O Último dos Copistas, de Marcílio França Castro

O Último dos Copistas, de escritor mineiro Marcílio França Castro, é um belíssimo livro que se desdobra em vários planos distintos, no tempo e no espaço. O pano de fundo, penso, é a transição das formas de fixação e de divulgação da palavra-escrita. O autor condensa com perspicácia a passagem do texto manuscrito copiado para a o texto impresso, ao mesmo tempo em que alcança a passagem do texto impresso para o texto virtual. São dois momentos substancialmente diferentes na forma, porém essencialmente idênticos no conteúdo. É esse o fio condutor da narrativa.

Tem-se a impressão de que o livro caminha em dois sentidos: do fim para o começo, e do começo para o fim. Lygia, a ilustradora, remete notas de viagem, na trilha do último copista Ângelo Vercécio, que da Ilha de Creta seguiu para a França. O copista trabalhou para Francisco I; sua forma de escrever é a base para os tipos desenhados por Claude Garmound, que também viveu no século XVI, e que hoje denomina esse tipo de escrita, de uso difundido, por várias editoras. As notas de viagem de Lygia invertem a lógica cronológica de uma narrativa que principia com um suposto ensaio, que trata do copista Vercécio. Há uma misteriosa filha de Vercécio, que talvez se confunda com a misteriosa filha de Arnaldo, o professor que se aposentou.

O autor reflete sobre nossos tempos, tão ou mais transitórios do que os tempos de Francisco I. A reflexão é entrecortada por uma sequência de referências eruditas; há muita semelhança com os ensaios de Umberto Eco e com passagens de Jorge Luís Borges. A referência à biblioteca do Capitão Nemo vale o livro. Todos os livros do Nautilus estavam nas profundezas do mar; protegidos, inalcançáveis, seguros, ainda que rodeados de água e de escuridão.

O tempo da escrita é um calibre para que meçamos o tempo do mundo e da vida. A carta, que exigia selo, papel, correio, estilo, calma, ponderação, é substituída pela mensagem eletrônica, que exige apenas impulso elétrico e simplificação nas formas. O Último dos Copistas é uma crítica contundente da vida que se tornou refém da tecnologia.

O autor suscita um exilado no mundo, incapaz de marcar um exame de sangue ou de tomar qualquer outra providência, se desprovido de telefone celular. O autor lembra-nos em tom realista e ameaçador que “o pensamento da carta é lento, o corpo da carta é lento”. Um anacoluto disfarçado que sintetiza um tempo que já não nos pertence.

Em O Último dos Copistas há um inventário de espécies em extinção, porém, não no sentido de animais que se aniquilam da face da terra. Há atividades que desapareceram, algumas mais, outras menos, outras totalmente. Reproduzo a lista e acrescento algumas: lanterninha de cinema, relojoeiro, fotógrafo de praça (lambe-lambe), datilógrafo, estenógrafo, sapateiro, amolador de facas, telegrafista, revelador de fotografias, vendedor de enciclopédias, vendedor de discos, dublador, tradutor, fabricante de moedas de orelhão, carteiro, carroceiro, motorista de táxi, cobrador de ônibus.

Alguém vai me impugnar dizendo que há no mundo uma destruição criativa, que é o tema de um ganhador do Nobel. Isto é, que toda destruição pressupõe uma nova tecnologia, e que a isso se chama de progresso. Creio que o autor não está preocupado com o progresso nesse sentido quantitativo. Há uma perda humana muita grande; há uma ofensa à memória afetiva. Esse é o elo que se perde com a passagem de uma fase tecnológica para outra. Não há como se evitar. Do mesmo modo que não conseguimos evitar que essas circunstâncias abalem nossa relação com o passado. Não se trata de um livro saudosista. Trata-se de um livro realista. E intrigante.

Não se consegue saber exatamente quem é o narrador. O ensaísta do texto que abre o livro? O revisor recém-separado e desesperado por chance de trabalho? A ilustradora? Todos, ao mesmo tempo?

Aviso de incêndio

Há ainda um conjunto de personagens aparentemente secundários, mas que ocupam o proscênio. Exemplifico com o pai da ilustradora, Arnaldo, acima citado, e sua biblioteca, e o modo como a biblioteca foi desfeita. Há uma alteração de personalidade que o autor registra, e que Arnaldo sofreu, e que explica os fatos que ocorreram na cena da praia.

O Último dos Copistas é um livro que pode ser lido do fim para o começo, sem perda da continuidade narrativa. O autor apresenta o terreno de disputas, no qual as línguas e expressões naturais perdem espaço (e sons) para a língua dos algoritmos. Que sotaques possuíram essas línguas mecânicas?

O Último dos Copistas também pode ser lido como um manifesto de oposição ao mundo virtual, anunciados por sonhos enganosos que chegam por portas de marfim. Com muita erudição o autor nos explica que sonhos que chegam por portas de marfim são enganosos, ao contrário dos sonhos que chegam por intermédio de chifres, que nos ligam com o universo e que efectivamente se transformam em realidade. Nesse tópico, a referência que o autor faz ao conto XIX da Odisseia é um mais do que um presságio. É um aviso de incêndio.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 13/11/2024
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