Ainda que o escritor Joaquim Maria Machado de Assis tenha desejado que seu segundo testamento não fosse revelado, salvo em caso de necessidade judicial, há a mancheias cópias do documento. Fio-me, na construção do presente ensaio, de reprodução encontrada em interessante livro de Daniel Pizza, exuberante em material iconográfico[1]. No caso, tem-se cópia do rascunho do documento, de próprio punho do escritor. Intrigante a caligrafia do bruxo do Cosme Velho.
O testamento de Machado de Assis permite que se problematizem os limites entre propriedade comum e propriedade imaterial, esta última, especialmente, em sua percepção de propriedade intelectual. É o meu argumento.
Declarando-se morador da Rua Cosme Velho nº 18, Machado de Assis redigiu o curto documento na expectativa genérica de expressar sua derradeira vontade. Escreveu que era natural do Rio de Janeiro, onde nascera em 21 de junho de 1839. Afirmou ser filho legítimo de Francisco José de Assis e de Maria Leopoldina Machado de Assis, ambos, por óbvio, então falecidos à época da redação do testamento.
Anotou que se casou com Carolina Augusta de Novaes Machado de Assis em 12 de novembro de 1869. À época da redação do segundo testamento Machado de Assis já era viúvo: Carolina morreu em 20 de outubro de 1904. Foi sepultada no Rio de Janeiro, no Cemitério São João Baptista. Machado de Assis também informou que Carolina nascera em Portugal, na cidade do Porto, e que era filha legítima de Antonio Luiz de Novaes e de Custodia Emília Xavier de Novaes.
Machado de Assis afirmou que desejava ser enterrado junto à esposa, na mesma sepultura, indicando inclusive o número do jazigo (1.359). Lembrou da necessidade de obtenção de licenças, necessárias para a realização da determinação. Rabiscou afirmação de que desejava que abaixo da inscrição de seu nome junto ao túmulo, também se indicasse suas datas de nascimento e morte.
Declarou que inutilizara um testamento que fizera em 30 de junho de 1898, no qual instituía sua então esposa como herdeira universal. Esse primeiro testamento, de acordo com Machado de Assis, fora aprovado por tabelião no Rio de Janeiro, de nome Pedro Evangelista de Castro.
Machado de Assis, por ocasião da morte de Carolina, fizera partilha amigável com sua cunhada, Adelaide Xavier de Novaes, e também com seus sobrinhos, Sara Braga da Costa, Arnaldo Arthur Ferreira Braga e Ariosto Arcádio de Novaes Braga.
No segundo testamento, aqui tratado, Machado de Assis declarou-se possuidor de doze apólices da dívida pública. Cada uma dela valia um conto de réis. Venciam juros de 5% ao ano. As apólices estavam custodiadas pelo London and Brazilian Bank, Limited. O escritor também declarou que possuía dinheiro depositado em conta corrente, na Caixa Econômica, em caderneta, tombada sob o número 14.304.
Machado de Assis legou todos os valores que possuía a Laura, sua sobrinha neta, filha de sua sobrinha e comadre, Sara Braga da Costa, e de seu cunhado e compadre, Major Bonifácio Gomes da Costa. É para Laura que Machado de Assis deixou também seus móveis, livros e demais objetos. Laura era a herdeira universal dos bens do escritor.
Machado de Assis nomeou como testamenteiros o já citado Major Bonifácio, bem como os amigos Heitor Cordeiro e Julian Lamac, este último então gerente da Casa Garnier. É o que se lê no rascunho do testamento.
O testamento de Machado de Assis sintetiza vida de homem simples, e que morreu sem bens materiais de maior expressividade. Não havia propriedade imóvel a ser legada. Machado de Assis deixou pequeno legado material. Porém legou-nos uma obra monumental.
Não há no testamento disposições sobre personagens emblemáticos como Capitu, Bentinho, Escobar, Brás Cubas, Simão Bacamarte, Conselheiro Aires, Pedro, Paulo, Quincas Borba, Virgília, Lobo Neves, Sofia, Rubião, Fidélia, Aguiar, entre tantos outros. A lista é imensa.
E também não há no testamento de Machado de Assis determinações sobre um dos mais amplos estudos já feitos sobre a natureza humana, revelador sensível de nossas neuroses, perversões e psicoses, que captam as negações com as quais a vida nos acena, isto é, quando vivemos na vida real.
E também não há recomendações de estilo, temas, fórmulas de uso linguístico e idiossincrasias que marcam a modo machadiano de ser e de escrever. E ainda não há também pistas para o que se fazer com geniais construções dramáticas de cenas de adultério e de ciúme, como lemos em Missa do Galo, Mariana, A Cartomante, D. Paula, A carteira, O relógio de ouro, A mulher de preto, Ernesto de Tal, Confissões de uma viúva moça, e tantos outros contos sublimes.
O testamento político de Machado de Assis se encontra nas inesquecíveis páginas de Esaú e Jacó, ou em contos muito bem engendrados como Virginius (narrativa de um advogado), O Teles e o Tobias (quadro de costumes políticos), A sereníssima República (Conferência do Cônego Vargas), O Espelho (Esboço de uma nova teoria da alma humana), O jogo do bicho, O velho senado, Pai contra Mãe.
Seu legado filosófico se aufere em contos também desconcertantes, a exemplo de O sermão do diabo, Ideias de canário, Papéis velhos, O imortal, A igreja do diabo, Como se inventaram os almanaques, apenas para citar alguns mais conhecidos.
A herança de Machado de Assis foge ao contexto material do testamento e matiza-se, principalmente, por uma fina ironia, que exemplifico com o argumento de Capitu, no sentido de sensibilizar Bentinho para quem não fosse estudar no seminário. Para Capitu, - Padre é bom, não há dúvida; melhor que padre só cônego, por causa das meias roxas. - O roxo é cor muito bonita. Pensando bem, é melhor cônego. – Mas não se pode ser cônego sem ser primeiramente padre (...)- Bem; comece pelas meias pretas, depois virão as roxas. – O que eu não quero é perder a sua primeira missa; avise-me a tempo para fazer um vestido à moda, saia balão e babados grandes...
Machado de Assis confirmou sua ascensão social vendo o mundo em que viveu de cima, como se referiu importante estudioso de sua obra[2]. Inegável que, ao contar suas histórias, Machado de Assis escreveu e reescreveu a história do Brasil no século XIX[3], fazendo-o, porém, de cima, na imagem de Roberto Schwarz. Há um aburguesamento no modo de se captar o mundo, no qual se admitia a coexistência e a permeação de estratos, dois fenômenos da convivência de duas camadas sociais, a classe e o estamento[4]. Machado era um pessimista, que sobreviveu[5]. Não há se encontrar um chamado para a revolução internacional permanente na obra de Machado de Assis. Ainda bem.
O testamento de Machado de Assis transcende à sua própria condução do legado de seus bens materiais. Porque, escritor de obra intemporal e universal, Machado resiste aos estereótipos e ao oficialismo com é frequentemente contemplado[6]; sobrevive a todos.
Quanto à execução do testamento,
O major Bonifácio Gomes da Costa, que só desembarcara no Rio de Janeiro após o enterro de Machado de Assis, a 20 de outubro de 1908, pediu, na qualidade de primeiro testamenteiro, a abertura do inventário do escritor. A 28 de outubro o major apresentava ao juiz José Augusto de Oliveira a relação dos bens a inventariar, e a 9 de novembro, as declarações finais, acompanhadas de contas por ele pagas, como inventariante, a serem deduzidas do espólio. Uma delas era a das criadas (...) O escritor deixara de pagar-lhes os meses de agosto e setembro, que requereram ao inventariante (...) Deixara Machado também pequenas dívidas, no total de 123$300 (cento e vinte e três mil e trezentos réis), em casas de comércio em que se abastecia, como a Padaria das Laranjeiras, a Victoria Store (...), Grande Estábulo das Vacas, Farmácia das Laranjeiras (...), Açougue Flor de Laranjeiras e Caso de Santo Antonio (carvoaria e quitanda) cujas contas foram pagas, depois, pelo espólio. Este igualmente pagou uma conta de gás (...) Feitas todas as despesas necessárias, coube à herdeira a quantia de líquida de 21:134$098 (vinte e um contos, cento e trinta e quatro mil e noventa e oito réis),que por ela ser menor ficaram sob a guarda de seu pai e testamenteiro (...)[7].
Testamentos alcançam apenas bens materiais, passíveis de transmissão direta, de aferição imediata. Assim, se a herdeira Laura recebeu os valores que R. Magalhães Júnior nos informa, decorrentes das apólices da dívida, dos depósitos de caderneta de poupança, dos livros, de alguns direitos autorais (que se pulverizam e se dissolvem no tempo), a cultura brasileira herdou uma obra que jamais se esgota. Sempre se revela inesperadamente. Renova-se no horizonte de sentido e nas discussões e interpretações que provoca. É permanente. A herança é universal.
É também no testamento de Machado de Assis que o conceito de propriedade imaterial (e intelectual) pode se revelar de modo esclarecedor. A propriedade imaterial é aquela que recai sobre direitos, bens incorpóreos, com direitos autorais, privilégios de invenção, patentes, marcas de fábrica e comércio (...) abrange a propriedade industrial e a propriedade literária, artística e científica[8]. E ainda que alguma forma de legado possa alcançá-la, ela se transmite na complexa estrutura antropológica e sociológica da comunicação das culturas.
Criações do intelecto não se materializam de modo muito fácil. E também não se transmitem individualmente de forma muito simples. Substancializam patrimônio comum dos espíritos elevados, ou pelo menos pré-dispostos à aversão ao lugar-comum.
A propriedade intelectual e imaterial, em seu sentido mais realista, é de todos, e por isso pode ser também que não seja de ninguém.
A uma sobrinha-neta, Machado de Assis legou seus dinheiros, apólices, teréns, alfaias, livros. E a toda gente legou impressionante poder criador, uma lição de possibilidades de reinvenção da alma humana, de superação pessoal, num contexto de ceticismo desconcertante. Provoca-nos sentimentos de afeto e de amor à humanidade.
Tudo muito irônico. E muito mais do que um jogo de palavras. Se pela voz de Brás Cubas o escritor Machado de Assis afirmava que não teve filhos porque não queria transmitir a nenhuma criatura o legado de nossa miséria, seu legado comprova-nos que transmitiu a todas as criaturas um sentido verdadeiramente superior de nossa exuberante condição. Mas isso não estava em seu testamento. E não pode estar no testamento de ninguém.
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BIBLIOGRAFIA
Chalhoub, Sidney, Machado de Assis- Historiador, São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Diniz, Maria Helena, Dicionário Jurídico, São Paulo: Saraiva, 2008, vol. 4.
Faoro, Raimundo, Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio, São Paulo: Editora Globo, 2001.
Magalhães Júnior, R., Machado de Assis, Vida e Obra, vol. 4, Rio de Janeiro: Record, 2008.
Marcondes, Ayrton, Machado de Assis- exercício de admiração, São Paulo: A Girafa Editora, 2008.
Piza, Daniel, Machado de Assis, um gênio brasileiro, São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.
Schwarz, Roberto, Ao vencedor as batatas, São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2000.
Viana Filho, Luís, A vida de Machado de Assis, Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1974.
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[1] Piza, Daniel, Machado de Assis, um gênio brasileiro, São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.
[2] Cf. Schwarz, Roberto, Ao vencedor as batatas, São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2000, p. 231.
[3] Chalhoub, Sidney, Machado de Assis- Historiador, São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p . 17.
[4] Faoro, Raimundo, Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio, São Paulo: Editora Globo, 2001, p. 17.
[5] Cf. Viana Filho, Luís, A vida de Machado de Assis, Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1974, p. 262.
[6] Marcondes, Ayrton, Machado de Assis- exercício de admiração, São Paulo: A Girafa Editora, 2008, p. 331.
[7] Magalhães Júnior, R., Machado de Assis, Vida e Obra, vol. 4, Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 416.
[8] Diniz, Maria Helena, Dicionário Jurídico, São Paulo: Saraiva, 2008, vol. 4, p. 957.