrbios e arredores do Rio guardavam dessas belas coisas roceiras, destroços como recordações[6]. E a crônica, não esqueça o leitor, data de 1920... Para Lima Barreto, da natureza exuberante de outrora só havia restos:
São restos de bambuais, de jasmineiros que se enlaçavam pelas cercas em fora; são mangueiras isoladas, tristonhas, saudosas das companheiras de alameda que morreram ou foram mortas. Não se diga que tudo isso desapareceu para dar lugar a habitações; não, não é verdade. Há trechos e trechos grandes de terras abandonadas, onde os nossos olhos contemplam esses vestígios das velhas chácaras da gente importante de antanho que tinha esse amor fidalgo pela ‘casa” e que deve ter amor e religião para todos. Que os pobres não possam exercer esse culto; que os médios não o possam também, vá lá! E compreende-se; mas os ricos, qual o motivo? Eles não amam a natureza; não tem, por lhes faltar irremediavelmente o gosto por ela, a iniciativa para escolher belos sítios, onde erguerem as suas custosas residência, e eles não faltam ao Rio[7].
O cenário do Rio de Janeiro era vilipendiado, Lima Barreto denunciava que não se respeitava nenhum palmo de terra. Geografia e topografia da cidade se alteravam substancialmente:
Atulham-se em dois ou três arrabaldes que já foram findos, não pelas edificações, e não só pelas suas disposições naturais, mas também, e muito, pelas grandes chácaras que neles havia. Botafogo está neste caso. Laranjeiras, Tijuca e Gávea também. Aos famosos melhoramentos que têm sido levados a cabo nestes últimos anos, com raras exceções, tem presidido o maior contra-senso. Os areais de Copacabana, Leme, Vidigal, etc., é que tem merecido os carinhos dos reformadores apressados. Não se compreende que uma cidade se vá estender sobre terras combustas e estéreis e ainda por cima açoitada por ventos e perseguidas as suas vias públicas pelas fúrias do mar alto. A continuar assim, o Rio de Janeiro irá por Sepetiba, Angra dos Reis, Ubatuba, Santos, Paranaguá, sempre procurando os areais e os lugares onde mar se possa desencadear em ressacas mais fortes[8].
Lima Barreto mostrava desconsolo para com o estado das coisas, para com o abandono da cidade que tanto amava, e por onde tanto perambulava:
O estado dos arredores do Rio, abandonados, enfeitados com construções contra-indicadas, cercados de terrenos baldios onde ainda crescem teimosamente algumas grandes árvores das casas de campo de antanho, faz desconfiar que os nababos de Teresópolis pouco se incomodam com o cedro que o turco quer derrubar, para fazer caixas e caixões que guardem quinquilharias e bugigangas. Daí pode ser que não; e eu desejaria muito que tal acontecesse, pois deve ser um soberbo espetáculo contemplar a magnífica árvore, cantando e afirmando pelos tempos em fora, a vitória que obteve tão-somente pela força de sua beleza e majestade[9].
A crônica é indicativa de que a degradação urbana é fato que se reproduz no tempo, e que não é vergonha de nossa época, tão somente. É comprovação também do papel combativo que a literatura exerce, em todas as suas formas. A crônica aqui apresentada é linha de argumento em favor de uma causa, ainda que num contexto diverso, e formulado com outros propósitos.
Comprova que a literatura pode convergir com o direito, que é funcionalista, e que serve objetivamente para algo, que não é metafísica, e que se materializa em fortíssima compreensão retórica, acenando com a vitória para aqueles que bem argumentam, nada obstante a validade da causa. Para nosso consolo, a causa ambiental é reveladora de uma preocupação honesta, como honestas eram as preocupações desse grande lutador, ainda que desajustado, que foi Lima Barreto.
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[1] Lima Barreto, Afonso Henriques, Bagatelas, São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 276.
[2] Lima Barreto, cit., loc.cit.
[3] Lima Barreto, cit., loc.cit.
[4] Lima Barreto, cit., loc.cit.
[5] Lima Barreto, cit., loc.cit.
[6] Lima Barreto, cit., p. 277.
[7] Lima Barreto, cit., loc.cit.
[8] Lima Barreto, cit., loc.cit.
[9] Lima Barreto, cit., p. 279.