Nesta semana trato do grande escritor Monteiro Lobato, literato que explicitou como nenhum outro o desencanto e a amargura para com a vida forense. Monteiro Lobato nasceu em Taubaté, São Paulo, em 18 de abril de 1882. Registrado como José Renato Monteiro Lobato, mais tarde mudou o nome para José Bento Monteiro Lobato, ao que consta para valer-se das iniciais JBML e usar uma bengala deixada pelo pai, cujo nome era José Bento. A mãe do escritor chamava-se Olímpia Augusta Monteiro Lobato. Por imposição do avô, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1900.
O desinteresse de Monteiro Lobato pelo curso de Direito era total. Parece que apreciava apenas um professor, Pedro Lessa, que lecionava Filosofia do Direito. Durante os anos de faculdade, Monteiro Lobato aprofundou amizades com as quais o interesse comum era a Literatura. Nasceu um grupo, o Minarete, e aí sua amizade com Godofredo Rangel, com quem trocou cartas a vida toda. O conjunto epistolar foi publicado como A Barca de Gleyre; as cartas revelam recorrentemente uma desconfiança para com o Direito, como se verá mais adiante.
Concluído o curso de Direito, retornou a Taubaté; foi festivamente recebido como bacharel. Nomeado promotor, mudou-se para Areias, no interior paulista. A vida forense o deprimia, desanimava, desgostava. Casou-se em 1908 e, no ano seguinte, herdou a fazenda do avô, Visconde de Tremembé. Deixou o Ministério Público e tornou-se fazendeiro.
Em meados da década de 1910 começou a publicar contos, crônicas, um pouco de crítica. Após vender a fazenda, mudou-se para São Paulo e fundou uma editora em 1918. Faliu sete anos depois e mudou-se para o Rio de Janeiro. Na então capital da República, colaborou na imprensa com certo destaque. Em 1926, seguiu para Nova Iorque e lá morou até 1931. Foi adido comercial brasileiro. Impressionado com o crescimento econômico dos Estados Unidos, dedicou-se a fazer proselitismo em torno da exploração do petróleo e do ferro.
Em virtude de intransigente luta em prol de soberania nos direitos de exploração do subsolo, foi preso, em 1941, por três meses. Seguiu para a Argentina em 1946, lá vivendo um ano. Ao retornar ao Brasil, era pranteado e festejado autor de livros infantis. Morreu em 4 de julho de 1948 em virtude de um espasmo vascular. É sobre a trajetória de Monteiro Lobato e seu desencanto para com o Direito que se trata em seguida.
O curso jurídico foi uma imposição do avô, de quem herdaria a fazenda. Segundo Edgard Cavalheiro, o mais documentado e respeitado biógrafo de Monteiro Lobato:
Está com 15 anos de idade quando perde o pai. Um ano depois é a mãe que parte para sempre. Suas tendências, nessa época, são as belas-artes. Quer ser pintor. No máximo estudaria com prazer engenharia. Mas o direito é a carreira que o Visconde escolhe e impõe. Embora contrariado, José Bento se prepara para ser Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. (...) Não havia completado 18 anos quando entra para a Faculdade de Direito. Que o curso de Direito pouco lhe interessaria, não padece dúvida de espécie alguma. Um ex-colega, depondo alguns anos depois, acentuou: “Do Direito nunca falamos nas conversações e se classificamos os lentes era pela qualidade dos sais das pilhérias, sal ático ou sulfato de magnésio”. O próprio Lobato confessará mais tarde que o único lente diante de quem não escondia o tédio, ou longos bocejos, de puro enfado, era Pedro Lessa. Seu interesse ia todo para a literatura.[1]
As referências que Lobato fez do curso são irônicas, sarcásticas, zombeteiras, mordazes. Escrevendo a um amigo:
Gracias mil. Se é verdade que daqui há meses oito me saio bacharel do venerando laboratório em que o Estado faz doutores por 500$ em 5 prestações anuais (...)[2]
Em carta a Godofredo Rangel Lobato, queixava-se da aridez dos temas que a faculdade se propunha ensinar:
E por que escrevo em momento assim impróprio? Porque amanhã, sábado, entro-me em exame oral e estou com os minutos contados, a recordar definições e textos desta horrível seca que é a matéria.[3]
Os temas de Direito eram-lhe indigestos, a julgarmos o teor de suas cartas. Para Godofredo Rangel:
Ainda com os dedos trôpegos dum interminável ponto de Direito de Falências que acabo de copiar, venho responder à tua carta.[4]
Lobato projetou esse mal-estar à formatura e ao que sucedeu após colar grau. É assim que narrou sua volta a Taubaté:
Logo que cheguei (que cheguei formado!) mimosearam-me com uma manifestação; foguetes (Taubaté não faz nada sem foguetes), a banda de música, molecada atrás e oito discursos, nos quais se falou em “raro brilhantismo”, “um dos mais”, “as veneradas arcadas” e outras macuquices que tive de agüentar de pé firme em casa de meu avô. Eu percebia o jogo: a manifestação era mais dirigida a ele do que a mim (...). Não respondi macucalmente como era esperado. Declarei que não havia razão para homenagens, porque se tratava dum bacharel mais pelo Largo do Rosário do que pela Academia, no qual as ciências do Triângulo superavam as do Corpus Juris. Disse ainda que um novo advogado não passa mais de uma filoxera social que sai do casulo — e por aí além. Os manifestantes entreolharam-se. A língua era nova e desconhecida na terra, mas a cerveja que o avô mandou servir (e creio que era ao que realmente vinham) reconciliou-se com o neto.[5]
Lobato imputava a um advogado a categoria de filoxera social. A filoxera é inseto que ataca as raízes e faz secar as folhas das plantas. A imagem é absolutamente contundente na proporção em que nos revela o juízo de Lobato a propósito da advocacia. Para o escritor, o advogado era um inseto que ataca raízes e faz secar as folhas das plantas.
Depois de rápida passagem por Taubaté, terra do avô, foi designado promotor em Areias. À época, virada do século, o Ministério Público não tinha o perfil que tem na contemporaneidade. O desencanto já se verificava, no entanto, desde Taubaté, de onde Lobato escreveu a Godofredo Rangel:
Estou promotor interino. Visito a cadeia no fim do mês, converso com os presos, mando um memorandum ao governo dizendo que a paz reina em Varsóvia – e tudo desliza sobre mancais de bolinhas. Tenho no júri de acusar nove desgraçados...[6]
Lobato zomba do cargo ao exigir de um amigo íntimo o DD no envelope. Moteja com Areias, cidade que positivamente há de existir. Mofa com Washington Luís Pereira de Souza (que mais tarde será governador de São Paulo e presidente da República, o célebre “Paulista de Macaé de Fato Bom Sujeito é”) a propósito do “s” do nome.
Não gostava do júri. Detestava acusar os pobres réus. Afastava-se do tabelião. Não tinha vínculo ideológico com o juiz. Não lia autores de Direito. Jamais escreveu artigo jurídico. Lobato deixou Areias e a vida de promotor, para a qual não se sentia talhado. Tudo é motivo para Lobato criticar o Direito posto, ou tudo que a ele se relaciona. Em Urupês:
Os herdeiros impugnaram o pagamento. Move-se a traquitana da justiça. Moi-se o palavreado tabelionesco. Saem das estantes carunchosos trabucos romanos.[7]
Ao comparar a Justiça a uma traquitana, espécie de sege que se move vagarosamente, Lobato faz coro com aqueles que criticam a morosidade da Justiça. No mesmo excerto, um pouco mais à frente, continuou Lobato:
A Justiça engoliu aquele papel, gestou-o com outros ingredientes da praxe e, a cabo de prazos, partejou um monstrozinho chamado sentença, (...)[8]
A crítica aos juízes e à Justiça é frequente, e as imagens que usa são realmente tocantes. Por exemplo, ao comentar as provas de um livro de Direito que editaria, imaginou uma Justiça oxigenada que:
(...) arredada de uma coisa linda e única verdadeira, chamada vida, na qual nossos juízes não acreditam, já que erguem muralhas contra o ar novo, o ar livre, o ar vivo, o ar que se côa por montes, vales e mares e todo se enriquece de ricos oxigênios hostis. Às sulfurinas cadavéricas.[9]
Lobato criticava juízes que não despachavam, não sentenciavam, porque, para ele, pior do que decidir mal é demorar para decidir. E escreveu:
(...) e finalmente a fauna dos brasílicos jabotis togados, que dormem anos na pontaria dos despachos e causam à economia pública mal maior que o juiz que se vende, mas é expedito.[10]
E para ilustrar a angustiosa questão do juiz lento, que não decide, narrou uma passagem do Imperador Teodorico:
Certa vez apresentou-se ao imperador Teodorico uma viúva queixosa de juízes à brasileira; contendia ela com um senador e já se passavam três anos sem que os meritíssimos lhe julgassem a causa. Teodorico chamou à sua presença os Jabotis e intimou-os a apressarem a marcha do processo. No outro dia estava lavrada a sentença.
— “Se era a coisa tão simples, disse-lhes o grande imperador, por que motivo retardastes de três anos o julgamento?”
— E mandou cortar a cabeça aos três.
Morrem os Jabotis, mas não morre o jabotismo. Vige e viça por cá, como em seu verdadeiro habitat, visto que os não assusta o abençoado cutelo do imperador ostrogodo.[11]
Lobato percebia o Direito como imposição do mais forte:
O pobre que obedece ao rico ou poderoso e mata ou faz-se matar por ele. O rico ou poderoso é o dono do mundo. Inventa leis de honra, “defesa da ordem social”, disciplina férrea etc, lindos formalismos tendentes todos a utilizar-se do “pobre” como instrumento da sua comodidade e da manutenção do status quo: ricos em cima, pobres em baixo.[12]
Foi seu realismo que o incompatibilizou com o júri, e em sua atividade de escritor isso pode ser muito bem entendido. Lobato tinha incumbência de acusar réus que não admitia intimamente como culpados. E mesmo se a culpa fosse um fato, ele se angustiava, na medida em que pensava dentro de cânones deterministas: o criminoso era o resultado do meio. Confira-se a seguinte passagem, onde Lobato nos dá conta dessa ideia, além de alfinetar, ainda outra vez, a prática judiciária:
Júri, ontem. Acusei um pobre mulato vítima de todas as más heranças do sangue, irresponsabilíssimo. Acusei-o de modo a conseguir a absolvição. Enquanto se desenrolava a estafante leitura do processo e o mais, puxei do bolso e li à socapa (se o soubessem...!) o Don Paez de Musset. O tempo, assim aliviado, correu em deslize macio, e todo me lavei da sórdida impregnação do ritual judiciário no banho rítmico daqueles deliciosos ventos.[13]
Sua sensibilidade transpôs para a literatura a angústia que a vida forense lhe representou. Perceba-se a seguinte descrição:
Depois de julgado o fato, quando o Juiz de Direito formula a sentença, profundo silêncio domina a sala inteira. Fora do recinto, além da grade, dez, vinte caras habituais, criaturas gulosas do epílogo que só aparecem para ouvir a sentença (...).
O Juiz ergueu-se, de papel na mão. O silêncio é absoluto. A sala toda se transforma em ouvidos. O Juiz lê: “...condeno o réu tal a cinco anos de prisão celular.” (...)[14]
Carregado de desilusão, de pessimismo e de ceticismo, Lobato lutou por superação desse vazio, valendo-se de sua literatura crítica. É o caso do sublime conto Júri na Roça. Começa descrevendo o palco:
Os seus domínios jurídicos são o reino da própria Pacatez. Os anos ali fluem para o esquecimento no desligar preguiçoso dos ribeirões espraiados, sem cascatas nem corredeiras encrespadoras do espelho das águas — distúrbio, tiro ou escândalo passional.[15]
E depois descreve os personagens:
Que regalo! Ia o promotor cantar a tremenda ária da Acusação; o Zezéca Esteves, solicitador, recitaria a Douda de Albano disfarçada em Defesa. Sua Excelência o Meritíssimo Juiz faria de ponto e contra-regra. Delícias da vida![16]
E em seguida, o movimento:
O juiz, feito um gavião pato, senta no meio da mesa, num estrado deste porte; à mão direita fica o doutor promotor com uma maçaroca de papéis na frente. Embaixo, na sala, uma mesa comprida com os jurados em roda. E a coisa garra num falatório até noite alta: o Chico lê que lê; o promotor fala e refala; o Zezéca rebate e tal e tal. Uma lindeza![17]
A narrativa ganha tons hilariantes quando Lobato descreve a fala do promotor. A ironia alcança seu ponto máximo:
O promotor, sequioso por falar, com a eloqüência ingurgitada por vinte anos de choco, atochou no auditório cinco horas maciças duma retórica do tempo do onça, que foram cinco horas de pigarros e caroços de encher balaios. Principiou historiando o Direito criminal desde o Pitecantropo Erecto, com estações em Licurgo e Vedas, Moisés e Zend-Avesta. Analisou todas as teorias filosóficas que vêm de Confúcio a Freixo Portugal; aniquilou Lombroso e mais “lérias” de Garófalo (que dizia Garofálo); provou que o livre arbítrio é a maior das verdades absolutas e que os deterministas são uns cavalos, inimigos da religião de nossos pais; arrasou Comte, Spencer e Haeckel, representantes do Anti-Cristo na terra; esmoeu Ferri. Contou depois sua vida, sua nobre ascendência entroncada na alta prosapia duns Esteves do Rio Cávado, em Portugal: o heroísmo de um tio morto na Guerra do Paraguai e o não menos heróico ferimento de um primo, hoje escriturário do Ministério da guerra, que no combate de Cerro-Corá sofreu uma arranhadura de baioneta na 'face lateral do lóbo da orelha sinistra'.[18]
E o psitacismo do empolgado promotor ia ainda mais longe:
Provou em seguida a imaculabilidade da sua vida; releu o cabeçalho da acusação feita no julgamento-Intanha; citou períodos de Bossuet — a águia de Meaux, de Rui — a águia de Haia, e de outras aves menores; leu páginas de Balmes e Donoso Cortez sobre a resignação cristã; aduziu todos os argumentos do Doutor Sutil a respeito da Santíssima Trindade; e concluiu, finalmente, pedindo a condenação da “fera humana que cinicamente me olha como para um palácio” a trinta anos de prisão celular, mais a multa da lei.[19]
Houve altercação entre promotor e defensor, o conselho deu sinais de canseira, após ouvir tanta asneira. O escrivão estava acostumado. Muita gente acabou dormindo, a começar pelos guardas. Os jurados fugiram pela janela, deixando um bilhete na mesa, onde anunciavam que condenaram o réu ao grau máximo. No entanto, o réu havia fugido... O conto resume o estado irônico de Lobato para com o Direito, como a descortinar seu desencanto. Os estereótipos que desfilam em sua prosa são pedaços de uma realidade cuja crítica foi sua bandeira de luta.
Lobato foi um crítico mordaz do modelo tributário. Em Idéias de Jeca Tatu ao descrever a chegada da família real portuguesa no Brasil, Lobato chama a atenção para o desembarque de um personagem:
O Fisco — um canzarrão tremendo de dentuça arreganhada 3 é conduzido no açamo por vários meirinhos.[20]
E, em outra obra, verificava no Fisco uma herança portuguesa:
Portugal só organizou uma coisa no Brasil-colônia: o Fisco, isto é, o sistema de cordas que amarram para que a tromba percevejante siga sem embaraços. Quem lê as cartas régias e mais literatura metropolitana enche-se de assombro diante do maquiavélico engenho luso na criação de cordas. Cordas trançadas de dois, de três, de quatro ramais; cordas de cânhamo, de crina, de tucum, de tripa; cordas estrangulatórias de espremer o sangue amarelo e cordas de enforcar.[21]
E continua, agora a propósito do Imposto de Renda:
A invenção do novo borzeguim — imposto de renda — excede a tudo quanto saiu da cabeça dos inquisidores: a vítima ignora o que tem de pagar e se não paga com exatidão incide em pena de confisco! E se em desespero de causa pede ao Fisco que lhe explique o mistério, que lhe dê a chava vertical e horizontal do quebra-cabeças, o marquês de Sade sorri e responde diagonalmente:
— Pague com cheque cruzado, e explica com grande ironia de detalhes como se toma de uma régua, duma pena molhada em boa tinta e como se cruza um cheque.[22]
A ironia é implacável. O suposto devedor, ao perguntar por que deve, tem como resposta o como pagar. É a imagem da repartição pública onde o devedor, ao questionar fato gerador, base de cálculo, lançamento, multa, juros de mora, tem como resposta o regular preenchimento de um guia de recolhimento. Para Lobato, a imposição tributária é perene na vida do cidadão. Começa bem cedo, com as primeiras providências do dia, nos hábitos, nos vícios:
Pela manhã, ao acender o primeiro cigarro, tem que gastar o esforço de duas unhadas para romper o selo com que o fisco tranca as caixas de fósforo e os maços de cigarro.[23]
O escritor defendia a vinculação tributária. Não há como, segundo ele, tributar sem se oferecer uma contraprestação. É o que se subsume da passagem:
O imposto não se justifica sem uma equivalente prestação de serviços. Fora daí é puro roubo.[24]
Lobato era irredutivelmente agressivo para com o Fisco, que qualificava com os mais negativos impropérios. Escreveu:
Que é o fisco senão um “sistema de embaraços” opostos à livre atividade do homem, que deles só se livra por meio de entrega ao Estado de uma certa quantidade de dinheiro.[25]
A tributação, para Lobato, vislumbra iniquidades que mudam o rumo da história. A Inconfidência Mineira é um exemplo e Lobato sugere outro, tomado da história universal:
A história da civilização cabe dentro da história do Fisco. Grandes convulsões sociais, como a Revolução Francesa, tiveram como verdadeira causa as iniquidades do Fisco.[26]
Não há prazer no recolhimento, para Lobato, principalmente quando não se tem nada em troca. A obrigação tributária, para Monteiro Lobato, é odiosa:
Pagar impostos é coisa desagradável porque significa dar moeda em troca de coisas que não nos aproveitam diretamente. Em todos os tempos o homem sempre fugiu de pagar impostos. Paga-os compulsoriamente.[27]
Lobato acreditava que além das imposições compulsórias em moeda havia também outra imposição, que da nação tirava trabalho e esforços. Porém, vale-se de imagem metafórica, comparando o esforço que o Estado tira das pessoas com o esforço decorrente da abertura da caixa de fósforos, lacrada com o selo do imposto de consumo. Vejamos a passagem:
— O esforço que acabo de fazer para abrir esta caixa de fósforos repete-se no Brasil 5 milhões de vezes por dia. Supondo que um quilogrâmetro de força muscular dê para abrir 200 caixas, teremos um dispêndio de 333 cavalos-vapor para abrir os 5 milhões de caixas que se abrem diariamente, ou sejam, num ano, 121.500 cavalos. É o esforço, o dispêndio inútil de energia que um simples selo, grudado às caixinhas de fósforos, exige do país.[28]
No livro Negrinha, Lobato estampou um conto, chamado O Fisco, onde se vale da ficção para chicotear as iniqüidades tributárias que tanto combatia. A estória se passa em São Paulo. Um menino, de família humilde, maltrapilho, com sua caixa tosca de engraxate, feita pelas próprias mãos, pensou em ajudar a família, trabalhando como engraxate, nas ruas de São Paulo. O garoto, sem autorização da Prefeitura (e ele nem sabia o que era ou porque havia necessidade disso) fora surpreendido pelo fiscal:
— Então, seu cachorrinho, sem licença, heim? Exclamava entre colérico e vitorioso, o mastim municipal, focinho muito nosso conhecido.[29]
E continua Lobato:
A miserável criança evidentemente não entendia, não sabia que coisa era aquela de licença, tão importante, reclamada assim a empuxões brutais.[30]
A família, muito pobre. Após narrar os dramas dessas famílias, que viviam no Brás, no início do século, Lobato imagina a criança de volta para a casa:
Horas depois o fiscal aparecia em casa de Pedrinho com o pequeno pelo braço. Bateu. O pai estava, mas quem abriu foi a mãe. O homem nesses momentos não aparecia, para evitar explosões. Ficou a ouvir do quarto o bate-boca.O fiscal exigia o pagamento da multa. A mulher debateu-se, arrepelou-se. Por fim, rompeu em choro.[31]
E a mulher teve de pagar:
Mariana nada mais disse. Foi à arca, reuniu o dinheiro existente — dezoito mil réis ratinhados havia meses, aos vinténs, para o caso dalguma doença, e entregou-os ao Fisco.[32]
Lobato, ainda, anota o epílogo, começa com o Fiscal:
E foi à venda próxima beber dezoito mil réis de cerveja.[33]
Por fim, quanto ao menino:
Enquanto isso, no fundo do quintal, o pai batia furiosamente no menino.[34]
O conto dimensiona, a partir de uma questão tributário-administrativa, o problema da justiça. Lobato valeu-se do conto para expressar sua opinião sobre um funcionalismo corrupto, arrogante e ineficiente. Edgard Cavalheiro reproduziu em sua biografia passagem de Lobato, que qualifica a premissa:
Não há serviço público que não empregue cinco homens, pessimamente pagos, para fazer, malfeitíssimamente, a tarefa que um só, bem pago, faria a contento.[35]
A concepção tributária de Lobato é muito próxima de suas ideias de justiça. Como homem de negócios, de ação, pôde Lobato viver, de experiência própria, os efeitos nefastos de um modelo tributário agressivo e ineficiente. No conto O Fisco, Lobato dimensionou a questão em nível de drama humano, que vivera ao longo de sua vida de homem de negócios. Para o escritor, a miséria radicava na desigualdade da distribuição dos bens, que, poderia ser mitigada por um sistema tributário mais humano. Escreveu Lobato:
— E que é a miséria senão a consequência última da injustiça na distribuição dos bens?[36]
A guerra que Lobato fazia ao fisco (e que de certo modo tem resultados, dada a imunidade tributária dos livros, que tanto defendeu) é mais uma faceta de seu espírito combativo. A circunstância traduz, identificando sistemática oposição à imposição tributária irracional, mais uma perspectiva de desilusão jurídica.
Lobato acreditava que a vida do operador jurídico é vazia porque as condições determinantes da justiça são estruturais, dependentes da justiça econômica, fundamentada na boa distribuição de renda. Imaginava nosso Brasil um país de tavolagem e em crônica, que leva esse nome, escreveu:
Evidente, pois, que só uma solução existe para todos os problemas nacionais: a indireta, a solução econômica. Só a riqueza traz instrução e saúde, como só ela traz ordem, moralidade, boa política, justiça.[37]
E por não acreditar na Justiça, Lobato levava sua incredulidade para tudo que envolvia o Direito. Por exemplo:
— É também vigarista o juiz que pune os vigaristas?
— E dos bons! O juiz é um vigarista ilustre que a sociedade elegeu para passar o conto nos vigaristas pequenos, que passam o conto nos vigaristas grandes...[38]
Após delegar ao juiz os epítetos negativos acima reproduzidos, Lobato continua, tocando outros pontos da vida jurídica:
O meu advogado, que é um vigarista insigne, vai passar o conto no juiz e eu serei posto em liberdade pelo conto do habeas corpus, que é o conto do vigário que a lei passa na justiça...[39]
Lobato criticava abertamente as concepções formais de Direito e de Justiça. Escreveu:
Se o Direito representasse um reverbero da Justiça como a sonham filósofos, o direito indurar-se-ia na consciência de cada homem, confundindo-se com a moral e dispensando a sanção. Por que existem hoje, como outrora, como sempre, tantos infratores das leis? Porque tais leis só representam conservação, permanência, status quo de fato, e nunca uma pura emanação da justiça.[40]
E outra vez contra a judicatura, onde aproveita para teorizar criminologia:
O juiz da comarca vizinha tem a alma clássica dos juízes. Odeia o criminoso e quer a pena como castigo. Não vê no delinqüente a miserável criatura tarada; vê o delito, a letra da lei.
No entanto não há crimes, há apenas criminosos.[41]
Lobato com mordacidade censurou as concepções clássicas da tripartição dos poderes, em interessante passagem:
(...) o regime no Brasil é o inominável disparate fisiológico do corpo com três cabeças autônomas — os três poderes. A natureza não criou nada com três cabeças.
— As minhocas têm duas.
— Duas apenas, e por isso, envergonhadas, metem-se pela terra a dentro. A tricefalia é pura monstruosidade anatômica.[42]
Monteiro Lobato criticava as concepções formais que tivera de estudar na Faculdade, fazendo-o com graça e sutilidade. Vejamos a seguinte passagem:
— Mas os crimes não devem ficar impunes. Diz o brocardo: fiat iustitia et pereat mundus. Faça-se justiça ainda que pereça o mundo.
— Há uma idéia mais inteligente que a desse estúpido e cruel brocardo. E nessa idéia assenta o moderno conceito de justiça. É a substituição do pereat pelo floreat. Faça-se a justiça para que prospere o mundo. Se de um ato de justiça redundar mal maior, essa justiça é injusta.[43]
Com redação primorosa, repleta de imagens intrigantes, Lobato ridicularizou o amplo plexo de normas legais. A seguinte passagem comprova a assertiva:
O “nouveau riché” é o falsificador.
Temos códigos e leis artilhados contra eles — mas códigos e leis que lembram os dragões de papelão construídos pelos chineses para amedrontar o inimigo. Esses dragões, vomitando chamas de zarcão, seguiam na frente das tropas; se o inimigo, apavorado, debandava, muito que bem, era a vitória. Mas o inimigo, nada ingênuo, nunca debandava e a China só conheceu derrotas. Temos códigos dragões e leis que vomitam o fogo das penalidades; entretanto, como o falsificador sabe que o código é dragão chinês e o fogo das penalidades é puro “fogo pintado”, a classe prolifera, cresce de vulto e de insolência — e sorri, piscando o olho, se alguma vez o monstro lhe arreganha a dentuça. Sabem eles o segredo de transformar a fera em manso cordeiro de veludo.[44]
A abundância de textos de Lobato a identificar desilusão jurídica é notória. Em Cidades Mortas continua atirando:
Os ricos são dois ou três, coronéis da Briosa, com cem apólices a render no Rio; e os sinecuristas acarrapatados ao orçamento: juiz, coletor, delegado.[45]
É também em Cidades Mortas que Lobato faz definitiva profissão de fé:
Nos dias de Júri reúnem-se os advogados e rábulas na ante-sala do tribunal, os primeiros a virem, os últimos a saírem, como gente que procura gozar, bem gozado, um ambiente poucas vezes fornecido pelas circunstâncias. E, como peixes n’água, à vontade, dão trela à comichão mexeriqueira da rabulice, esquecendo-se em interminável prosa sobre processos, atos judiciários, movimento forense, nomeações, negócios profissionais, pilherias jurídicas. As cabeças estão abarrotadas de leis, regulamentos, decretos e fatos jurídicos, de modo a só tomarem conhecimento das relações entre o fato e a lei escrita, e nunca entre o fato e a lei natural — o que é próprio do filósofo. Na natureza só vêem coisas fungíveis, infungíveis, móveis, imóveis, semoventes, bens, res nullius, artigos de enfiteuse — a carne e o osso, enfim, da propriedade. Essa janelinha que o artista e o filósofo trazem aberta para a natureza bruta, ou para a humanidade, vistas, uma como turbilhão de forças em perene esfervilhar, outra como oceano de paixões onde se debate o Homo — animal filho da natureza, todo ele vegetação viçosa de instintos irredutíveis — o homem de leis abre-a para a rede de fios que a lei trama e destrama, fios que atam os homens entre si ou à natureza convertida em propriedade. E toda a maranha velhaca que isso é engloba-se dentro da mais bela concepção de idealismo — a Justiça.[46]
Finalmente, é de Edgard Cavalheiro a passagem, que nos deixa atônitos e que, de vez, traduz, diretamente, o pensamento de Lobato:
Achava que os magistrados deviam também passar algum tempo na cadeia. Muito aprenderiam, e interessantes apontamentos poderiam extrair na intimidade com aqueles miseráveis, com aquele rebotalho humano.[47]
Por quê? Um conjunto de fatores explica ou pode explicar o desencanto jurídico em Monteiro Lobato. O excesso de leituras poderia ter afastado o escritor de uma suposta aridez dos textos jurídicos, que ele sempre nominou de maçantes. Seu aguçadíssimo espírito crítico não contemporizava com as iniquidades que vira, inclusive como promotor.
Seu ceticismo radical matizou a incredulidade mórbida e perene para com concepções formais dos campos jurídicos. Sua efetividade prática, seu espírito empreendedor e sua mobilidade fática repeliam o abstrato, o teórico, o conceitual, que desenham o Direito, como criação eminentemente cultural. Seu inconformismo constante o afastou das soluções impostas.
Também, e com muita razão, a vocação determinada pelo avô ameaçou um ideal libertário que, numa perspectiva freudiana, valeu-se da vida para acertar contas com o passado. Monteiro Lobato é fonte permanente para estudo do Direito na Literatura.
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[1] Edgard Cavalheiro, Vida e Obra de Monteiro Lobato, Introdução, in Urupês, pág. 5.
[2] Monteiro Lobato, Cartas Escolhidas, 1º vol. pág. 67.
[3] Monteiro Lobato, A Barca de Gleyre, 1º vol. pág. 27.
[4] Monteiro Lobato, A Barca de Gleyre, 1º vol. pág. 33.
[5] Monteiro Lobato, A Barca de Gleyre, 1º vol. págs. 85 e 86.
[6] Monteiro Lobato, A Barca de Gleyre, 1º vol. pág. 145.
[7] Monteiro Lobato, Urupês, pág. 189.
[8] Monteiro Lobato, Urupês, pág. 189.
[9] Monteiro Lobato, Na Antevéspera, pág. 141.
[10] Monteiro Lobato, Na Antevéspera, pág. 140.
[11] Monteiro Lobato, Na Antevéspera, pág. 140.
[12] Monteiro Lobato, Na Antevéspera, pág. 228.
[13] Monteiro Lobato, Mundo da Lua, pág. 69.
[14] Monteiro Lobato, Mundo da Lua, pág. 70.
[15] Monteiro Lobato, Cidades Mortas, pág. 79.
[16] Monteiro Lobato, Cidades Mortas, pág. 80.
[17] Monteiro Lobato, Cidades Mortas, pág. 81.
[18] Monteiro Lobato, Cidades Mortas, pág. 83 e 84.
[19] Monteiro Lobato, Cidades Mortas, pág. 84.
[20] Monteiro Lobato, Idéias de Jeca Tatu, pág. 14.
[21] Monteiro Lobato, Na Antevéspera, pág. 92.
[22] Monteiro Lobato, Na Antevéspera, pág. 94.
[23] Monteiro Lobato, Na Antevéspera, pág. 95.
[24] Monteiro Lobato, Na Antevéspera, pág. 212.
[25] Monteiro Lobato, Mundo da Lua, pág. 206.
[26] Monteiro Lobato, Mundo da Lua, pág. 206.
[27] Monteiro Lobato, Mundo da Lua, pág. 210.
[28] Monteiro Lobato, Mr. Slang e o Brasil, pág. 45.
[29] Monteiro Lobato, Negrinha, pág. 37.
[30] Monteiro Lobato, Negrinha, pág. 37.
[31] Monteiro Lobato, Negrinha, pág. 44.
[32] Monteiro Lobato, Negrinha, pág. 44.
[33] Monteiro Lobato, Negrinha, pág. 44.
[34] Monteiro Lobato, Negrinha, pág. 44.
[35] Monteiro Lobato, apud Edgard Cavalheiro, Monteiro Lobato, pág. 314.
[36] Monteiro Lobato, Mr. Slang e o Brasil, pág. 40.
[37] Monteiro Lobato, Na Antevéspera, pág. 38.
[38] Monteiro Lobato, Na Antevéspera, pág. 89.
[39] Monteiro Lobato, Na Antevéspera, pág. 89.
[40] Monteiro Lobato, Mundo da Lua, págs. 17 e 18.
[41] Monteiro Lobato, Mundo da Lua, pág. 20.
[42] Monteiro Lobato, Mr. Slang e o Brasil, pág. 83.
[43] Monteiro Lobato, Mr. Slang e o Brasil, pág. 104.
[44] Monteiro Lobato, Mr. Slang e o Brasil, pág. 288.
[45] Monteiro Lobato, Cidades Mortas, pág. 5.
[46] Monteiro Lobato, Cidades Mortas, págs. 23 e 24.
[47] Edgard Cavalheiro, Monteiro Lobato, 2º vol., pág. 70.