Fábio Medina Osório e o Direito Administrativo Sancionador

Fábio Medina Osório e o Direito Administrativo Sancionador

Sou um constante leitor de Fábio Medina Osório, com quem muito aprendo, principalmente em dois livros centrais do Direito Administrativo contemporâneo: Direito Administrativo Sancionador e Teoria da Improbidade Administrativa. Com base nesses dois textos fundacionais, como advogado, reverti investidas sancionatórias descabidas nesse resíduo inquisitorial do Direito brasileiro que é o processo administrativo disciplinar.

Um Halloween nada festivo para servidores indefesos, o PAD pode ser instrumento de tortura institucional escorado no mantra inexplicável da independência das instâncias. Um legado do Direito Administrativo varguista e castelista, centrado em autores que eram bajuladores do Estado. Fábio é um ponto de inflexão nessa tradição autoritária.

É significativa sua influência na compreensão arejada do espinhoso tema da improbidade administrativa. Suas preocupações foram absorvidas pelos tribunais e tornaram-se vetores interpretativos das alterações da Lei 14.230/2021, que reconfigurou substancialmente a Lei de Improbidade Administrativa.

Fábio nos ensina que improbidade administrativa é ilegalidade qualificada por imoralidade de gravidade excepcional. A improbidade revela desonestidade e ineficiência que prejudicam a administração e, por extensão, toda a sociedade. No entanto, não se pode enquadrar a improbidade apenas no limitado contexto matemático e analítico do prejuízo ao erário.

A improbidade é marcada pela violação de deveres administrativos que se desdobram da proteção de valores constitucionais. A improbidade agride a transparência (que é um conceito objetivo) ao mesmo tempo em que hostiliza a moralidade (que, por sua vez, é um conceito que pode ser voluntarista e subjetivo).

Influência na Lindb e na jurisprudência

A guinada conceitual se dá na medida em que Fábio defendeu a incorporação ao Direito Administrativo Sancionador dos princípios centrais do Direito Penal, a exemplo da legalidade e da tipicidade. É um iluminado discípulo de Eduardo García de Enterría, de quem foi aluno na Espanha. Com Fábio o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal deixaram de ser duas retas que se encontravam apenas no infinito. Sanções administrativas devem respeitar garantias constitucionais do cidadão, escudando-o de interpretações arbitrárias e punitivistas que indicam perseguições e desmandos.

Essa influência fica nítida na emblemática decisão que o Superior Tribunal de Justiça proferiu no RMS 21.922/GO. A corte enfatizou que a aplicação de uma sanção exige como fundamento uma base normativa inquestionável, específica, nítida e compreensível.

Fábio influenciou também a construção da reforma da Lei de Interpretação das Normas do Direito Brasileiro, particularmente em dispositivo que nos dá conta de que nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se pode decidir com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão (artigo 20, incluído pela Lei nº 13.655/2018).

Ao longo de duas décadas há perceptível influência de Fábio na consolidação de paradigmas decisórios tanto no Supremo Tribunal Federal, quanto no Superior Tribunal de Justiça. Há muita referência e citação direta de seus textos. Leitura cuidadosa de várias decisões indica alinhamento jurisprudencial com suas orientações doutrinárias, especialmente quanto à utilização de critérios de razoabilidade, de proporcionalidade e de deferência para com a legalidade estrita, quando da fixação de sanções administrativas.

Exemplifico com o decidido pelo STJ no REsp 664.856/PR. Neste julgado, o STJ invocou lições doutrinárias de Fábio para enfatizar que o devido processo legal é direito fundamental dos administrados, de modo que sanções não podem ser aplicadas sem cumprimento e observação de todas as garantias processuais que são na essência garantias constitucionais.

A jurisprudência abraçou perspectiva de Fábio ao equilibrar proteção de interesse público com defesa dessas garantias. O dificílimo alcance desse equilíbrio, que exige coragem na onda midiática de um direito administrativo do espetáculo, desmobilizou certa sanha punitivista (que cisma em ressuscitar, em forma de law fare).

O STF referendou essa perspectiva renovada, com visão inovadora, ao decidir o Tema 1.199. Sanções administrativas exigem critério rigoroso de dolo ou de culpa gravíssima ou, na expressão do ministro Alexandre de Moraes, “a responsabilidade civil por ato de improbidade administrativa sempre exigiu a plena comprovação da responsabilidade subjetiva.”

A nova versão da LIA extinguiu a improbidade culposa. O ato de improbidade exige comprovação de dolo por parte do agente acusado. Fábio desde sempre insistiu que a improbidade culposa é um risco para a segurança jurídica. Em um Direito Administrativo civilizado não se pode permitir a penalização com base em gralhas desprovidas de nítida e comprovada intenção de lesar a administração.

Defesa do non bis in idem

Penso que é também importante contribuição de Fábio a compreensão de que sanções administrativas devem ser pautadas por critérios rigorosos de legalidade e proporcionalidade. Prova da aplicação normativa desse postulado está na Lei 14.230/2021, que alterou o § 4º, do artigo 1º, da Lei 8.429/1992, dispondo que se aplicam ao sistema da improbidade disciplinando os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.

A maior contribuição de Fábio no assunto, penso, é a intransigente defesa do princípio do non bis in idem. Não se pode ser penalizado duplamente pelo mesmo fato. A jurisprudência consolidou-se nesse sentido, a exemplo do decidido pelo STF na Rcl 41.557/SP, relatado pelo ministro Gilmar Mendes: uma mesma narrativa fática não pode sustentar processos sancionatórios duplicados.

Fábio Medina Osório protagoniza papel central na compreensão sobre improbidade administrativa no Brasil. Sua visão integrada do Direito Administrativo Sancionador, pautada em garantias constitucionais e no respeito ao devido processo, é referência para a aplicação de sanções administrativas de maneira justa e equilibrada.

A reforma da Lei de Improbidade, que incorporou muitos de seus princípios, representa um divisor de águas na adaptação da legislação às necessidades de segurança jurídica e proteção dos direitos constitucionais. O Direito Administrativo Sancionador pode, ao mesmo tempo, proteger a coletividade (em forma de proteção ao erário), a moralidade administrativa e os direitos fundamentais. Fábio Medina Osório, ao equacionar essa tensão, é um genuíno pensador de nossos tempos.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 13/11/2024
Código do texto: T8196015
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